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Full text of "As praias de Portugal; guia do bahista e do viajante, com desenhos de Emilio Pimentel"

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University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/aspraiasdeportugOOorti 


MAGAUHAES    &    MON 12  -  EDITORES 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 


RAMALHO    ORTIGÃO 


AS  PRAIAS 


1. 

DE 


PORTUGAL 


GUIA  DO  BANHISTA  E  DO  VIAJANTE 


COM    DESENHOS    DE    EMÍLIO    PIMENTEL 


^^^Qs 


í-f^ 


PORTO 
LIVRARIA  UNIVERSAL 

DE 

MAGALHÃES  &  MOXIZ  — Editores 
12,  LARGO  DOS  LOYOS,  14 

1876    , 


TYP.   DE  BARTHOLOMEU  H.   DE  MORAES 
50  —  Rua  da  Picaria  —  54 

1875 


o  MAR 


Assim  como  quatro  quintas  partes  do  corpo  humano  são  agua, 
assim  quatro  quintas  partes  da  grande  corpulência  do  globo  são 
mar.  Parecendo  separar  os  homens,  o  bello  destino  eterno  do  mar 
é  reunil-os. 

A  bacia  do  Mediterrâneo  confinava  o  mundo  antigo  habitado 
pelos  gregos,  pelos  phenicios  e  pelos  egypcios.  Foi  pelo  Medi- 
terrâneo que  partiram  as  primeiras  colónias  que  povoaram  a  Afri- 
ca e  a  Ásia,  estabelecendo  o  principio  das  nossas  relações  com  o 
mundo  novo.  No  Egypto,  na  Pentapotamia  e  na  China  as  primitivas 
civilisações  seguiram,  segundo  Humboldt,  o  curso  dos  rios  e  baixa- 
ram dos  montes  ao  litoral.  Na  Phenicia,  na  Grécia,  as  primeiras 
expedições  maritimas  iniciaram  os  nossos  domínios  sobre  as  foi  ças 
da  natureza. 

De  tal  modo  o  mar  foi  o  primeiro  guia  da  humanidade. 

Amoravel  e  austero,  foi  elle  que  primeiro  embalou  o  berço  do 
homem  e  que  em  seguida  o  acordou  para  os  nobres  trabalhos,  sug- 
gerindo-lhe  as  primeiras  noções  do  universo. 


O  desenvolvimento  dos  estudos  naturaes  tem  progressivamente 
modificado  a  opinião  inculta  supersticiosa  e  aterrada  de  que  o  mar 
é  o  insondável  abysmo  tenebroso  e  deserto. 

Naturalistas  americanos  téem  ultimamente  explorado  o  mar  a 
profundidades  de  dois  mil  e  setecentos  metros.  Huxley,  o  sábio 
zoologista  inglez,  penetrou  com  a  sonda  e  com  a  dragagem  até  qua- 
tro mil  metros  no  fundo  do  alto  mar. 

As  explorações  do  leito  do  Oceano  feitas  por  occasião  de  ser 
collocado  o  cabo  transatlântico  e  o  cabo  destinado  a  ligar  a  costa 
de  Argel  com  a  Itália  pelo  valle  submarino  situado  entre  Cagliani 
e  Bòne,  os  trabalhos  encetados  com  o  mesmo  fim  no  mar  das  Anti- 
lhas, no  Oceano  Pacifico,  no  Gulf  Stream,  provam  que  o  fundo  do 
mar  é  habitado  na  sua  maior  profundeza,  que  o  interior  das  aguas 
mais  afastadas  das  costas  téem  a  sua  fauna. 

A  pressão  dos  mais  extraordinários  volumes  de  agua  e  o  sue- 


AS  PRAIAS   DE    PORTUGAL 


cessivo  rebaixamento  thermoraetrico,  não  esmaga  a  vida  nos  cor- 
pos que  encerram  líquidos  em  vez  de  ar. 

Os  animaes  extraliidos  dos  mais  fundos  recessos  aquáticos  a 
que  desceu  a  draga  ostentam  as  cores  mais  vivas,  em  que  pre- 
dominam o  roxo,  o  amarello  e  o  verde.  Essas  diíTerentes  espécies, 
analysadas  e  reduzidas,  téem  perfeitamente  conformados  os  órgãos 
da  visão. 

Como  os  animaes  que  vivem  na  obscuridade  são  de  cor  som- 
bria, com  os  olhos  atrophiados,  é  claro  que,  em  vez  das  trevas, 
uma  extranlia  luz  desconhecida  penetra  os  valles,  os  despenhos,  as  : 
cavernas  mais  intimas  do  grande  leito  do  mar  e  alumia  a  intensa* 
vitalidade  de  um  novo  mundo  animal,  revelado  apenas  aos  estu- 
diosos pelos  mais  recentes  trabalhos  de  zoologistas  como  os  srs. 
Agassiz,  Pourtalés,  Wy\'ille,  Thomson  e  JefTryes. 


Guia  dos  homens,  promotor  das  civilisações,  revelador  do  uni- 
verso, progenitor  das  idéas  que  determinaram  o  abraço  fraterno  da 
humanidade  em  todo  o  mundo,  o  mar  é  ainda  o  mais  poderoso 
foco,  o  mais  abundante  manancial  da  vida. 

É  innuraeravel  a  quantidade  dos  animalculos  microscópicos  que 
habitam  o  mar.  O  phenomeno  da  phosphorencia  é  principalmente 
produzido  por  uminfusorio  luminoso  chamado  noctiluca  miliaris,  de 
cuja  espécie  existem  vinte  e  cinco  mil  indivíduos  em  cada  trinta 
centímetros  cúbicos  d'agua! 

Os  foraminiferos  são  tão  infinitamente  pequenos  e  tão  infinita- 
mente abundantes  que  d'Orbigny  contou  perto  de  quatro  milhões 
d'esses  indivíduos  n'uma  só  onça  de  areia.  Enormes  tractos  da  ter- 
ra firme  são  formados  dos  despojos  de  foraminiferos  anti-diluvianos. 
D'esta  natureza  é  o  solo  em  que  nasce  o  vinho  de  Champagne ;  téem 
egual  formação  os  rochedos  que  no  Egypto  servem  de  alicerce  ás 
pyramides,  e  bem  assim  as  montanhas  do  CliiU  e  a  cordilheira  dos 
Apeninos. 

As  maravilhosas  ilhas  de  coral,  que  sobresahem  como  mira- 
gens á  superficie  do  Oceano,  são  verdadeiras  eíílorescencias  da  vida 
animal  submarina.  Essas  ilhas  são  formadas,  segundo  Darwin,  de 
enormes  agglomerações  de  polypos.  Idêntica  origem  téem  os  vas- 
tíssimos recifes  dos  mares  da  Austrália,  da  Nova  Caledónia  e  do 
Oceano  Indico.  De  polypos  anti-diluvianos  são  ainda  compostas  algu- 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 


mas  regiões  continen.taes,  como  por  exemplo  a  cordilheira  do  Jura, 
sepulchro  enorme  de  miríades  de  habitantes  de  ura  mar  extincto, 
cujas  aguas  desappareceram  da  Europa  como  de  um  esqueleto  hu- 
mano desappareceu  vaporisada  a  porção  d'agua  que  constituía  cora 
elle  os  elementos  vitaes  de  um  antigo  organismo. 


Fora  da  legião  d'esses  pequeninos  entes,  só  perceptíveis  ao 
microscópio,  e  de  cuja  aggloraeração  se  fazera  as  ilhas,  os  recifes 
e  as  montanhas,  não  é  menos  assombrosa  a  fertiUdade  íraraensa 
do  Oceano. 

Cada  arenque  tera  sessenta  raíl  ovos.  Entre  a  Escossia,  a  Hol- 
landa  e  a  Noruega,  a  superfície  do  mar  cobre-se  inteiramente  com 
os  arenques  que  vêem  na  primavera  araar-se  à  luz  do  sol.  Era  cer- 
tas passagens  estreitas  conta  Michelet  que  o  raar  se  torna  solido, 
que  é  impossível  remar.  Perto  do  Havre  ura  pescador  encontra  na 
sua  rede  oitenta  raíl  peixes.  Em  uraa  parte  da  Escossia,  n'uraa  só 
noite  enchem-se  de  arenques  onze  mil  barricas.  Em  Portugal,  na 
costa  de  Espinho,  no  tempo  da  sardinha  uma  só  rede  produz  900 
mil  reis.  Na  Povoa  de  Varzim  a  importância  das  transacções  feitas 
em  uma  só  praça  eleva-sg  a  20  contos.  Na  praia  da  Nazareth  ainda 
este  anno  referia  ura  periódico  que  se  vendeu  a  carrada  de  sardi- 
nlias  por  240  reis  —  para  estruraar  a  terra. 


Diante  da  areia  húmida  e  fremente,  abandonada  pela  onda  que 
recolhe,  ura  sábio  professor  aUeraão,  preraaturamente  arrebatado 
pela  morte  aos  grandes  estudos  da  vida  no  mar,  Edward  Forbes, 
exclamava : 

« Que  pagina  de  hieroglyphos !  Cada  linha  de  solo  e  de  ro- 
chedo tem  por  caracteres  particulares  figuras  vivas;  e  cada  figura 
é  ura  raysterio.  As  apparencias  podera  ser  precisaraente  descriptas, 
o  sentido  intimo  foge  á  penetração  do  espirito  humano.  )> 

No  raar,  tanto  o  vegetal  corao  o  aniraal,  encerrara  uraa  lição 
profunda.  Dizia  bera  lluraboldt,  que  o  estudo  do  Oceano  era  a 
principal  iniciação  para  o  conhecimento  do  Cosraos. 

Um  pequenino  e  obscuro  aniraal  basta  para  explicar  ao  obser- 
vador instruído  a  configuração  das  terras  e  dos  mares.  O  mollusco 


8  AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 

OU  O  zoophito,  apparecendo  em  ilhas  longínquas,  determinam  que 
em  certa  epocha  estiveram  essas  ilhas  ligadas  aos  continentes.  O 
caranguejo  e  a  annelide,  que  habitam  regiões  distinctas,  provam  a 
antiga  communicapão  de  dois  mares. 


O  maravilhoso  aspecto  da  praia,  na  epocha  das  marés  vivas, 
quando  o  Atlântico  descobre  uma  parte  do  seu  leito,  é  descripto 
nos  seguintes  termos  pelo  naturalista  Blanchard: 

«Nas  primeiras  rochas,  tocadas  apenas  pela  vaga  durante  uma 
parte  do  dia  e  da  noite,  vivem  as  espécies  indiíferentes  á  acção 
do  ar  e  da  chuva;  as  glandes  marinas,  completamente  fixadas  á 
pedra;  as  lapas,  cujas  conchas  affectam  a  forma  cónica;  os  búzios 
ondados ;  as  anémonas  vermelhas.  Mais  longe,  nas  partes  areentas, 
saltitam  os  crustáceos  do  grupo  dos  camarões ;  a.  morada  dos  mo- 
luscos de  concha  bivalve  é  indicada  por  certos  buracos  na  areia; 
certos  montículos  trahem  a  presença  de  varias  espécies  de  anne- 
hdes,  os  arenicolas,  de  còr  azeitonada  e  delicadas  guelras;  os 
cirratulos,  cuja  cabeça  é  provida  de  uma  multidão  de  filamentos, 
que  se  ennovelam,  contornam  ou  arrastam  em  todas  as  direcções ; 
as  sabelles,  encarceradas  nos  seus  tubos.  Para  além  mostra-se  mui- 
tas vezes  uma  densa  vegetação;  é  a  zona  dás  plantas  marinas,  desi- 
gnadas pelo  nome  de  laminares.  Aqui  é  maravilhoso  o  campo  das 
explorações.  A  vida  golpha  por  toda  a  parte :  os  molluscos  abun- 
dam, os  zoophitos,  os  vermes  de  todos  os  géneros  pullulara.  Sobre 
as  algas  arrastam-se  lentamente  molluscos  sem  concha,  que  podem 
ser  contados  no  numero  dos  entes  mais  bellos,  como  são  os  doris 
e  os  colides.  Em  certos  pontos  desperta  a  attenção  uma  vegetação 
alvacenta.  São  os  prados  de  zooteras,  em  que  se  acham  profusa- 
mente dissiminados  os  animaes.  Mais  longe  desenha-se  uma  nova 
zona,  caracterisada  pela  presença  das  algas  crustáceas  chamadas 
coralinas.  No  meio  d'estas  plantas  vivem  os  polypos  e  uma  multi- 
dão de  animaes,  que  não  apparecem  nunca  mais  perto  do  litoral.  » 


N'esta  portentosa  abundância  quantas  variedades  de  indivíduos, 
quantas  maravilhas  na  procreação,  no  organismo  e  nos  costumes 
dos  habitantes  do  mar! 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  9 

Alguns  viajam  em  líalão,  dentro  do  seu  elemento.  Dispõem  de 
uma  bexiga  natatoria,  que  enchem  mais  ou  menos  de  ar,  subindo 
ou  baixando  até  á  camada  de  agua  em  que  desejam  ficar,  e  assim 
caminham  socegados,  adormecidos. 

Os  mais  vorazes  téem  dentes  admiráveis,  acerados,  finíssimos. 
Como  os  podem  quebrar  facilmente,  ha  uma  segunda  ordem  de 
dentes  para  substituir  a  primeira,  uma  terceira  para  substituir  a 
segunda.  Em  alguns  os  dentes  enchem-lhes  a  buca,  cobrem-lhes  a 
lingua,  o  paladar,  a  guela:  verdadeiro  arsenal  da  voracidade. 

Téem  as  formas  mais  diversas,  segundo  as  necessidades  do 
seu  organismo  e  as  condições  do  seu  meio:  uns  parecem  um  ca- 
vallo,  outros  um  ouriço,  outros  um  martello. 

Ha-os  espalmados  e  chatos,  como  a  solha,  que  vive,  arrastan- 
do-se  na  areia. 

Ha-os  finos,  esguios  e  com  as  barbataras  peitoraes  tão  desen- 
volvidas, que  se  erguem  da  agua  e  volitam  no  ar,  como  os  exoce- 
tos,  os  ruivos  e  as  andorinhas  do  mar. 

Uns  são  temerários,  destemidos,  como  o  histiophoro,  que  ataca 
o  homem  e  faz  rombos  nos  navios,  batendo-os  com  a  sua  maxilla 
superior,  saliente,  pónte^guda,  solida  como  um  ariete. 

Outros  téem  por  arma  preferida  a  traição,  como  o  polvo,  de 
que  o  padre  António  Vieira  dá  a  seguinte  descripção,  superior  tal- 
vez á  de  Victor  Hugo: 

O  polvo  com  aquelle  seu  capello  na  cabeça  parece  um  monge; 
com  aquelles  seus  raios  estendidos  parece  uma  estreita;  com  aquel- 
le não  ter  osso  nem  espinha,  parece  a  mesma  brandura,  a  mesma  man- 
sidão. E  debaixo  d'esta  apparencia  tão  modesta,  oud'estahypocrisia 
tão  santa,  testemunham  contesteraente  S.  Basílio  e  Santo  Ambrósio, 
que  o  dito  polvo  é  o  maior  traidor  do  mar.  Consiste  esta  traição  do 
polvo  primeiramente  em  se  vestir  ou  pintar  das  mesmas  cures,  de 
todas  aquellas  cures  a  que  está  pegado.  As  cures  que  no  camaleão 
são  gala,  no  polvo  são  malícia;  as  figuras  que  em  Protheu  são  fa- 
bula, no  polvo  são  verdade  e  artificio.  Se  está  nos  limos,  faz-se 
verde;  se  está  na  areia,  faz-se  branco;  se  está  no  lodo,  faz-se  par- 
do;  e  se  está  em  alguma  pedra,  como  mais  ordinariamente  costu- 
ma estar,  faz-se  da  cor  da  mesma  pedra.  E  d'aqui  o  que  succede? 
Succede  que  o  outro  peixe,  innocente  da  traição,  vae  passando 
desacautelado,  e  o  salteador  que  está  d'emboscada  dentro  do  seu 
próprio  engano,  lança-lhe  os  braços  de  repente  e  fal-o  prisioneiro. 
Fizera  mais  Judas?  Não  fizera  mais,  porque  nem  fez  tanto;  o  Judas 
abraçou  a  Christo,  mas  outros  o  prenderam:  o  polvo  é  o  que  abra- 
ça e  mais  o  que  prende.  Judas  com  os  braços  fez  o  signal,  e  o  pol- 


10  AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 

vo  dos  próprios  brapos  faz  as  cordas.  Jud'as  é  verdade  que  foi  trai- 
dor, mas  com  lanternas  diante:  traçou  a  traição  ás  escuras,  mas  exe- 
cutou-a  muito  ás  claras.  O  polvo,  escurecendo-se  a  si,  tira  a  vista 
aos  outros,  e  a  primeira  traição  e  roubo  que  faz  é  á  luz,  para  que 
não  distinga  cores.  Vé,  peixe  aleivoso  e  vil,  qual  é  a  tua  maldade, 
pois  Judas  em  tua  comparação  já  é  menos  traidor!  » 


As  alforrecas,  que  apresentam  na  agua  a  forma  de  um  bar- 
rete de  dormir,  e  parecem  feitas  de  gelèa,  umas  transparentes 
como  vidro,  outras  cur  de  rosa  como  as  conchas  do  mar  do  sul, 
outras  azues  ou  opalinas,  são  tão  vorazes  que  engolem  os  crustá- 
ceos e  digerem-os  sem  os  haverem  mastigado. 

Do  ovo  da  alforreca  sahe  uma  larva  que  se  transforma  n'um 
polypo.  D'este  animal,  inteiramente  diverso  da  alforreca,  nascem  os 
rebentos  que  formam  a  communidade  do  polypeiro.  Mais  tarde,  do 
polypeiro  brotam  uns  gomos,  que  se  transformara  em  alforrecas. 
De  sorte  que  a  alforreca  só  se  reprodu?  nos  netos.  Não  concebe 
como  mãe  —  a  pobre  alforreca!  Concebe  como  avó. 


O  polypo  tem  uma  tal  força  vital,  que,  depois  de  esquarte- 
jado, revive  em  cada  um  dos  bocadinhos  era  que  foi  partido.  Tan- 
tos bocadinhos,  tantos  polypos.  Inteiro,  é  ura  individuo;  despeda- 
çado é  uma  família;  uma  communidade,  uma  tribu. 

Se  o  viram  com  o  de  dentro  para  fora,  acceita  corajosamente 
esta  situação  diíficil :  a  sua  pelle  interior,  que  se  virou  para  fora, 
começa  a  respirar;  a  sua  pelle  exterior,  que  se  virou  para  dentro, 
começa  a  digerir. 

Se  engole  um  animal  que  se  não  sujeita  a  ser  digerido,  e 
procura  fugir  pela  boca  por  onde  entrou,  que  faz  o  polypo  ?  mette 
pela  buca  um  braço  e  segura  a  presa  no  estômago.  O  estômago  di- 
gere-lhe  o  animal,  mas  não  lhe  digere  o  braço. 

Quando  dois  polypos  luctam  para  disputarem  a  mesraa  presa, 
o  polypo  raais  forte  engole  o  polypo  mais  fraco  juntamente  cora  a 
presa  que  elle  linha  agarrada;  em  seguida  digere  os  despojos  opi- 
mos  e  vomita  vivo  o  adversário  vencido. 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL  11 


As  estrellas  do  mar,  de  côr  arroxada,  que  tantas  vezes  ap- 
parecem  na  nossa  costa,  quando  não  podem  engulir  um  animal 
que  lhes  resiste,  deitam  o  estômago  de  fora,  e  com  um  suco  que 
elle  segrega  entorpecem  o  inimigo  e  devoram-o  depois. 


Entre  os  crustáceos,  uma  espécie  tomada  como  um  symbolo 
de  retrocesso  por  aquelles  que  ainda  imaginam  que  ella  anda  ás 
arrecuas,  —  o  caranguejo,  o  forte  e  prestante  caranguejo  encarre- 
gado do  importante  serviço  sanitário  da  limpeza  das  praias,  re- 
presenta pela  sua  configurapão  e  pela  sua  structura,  a  mais  solida, 
a  mais  poderosa,  a  mais  terrível  machina  de  guerra  que  se  tem 
inventado.  Ao  pé  d 'essa  fortaleza  ambulante,  a  força  do  homem 
armado,  coberto  d 'aço  até  os  dentes,  não  é  mais  que  irrisão  e  mi- 
séria. 

Devemos  agradecer  á  natureza,  diz  Michelet,  o  ter  feito  os  de- 
cápodes  tão  pequenos.  De  outro  modo  quem  poderia  combatel-os? 
Nenhuma  arma  de  fogo  os  morderia.  O  elephante  teria  de  se  es- 
conder. O  tigre  teria  de  trepar  ás  arvores.  O  próprio  rhinoce- 
ronte  não  teria  segura  a  sua  pelle  tão  rija  e  tão  impenetrável. 
A  esbelta  elegância  do  homem,  continua  o  grande  escriptor,  a  sua 
forma  longitudinal,  dividida  em  três  partes,  com  quatro  grandes 
appendices,  divergentes,  arredados  do  centro,  fazem  d'elle,  por 
mais  que  se  diga  em  contrário,  um  ente  fraquíssimo.  Nas  arma- 
duras dos  guerreiros,  os  grandes  braços  telegraphicos,  as  pesadas 
pernas  pendentes,  dão  a  triste  impres,são  de  uma  creatura  des- 
centralisada,  impotente,  cambaleante,  prestes  a  tombar  ao  pri- 
meiro encontro.  No  crustáceo,  pelo  contrário,  os  appendices  li- 
gam-se  tão  juntos  á  massa  redonda,  curta,  atarracada,  que  o  me- 
nor golpe  que  elle  dá  é  a  grande  massa  compacta  que  o  vibra. 
Quando  o  animal  agarra,  corta  ou  fura,  fal-o  com  toda  a  força 
que  tem,  porque  a  sua  grande  energia  chega  até  a  extremidade 
de  todas  as  suas  armas.  Tem  dois  cérebros  (cabeça  e  tronco) ;  mas 
para  se  resumir,  para  obter  essa  terrível  centrahsação,  como  se 
arranja  elle?  Arranja-se  sem  pescoço,  tem  a  cabeça  no  ventre.  Ma- 
ravilhosa simplificação.  A  cabeça  reúne  assim  accumulados  os  olhos, 
as  antennas,  as  tenazes  e  as  maxillas.  Logo  que  os  olhos  penetran- 
tes vêem,  as  antennas  palpam,  as  tenazes  comprimem,  as  maxillas 
despedaçam,  e  pelo  lado  de  traz,  sem  mais  intermediário,  está  o 
estômago,  perfeita  machina  de  esmoer,  que  tritura  e  dissolve.  N'um 
relance,  tudo  está  consummado:  a  presa  desappareceu ;  ficou  dige- 


12  AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL 

rida.  Tudo  é  superior  no  crustáceo.  Os  olhos  vêem  para  diante  e 
para  traz.  Convexos,  exteriores,  facetados,  abrangem  uma  grande 
parte  do  horisonte.  As  pinças  ou  as  antennas,  órgãos  de  indagação 
e  de  aviso,  de  triplico  experimentação,  téem  na  extremidade  o  ta- 
cto e  na  base  o  ouvido  e  o  olpliato.  Vantagem  imraensa  que  nós 
não  logramos.  O  que  não  seria  a  mão  humana,  se  farejasse,  se  ou- 
visse! Em  que  conjuncto  e  com  que  rapidez  fariamos  então  as 
nossas  observações!  A  impressão,  dispersa  pelo  contrário  entre  três 
sentidos  diíferentes,  que  trabalham  separadamente,  é  por  esse  facto 
inexacta  ou  fugitiva.  No  decápode,  que  tem  dez  pés,  seis  d'elles 
são  ao  mesmo  tempo  mãos,  tenazes  e  ainda  órgãos  da  respiração. 
Assim,  por  via  de  um  expediente  revolucionário,  resolve  este  guer- 
reiro o  problema  que  tanto  aííligia  o  pobre  molusco:  «respirar 
apesar  da  concha)).  A  isto,  o  decápode  responde:  «Pois  eu  respi- 
rarei pelo  pé,  pela  mão.  Este  ponto  fraco — a  respiração  —  por  onde 
me  poderiam  dominar,  colloco-o  na  ponta  da  minha  espada,  po- 
nho-o  no  gume  das  minhas  armas  de  guerra.  Ora  que  lhe  toquem 
agora,  se  são  capazes !  » 

Tal  é,  na  eloquente  phrase  de  Michelet,  o  sábio,  o  possante, 
o  valoroso,  o  terrível  caranguejo!  Se  o  prendem  á  traição  por  al- 
gum dos  seus  membros,  elle  mesmo  quebra  esse  membro  e  reti- 
ra-se  mutilado.  Vae  com  um,  dois  ou  três  pés  de  menos,  — embora! 
elle  tornará  a  crear  pacientemente  mais  um  pé,  mais  dois,  mais 
três,  mais  tantos  pés,  quantos  houver  sacrificado  ao  resgate  da 
sua  hberdade. 

O  caranguejo,  porém,  cresce.  Crescer,  tornarmo-nos  grandes, 
é  para  todos  nós  uma  responsabilidade  grave.  Para  o  caranguejo 
é  uma  lamentosa  desgraça.  Tem  de  despir  a  sua  invencível  arma- 
dura, que  o  sufíbca  como  um  espartilho  demasiadamente  apertado, 
e  é  obrigado  a  ir  triste,  fraco,  desarmado,  para  debaixo  de  uma 
pedra,  fabricar  pacientemente  uma  vestimenta  nova.  Todos  então 
o  desdenham,  todos  o  maltratam,  e,  como  o  velho  leão  enfermo, 
elle  recebe  submisso  o  coice  ultrajoso  do  asno.  N'estas  condições, 
retirado  dos  combates,  das  aventuras,  das  viagens,  entregue  intei- 
ramente á  vida  domestica,  o  caranguejo  tem  pela  sua  esposa  uma 
dedicação  sublime:  quando  ella  é  aprisionada,  elle,  não  podendo 
defendel-a  nem  bater-se  por  ella,  vae  expontaneameute  render-se, 
e  entrega  á  discrição  do  inimigo  a  sua  vida  saudosa  e  viuva. 


O  monstruoso  tubarão,  quando  namorado,  quando  tocado  de 
amor,  é  tão  desinteressado  como  o  caranguejo,  —  talvez  mais.  Ao  pri- 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  13 

meiro  osculo  conjugal,  a  fêmea  do  tubarão  engole-o.  Elle,  rendido, 
obediente,  passivo,  deixa-se  absorver,  e  permanece  semanas  in- 
teiras, inoíTensivo  e  inerte,  esquecido  da  sua  voracidade,  da  sua 
fome  inextinguível,  dos  seus  instinctos  devastadores  e  perversos, 
inútil,  desditoso  e  lyrico,  no  estômago  da  sua  amada. 

Em  paga  de  tanto  aíTecto,  a  esposa  tem  com  elle  esta  dedi- 
cação heróica:  não  o  digere.  A  única  coisa  que  faz,  ao  ver  que 
o  amor  converte  o  seu  marido  n'um  poltrão,  n'um  inútil,  n'um 
imbecil,  é  acordal-o.  Como  boa  e  honrada  companheira,  chama-o 
á  vida  prática,  á  actividade  e  ao  dever,  dá-lhe  os  bons  dias,  e 
vomita-o  no  seio  das  suas  occupações  e  dos  seus  negócios. 

Nobre  procedimento  bem  diverso  do  de  outras  fêmeas  de  me- 
lhor fama!  A  aranha,  por  exemplo,  essa  esposa  execravel  e  indi- 
gna, no  dia  seguiute  ao  do  noivado  põe-se  a  olhar  para  o  marido 
com  um  olhar  doce,  lascivo,  cheio  de  falsidade  e  de  traição;  em 
seguida  cahe  sobre  elle  de  um  salto,  e,  quando  o  pobre  marido 
imagina  que  vae  receber  um  beijo,  ella  parte-o  em  bocados  e  co- 
me-o.  Não  lhe  come  só  figuradamente  os  olhos  da  cara  em  carroa- 
gens,  em  tuilettes,  em  camarotes  na  Opera,  como  ás  vezes  se  vê  em 
outra  espécie ;  come-ointeirameníe,  htteralmente,  pelo  estúpido  pra- 
zer de  o  triturar,  de  o  mastigar  e  de  o  digerir.  Que  indignidade  e 
que  abuso  de  confiança !  O  macho  da  aranha  verde,  observou  o  na- 
turalista Balbiani,  que  muda  de  cor  durante  o  consorcio  e  se  con- 
verte de  verde  em  castanho :  é  de  terror  talvez,  coitado,  pensando 
na  sorte  que  o  espera. 


Do  carapau,  do  barato  e  obscuro  carapau,  referem  os  natura- 
listas as  mais  curiosas  astúcias.  O  carapau  construo  uma  espécie 
de  ninho,  que  é  a  sua  alcova,  com  duas  portas.  Feita  a  casa,  o  ca- 
rapau oflferece  á  esposa  o  domicilio  conjugal.  Se  a  esposa  se  re- 
cusa a  acompanhal-o,  o  carapau,  não  podendo  appellar  para  os  tri- 
bunaes  que  mandam  a  mulher  seguir  seu  marido,  faz  justiça 
por  suas  próprias  mãos  e  leva  a  fêmea  para  casa  á  força,  agarrada 
por  uma  barbatana.  Logo  que  a  fêmea  deposita  os  ovos,  o  macho 
encarrega-se  de  os  fecundar,  entrando  por  uma  das  portas  do  ni- 
nho e  expulsando  a  esposa  pela  porta  contrária.  Entãojfecha  a  porta 
por  onde  a  esposa  sahiu  e  fica  na  outra,  de  vigia,  para  que  os  de- 
mais peixes  lhe  não  comam  a  ninhada. 

Os  carapaus  são  uma  das  poucas  excepções  á  regra  geral  que 
preside  ao  modo  como  os  peixes  se  amam.  A  maior  parte  d'elles 


14  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

não  conhecem  as  mães  dos  seus  filhos.  As  fêmeas,  tendo  deposi- 
tado os  ovos  em  logar  opportuno  para  o  seu  desenvolvimento,  re- 
tiram-se.  Os  machos  vêem  em  seguida,  fecundam  os  ovos  e  reti- 
ram-se  também.  A  natureza  é  a  grande  roda  d'esses  eternos  expos- 
tos. A  família  do  que  elles  procedem  não  se  reúne  nunca. 

Também,  o  que  seria  de  uma  pobre  família  de  peixes,  se  elles 
se  lembrassem  de  adoptar,  crear,  educar  e  defender  todos  os  filhos 
cora  que  a  Providencia  abençoa  os  seus  consórcios !  Imagine-se  um 
desgraçado  rodovalho,  que  põe  nove  milhões  d'ovos !  Uma  tainha, 
que  põe  treze  milhões  d'ovos! 


Ainda  assim,  ha  peixinhos  que  amam  seus  filhos,  que  traba- 
lham, que  se  dedicam  por  elles.  Citei  já  o  carapau.  Seria  faccioso 
se  occultasse  o  nome  da  truta,  a  qual  faz  uma  cova  onde  enterra 
os  seus  ovos,  e  o  da  hyppocampa,  a  qual  tem  junto  da  cauda  uma 
espécie  de  bolsa,  em  que  recolhe  os  ovos  durante  o  período  da  in- 
cubação. 

As  raias  e  os  esqualos  apreciam  também  as  convivências  do 
amor,  procuram  as  suas  fêmeas,  seguem-as,  galanteiam-as,  fazem- 
Ihes  a  sua  corte. 

Em  confirmação  da  theoria  darwineana  da  selecção  sexual, 
cita-se  um  peixe  chinez,  ultimamente  introduzido  em  França  por 
um  piscicultor  de  Pariz,  chamado  Carbonnier.  Na  epocha  da  des- 
ovação,  o  alludido  peixe  é  junto  da  sua  fêmea,  de  uma  ternura 
inexcedivel.  Abraça-a,  curvando  lateralmente  para  esse  fim  o  seu 
corpo  em  semi-circulo,  cinge-a  estreitamente,  parece  querer  bei- 
jal-a.  Engulindo  bolhas  de  ar,  expulsa-as  em  seguida  envoltas  n'uma 
ténue  membrana  albuminosa,  e  construo  por  esse  meio  á  tona 
d'agua  uma  espécie  de  docel  de  espuma,  debaixo  do  qual  celebra 
as  suas  núpcias  e  fecunda  os  seus  ovos  á  medida  que  elles  são 
depostos  pela  fêmea.  Como  os  ovos  ficam  dispersos  na  agua,  o  ma- 
cho recolhe-os  na  boca,  transporta-os  para  debaixo  do  seu  tecto 
de  espuma,  onde  os  reparte  cuidadosamente,  para  que  fiquem  to- 
dos em  eguaes  condições.  Nascidos  os  peixes,  o  pae  consagra-lhes 
os  mesmos  cuidados  e  os  mesmos  carinhos  que  havia  dedicado  aos 
ovos.  É  notável  que  estes  peixes,  em  que  os  dois  sexos  se  amam 
com  tão  extraordinário  carinho,  são,  segundo  affirma  o  snr.  Perrier, 
do  xMuseu  de  Historia  Natural  de  Pariz,  os  mais  bellos  que  se  tèem 
visto.  — Um  simples  peixe  chinez !  Vejam!  Que  vergonha  para  os  pei- 
xes europeus ! 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  15 

O  sábio  Agassiz,  n'uma  carta  datada  de  S.  Thomaz,  sobre  a 
exploração  do  Mar  de  Sargassos,  refere  que  o  peixe  chamado  por 
Cuvier  chironectes  pictus,  construo  para  os  seus  ovos  um  ninho, 
em  que  a  sua  progénie  fica  misturada  com  os  elementos  que  ser- 
viram para  a  construcção  da  arca  salvadora.  Como  esses  materiaes 
são  ramos  vivos  de  sargasso,  este  berço,  diz  o  illustre  naturalista, 
íluctuando  sobre  o  Oceano  profundo,  offerece  ao  mesmo  tempo,  á 
ninhada  que  encerra,  a  projecção  e  o  sustento  de  que  ella  necessita. 


A  raia  tem  o  privilegio  de  um  olphato  tão  fino,  tão  sensível 
e  tão  delicado,  que  muitas  vezes  os  seus  nervos  a  obrigam,  como 
nós  diríamos,  a  pôr  o  lenço  no  nariz.  Para  realisar  esta  operação 
dispõe  a  raia  de  uma  fina  membrana,  uma  espécie  de  véo,  em 
que  envolve  o  órgão  olphatico. 


Alguns  peixes  téem  uma  espécie  de  voz,  isto  é,  dispõem  de 
certos  sons  que  emittera  quando  querem,  refutando  assim  o  pro- 
loquio  com  que  se  caracterisa  a  eloquência  de  certos  parlamenta- 
res: mudos  como  peixes. 

Á  academia  das  sciencias  de  Pariz  mostrou  ha  pouco  tempo  o 
snr.  Dufossé,  que  duas  espécies  de  uns  pequeninos  peixes,  extre- 
mamente obscuros  e  feiíssimos,  produzem,  quando  se  lhes  pega, 
um  estremecimento  intenso,  acompanhado  de  um  ruído,  e  ás  vezes 
de  um  som  commensuravel.  Estas  vibrações  são  verdadeiros  actos 
de  expressões  instínctivas,  e  téem  por  causa  a  tremulação  muscu- 
lar,—  revelação  curiosa  da  propriedade  que  podem  ter  os  múscu- 
los, de  crear  manifestações  acústicas. 


As  cores  dos  peixes,  algumas  tão  brilhantes,  tão  sumptuosas, 
e  ao  mesmo  tempo  tão  ephemeras  e  tão  mutáveis  que  constante- 
mente se  estão  succedendo  e  variando  nos  mesmos  indivíduos,  re- 
conheceu-se  recentemente  que  eram  dependentes  da  qualidade  dos 
raios  luminosos  que  impressionam  a  vista  d'estes  animaes.  Para 
os  peixes  e  para  os  crustáceos,  o  olho  é  o  ponto  de  partida  de 
um  abalo  nervoso  que  se  transmitte  á  pelle  e  produz  uma  mudança 
mais  ou  menos  completa  na  coloração.    Gomo  é  —  está  claro  — ■ 


16  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

por  intermédio  dos  nervos  que  a  impressão  primitiva  do  olho  se 
transmitte  á  pelle,  cortados  certos  nervos  em  certos  peixes,  alte- 
ra-se-lhes  a  côr  geral  e  transforraa-se-lhes  em  riscas  zebradas.  A 
razão  é  que  se  interceptou  em  parte,  e  em  parte  se  deixou  propa- 
gar o  abalo  de  que  a  retina  é  a  sede,  e  cujo  agente  são  as  irradia- 
ções emittidas  pelo  ambiente.  A  còr  dos  peixes  altera-se,  segundo 
a  còr  do  aquário  em  que  elles  vivam.  Se  porém  um  peixe  cega, 
a  sua  côr  fica  immutavel  e  permanente,  qualquer  que  seja  a  côr 
promovida  no  meio  em  que  elle  se  acha.  O  mesmo  que  se  dá  com 
os  peixes  succede  com  os  crustáceos.  Tirando-lhes  os  olhos  deixam 
de  mudar  de  côr.  São  como  nós:  cegos,  ficamos  indiíferentes  á  os- 
tentação apparatosa  da  toilette. 


O  mar  torna-nos  imaginativos,  faz-nos  propender  para  a  con- 
templação, para  a  ociosidade,  para  a  vaga  saudade,  para  a  inde- 
finida melancolia.  Este  estado  poético  é  dos  mais  perigosos.  Pros- 
tra, enfraquece,  desarma  o  caracter.  É  por  isso  que  as  mulheres, 
á  beira-mar,  nos  dias  doces  e  enervantes  do  outono,  precisam 
mais  que  nunca  de  se  retemperarem  na  apphcação,  no  estudo,  na 
actividade  intellectual. 

Possam  as  breves  linhas  que  deixo  escriptas  inspirar-te,  lei- 
tora, amiga  leitora,  a  curiosidade  dos  estudos  da  natureza,  a  de- 
cifração dos  mysterios  da  vida  no  interior  do  mar ! 

Ahi  o  tens,  boa  amiga,  o  vasto,  o  poderoso  Oceano!  Procura 
conhecel-o.  Elle  será  o  teu  melhor,  o  teu  mais  fiel  amigo,  o  teu 
medico,  o  teu  mestre,  o  namorado  do  teu  espirito. 

Tudo  aquillo  de  que  precisa  o  teu  abatido  organismo,  a  tua 
imaginação,  o  teu  caracter,  a  tua  alma,  o  mar  possue  para  t'o  dar. 

Elle  tem  o  phosphato  de  cal  para  os  teus  ossos,  o  iodo  para 
os  teus  tecidos,  o  bromureto  para  os  teus  nervos,  o  grande  calor 
vital  para  o  teu  sangue  descorado  e  arrefecido. 

Para  as  curiosidades  do  teu  espirito  elle  tem  as  mais  interes- 
santes historias,  os  mais  engenhosos  romances,  os  mais  commo- 
ventes  dramas,  as  mais  prodigiosas  legendas. 

Para  as  fraquezas  da  tua  imaginação,  da  tua  sensibilidade,  da 
tua  ternura,  tem  finalmente  a  grande  força  austera,  simples,  te- 
Iiaz,  implacável,  que  na  terra  se  não  encontra  senão  dispersa  em 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  17 


pequenas  parcellas,  pelo  que  ha  de  mais  sublime  e  de  mais  cul- 
minante na  humanidade :  a  alma  dos  heroes  e  o  coração  das  mães ; 
—  força  imraensa,  sobrenatural,  inconsciente,  de  que  o  mar  é  a 
viva  imagem  collectiva  e  portentosa. 


Dizem,  leitora,  que  são  curiosas  as  pessoas  do  teu  sexo.  Glo- 
ria-te  d'esse  bello  defeito.  A  curiosidade  é  a  primeira  das  grandes 
forças  do  espirito  humano. 

Se  sir  Isambart  Brunei  não  tivesse  tido  a  curiosidade  de  exa- 
minar minudentemente  o  modo  como  um  Ínfimo  bixinho,  o  teredo 
navalis,  roe  a  madeira  dos  navios,  perfurando-a  primeiro  por  um 
lado,  depois  pelo  outro  e  envernisando  a  abobada  e  as  paredes 
d'essa  passagem  com  ura  inducto  para  esse  fim  segredado,  não  se 
teria  então  descoberto  o  processo  por  que  foi  construído  o  tunnel 
do  Tamisa. 

Foi  considerando  curiosamente  a  construcção  de  uma  téa  de 
aranha  que  sir  Samuel  inventou  as  pontes  pensis. 

A  curiosidade  de  achar  as  causas  da  queda  de  uma  maçã  e  do 
aspecto  de  uma  bola  de  sabão  levou  Newton  á  lei  da  gravitação  e 
Young  á  theoria  da  diífracção  da  luz. 

Se  uma  espécie  de  luneta  offerecida  a  Maurício  de  Nassau  por 
um  ocuhsta  hollandez  não  tivesse  suscitado  em  Galileu  uma  curio- 
sidade similhante  á  que  desperta  nas  creanças  o  machinismo  dos 
relógios.  Galileu  não  teria  descoberto  o  telescópio. 

Gomo  se  descobriu  o  galvanismo?  Por  um  acto  de  simples  cu- 
riosidade. Galvani,  examinando  o  organismo  de  uma  rã,  notou  que 
a  pata  d'este  animal  se  contrahia  ao  contacto  de  laminas  de  metaes 
dissirailhantes  introduzidas  entre  um  musculo  e  um  nervo.  D'ahi,  a 
telegraphia  eléctrica. 

Deante  de  um  copo  de  cerveja  Priestley  sente  um  dia  a  curio- 
sidade de  explicar  o  plienomeno  de  fermentação.  O  estudo  das  pro- 
priedades do  gaz  fluctuante  sobre  a  superfície  do  liquido  fermen- 
tado lançaram  as  bazes  à  chimica  pneumática. 

Cuvier,  mestre  de  meninos,  passeando  uma  tarde  á  beira-mar, 
encontrou  na  areia  uma  siba  dada  á  costa.  Da  curiosidade  susci- 
tada no  seu  espirito  pelo  extranho  aspecto  d'esse  animal  nasceu  o 
primeiro  livro  do  grande  naturaUsta :  o  seu  admirável  estudo  dos 
moUuscos. 

Hugli  Miller,  simples  canteiro,  trabalhando  n'uma  pedreira  á 
beira-mar,  sentiu  a  sua  curiosidade  tão  vivamente  ferida  pelos  res- 

2 


18  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

tos  orgânicos  das  espécies  extinctas  descobertas  na  maré  baLxa, 
que  observando  e  comparando  minuciosamente  o  aspecto  do  solo  e 
o  aspecto  dos  animaes  acabou  por  compor  um  dos  mais  notáveis 
livros  da  geologia. 

Espreitar  peio  buraco  de  uma  fechadura  e  dobrar  o  Cabo  da 
Boa  Esperança  são  dois  factos  da  curiosidade:  um  descobre  má 
creação ;  o  outro  descobre  a  America. 

A  um  dá-lhe  a  curiosidade  para  mexer  nas  gavetas  dos  ou- 
tros :  este  é  o  indiscreto.  Egual  curiosidade  leva  outro  a  revistar  a 
Africa:  este  chama-se  Livingstone. 

Que  é  pois  que  se  deve  fazer  á  curiosidade  para  que  ella  não 
seja  um  ridículo  defeito,  e  seja  uma  nobre  e  poderosa  virtude? 
Educal-a  na  elevação;  dar-lhe  por  objecto  os  segredos  da  natureza; 
dar-lhe  por  fim  os  interesses  cia  humanidade. 

Sabeis,  minhas  curiosas  senhoras,  qual  é  o  grande  mal  da  nossa 
educação  portugueza?  É  o  atrofiamento  da  curiosidade.  D'aqui,  a 
indifferença.  Da  indiíTerença,  a  preguiça.  Da  preguiça,  a  miséria, 
a  dupla  miséria  do  desequilíbrio  económico  e  do  rebaixamento  mo- 
ral. 

Guardae  a  vossa  curiosidade,  ó  mulheres;  guardae-a  como  um 
thesouro  precioso :  é  por  ella  que  penetrará  a  grande  reforma  ur- 
gente na  instrucção  do  povo. 

Vós  tendes,  latente  ou  mal  empregada,  uma  grande  activi- 
dade de  espirito,  paralysada  em  nós  outros  os  homens  pelos  nos- 
sos estúpidos  hábitos  de  boulevard,  de  café,  de  club,  e  pela  lenta 
narcolisação  cerebral  proveniente  do  abuso  do  tabaco  e  da  pesada 
cerveja,  fatal  á  vivacidade  que  era  o  antigo  apanágio  da  raça  me- 
ridional, 

Estaes  nas  praias.  Empregae  as  longas  horas  de  ócio  tão  es- 
tiradas, tão  tediosas,  tão  enervantes,  estudando  o  mar  nos  seus 
grandes  phenomenos,  nas  suas  portentosas  creações. 

Um  só  molho  de  mar  que  escachôa  na  rocha  e  se  pulverisa 
atravez  dos  raios  do  sol  poente  em  um  nevoeiro  opalino  e  doirado, 
contém  mais  acção,  mais  vida,  mais  enredo,  do  que  todos  os  ro- 
mances juntos  do  snr.  Ponson  du  Terrail. 

Nenhum  dos  nossos  amigos  predilectos,  nenhum  dos  nossos 
poetas  lyricos,  nenhum  dos  nossos  escriptores  phantasistas  tem  para 
nos  oíTerecer  tantas  commoções,  tanto  drama,  tantas  historias  curio- 
sas como  as  que  sabe  o  mar,  o  inexgotavel  narrador,  o  doce  poeta, 
o  velho  chronista. 

Esse  bom  amigo  não  nos  dá  unicamente  as  mais  bellas  e  as 
mais  interessantes  liistorias.  Quando  estamos  sãos  oíFerece-nos  os 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  19 

seus  pequenos  presentes  de  amisade :  as  poéticas  illuminações  phan- 
tasticas  dos  fogos  de  S.  Telmo,  as  pérolas,  as  brisas. 

Quando  adoecemos  das  complicadas  enfermidades  modernas 
elle  só  nos  dá  tudo  aquillo  de  que  precisam  as  nossas  naturezas 
empobrecidas  e  devastadas.  Todo  o  elemento  da  vida  que  falta  na 
terra  suprabunda  no  mar.  Por  isso  Michelet  exclama :  Todos  os  prin- 
cipies que  em  ti,  homem,  estão  reunidos,  tem-os  separados  o  mar, 
essa  grande  pessoa  impessoal.  O  mar  tem  os  teus  ossos,  tem  o  teu 
sangue,  tem  o  teu  calor,  a  tua  seiva  vital.  Tem  o  que  te  falta:  a 
demasia  da  plenitude,  o  excesso  da  força. 


Para  portuguezes,  o  mar  tem  attractivos  especiaes.  Para  nós, 
elle  é  o  caminho  das  conquistas,  dos  descobrimentos,  da  poesia, 
da  inspiração  artística,  da  gloria  nacional. 

A  nossa  bella  architectura  manoelina,  as  capellas  imperfeitas 
na  Batalha  e  os  Jeronymos,  téem  na  escolha  dos  ornatos  predile- 
ctos, na  repetição  de  certos  pormenores,  o  profundo  cunho  marí- 
timo; vé-se  a  miúdo  a  preoccupação  do  embarcadiço;  acha-se  a 
cada  passo  a  revelação  do  marinheiro. 

O  nosso  mais  bello  Uvro  de  versos  é  um  poema  marítimo,  os 
Luziadas. 

A  mais  extraordinária  obra  que  em  Portugal  se  tem  escripto 
em  prosa  é  a  Historia  tragico-maritima,  uma  relação  de  naufrá- 
gios. 

Em  nenhuma  outra  litteratura  conheço  livro  que  se  compare 
cora  este.  A  Historia  tragico-maritima  é  a  narração  de  celebres 
catastrophes,  copiada  litteralmente  da  noticia  oral,  repetida  muitas 
vezes  por  uma  testemunha  presencial  do  caso  referido.  Nunca  o 
talento  dramático  produziu  rasgos  mais  commoventes,  effeitos  mais 
profundamente  tocantes;  nunca  a  tragedia  achou  notas  mais  senti- 
damente elegíacas ;  nunca  a  arte  descríptiva  tornou  mais  palpitante 
e  viva  a  acção  narrada;  nunca,  finalmente,  a  sciencia  da  lingua- 
gem e  o  poder  do  estylo  acharam  para  um  assumpto  formas  mais 
adequadas,  toques  mais  profundos,  simphcidade  mais  real,  mais 
pittoresca,  mais  suggestíva,  mais  completamente  e  mais  cabalmente 
artística.  Não  fazem  melhor  os  maiores  mestres,  Eschilo,  Shak- 
speare,  Carlyle. 

Na  historia  do  naufrágio  do  galeão  grande  S.  João,  o  desastre 
de  Manoel  de  Sousa  de  Sepúlveda,  a  morte  de  sua  mulher  e  de 
seus  filhos,  que  eUe  enterra  por  suas  próprias  mãos,  constitue  uma 
* 


20  AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 


pagina  primorosa  e  inexcedivel.  Roubados,  insultados,  despidos 
pelos  cafres,  Manoel  de  Sousa,  com  a  sua  família,  despedem-se  dos 
seus  companheiros  de  infortúnio,  dos  náufragos  do  galeão  grande, 
que  Manoel  de  Sousa  commandava.  Os  marinlieiros  proseguem, 
chorando  de  saudade  e  de  lastima,  a  sua  viagem  dolorosa  no  Ser- 
tão. Manoel  de  Sousa  fica,  apparentemente  indiCferente,  nú,  com 
uma  compressa  molhada  na  cabeça,  a  procurar  conter  o  juizo 
que  lhe  foge. 

«Depois  que  André  Vaz  se  apartou  de  Manoel  de  Sousa  e  sua 
mulher,  ficou  com  elle  Duarte  Fernandes,  contra-mestre  do  galeão, 
e  algumas  escravas,  das  quaes  se  salvaram  três,  que  vieram  a 
Gòa  e  contaram  como  viram  morrer  D.  Leonor.  Manoel  de  Sousa, 
ainda  que  estava  maltratado  do  miolo,  não  lhe  esquecia  a  neces- 
sidade que  sua  mulher  e  filhos  passavam  de  comer,  e  sendo  ainda 
manco  de  uma  ferida  que  os  cafres  lhe  deram  era  uma  perna,  as- 
sim maltratado,  se  foi  ao  matto  buscar  fructas  para  lhes  dar  de 
comer.  Quando  tornou  achou  D.  Leonor  muito  fraca,  assim  de  fome 
como  de  chorar,  que  depois  que  os  cafres  a  despiram  nunca  mais 
d'ali  se  ergueu  nem  deixou  de  chorar,  e  achou  um  dos  meninos 
morto,  que  por  sua  mão  enterrou  na  areia.  Ao  outro  dia  tornou 
Manoel  de  Sousa  ao  matto  a  buscar  alguma  fructa,  e  quando  voltou 
achou  D.  Leonor  fallecida  e  o  outro  menino.  E  sobre  ella  estavam 
chorando  cinco  escravas  com  grandíssimos  gritos.  Dizem  que  elle 
não  fez  mais,  quando  a  viu  fallecida,  que  apartar  as  escravas  d 'ali 
6  assentar-se  perto  d'ella,  com  o  rosto  posto  sobre  uma  mão,  por 
espaço  de  meia  hora,  sem  chorar  nem  dizer  cousa  alguma,  estando 
assim  com  os  olhos  postos  n'ella.  E  no  menino  fez  pouca  conta.  E 
acabado  este  espaço  se  ergueu,  e  começou  a  fazer  uma  cova  na 
areia  com  ajuda  das  escravas,  e  sempre  sem  se  fallar  palavra,  a 
enterrou,  e  o  filho  com  ella.  E  acabado  isto  tornou  a  tomar  o  ca- 
minho que  fazia  quando  ia  a  buscar  as  fructas,  sem  dizer  nada  ás 
escravas,  e  se  metteu  pelo  matto,  e  nunca  mais  o  viram. » 

Nada  mais  simples,  mais  subhme,  mais  palpitantemente  dra- 
mático, mais  fundamente  trágico.  Em  todas  estas  narrativas,  nem 
uma  só  observação  psychologica.  Tudo  é  objectivo,  exterior,  como 
nos  mais  modernos  processos  de  estylo  tão  meditados,  tão  perfei- 
tos, tão  scientificos,  da  eschola  de  Flaubert.  A  impressão  de  quem 
lé  é  lancinante  e  profunda.  Como  não  temos  de  desviar-nos  com  o 
auctor  pelas  divagações  criticas  da  analyse  dos  sentimentos,  o  facto, 
em  toda  a  sua  humana  inteireza,  apodera-se  de  todo  o  nosso  es- 
pirito, e  a  commoção  penetra-nos  até  á  consternação  e  até  ás  la- 
grimas. 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  21 

Este  admirável  livro,  único  na  litteratura  portugueza,  feito  in- 
conscientemente por  aquelles  que  o  trasladaram  da  versão  popular, 
foi  o  mar,  o  grande  mestre,  que  o  inspirou  á  poética  alma  aventu- 
rosa dos  navegadores  portuguezes. 

Camões,  tendo  encontrado  em  Moçambique  um  dos  marinhei- 
ros sobreviventes  ao  naufrágio  do  galeão  de  Sepúlveda  e  ás  aven- 
turas subsequentes,  houve  d'elle  a  historia  do  desastre,  e  põe-a 
na  boca  do  Adamastor,  quando  este  profere  as  delicadas  e  saudo- 
sas estrophes,  que  principiam: 

Outro  também  virá  de  honrada  fama, 
Liberal,  cavalleiro  e  namorado .... 


Na  famosa  xácara  da  Nau  Cathnncta,  querendo  o  demónio 
comprar  pela  salvação  da  nau  a  alma  do  capitão,  este  exclama: 

Renego  de  ti,  demónio, 
Que  me  estavas  a  attentar ! 
A  minha  alma  é  só  de  Deus, 
E  o  meu  corpo  é  do  mar ! 

Tal  é  o  grito  valoroso  e  sublime  da  alma  de  um  povo  que  a 
Providencia  destinou  a  ter  no  mar  a  sua  historia,  a  sua  inspiração 
artística,  a  melhor,  a  mais  bella,  a  mais  gloriosa  parte  da  sua  exis- 
tência, finalmente,  a  sua  segunda  pátria : 

A  minha  alma  é  só  de  Deus, 
E  o  meu  corpo  é  do  mar ! 


A    FOZ 


Foz !  Saudosa  Foz  I  Residência  querida  da  minha  infância  tão 
afastada  já — ai  de  mim!  —  d'estes  annos  duros!  Com  que  terno 
prazer  que  eu  te  saúdo,  sempre  que  te  avisto,  ou  penso  em  ti! 

Estamos  bem  mudados  ambos  —  velha  amigai  —  tu  do  que 
foste,  eu  do  que  era! 

No  tempo  em  que  eu  ia  de  chapéu  de  palha  e  de  bibe,  á 
tarde,  apanhar  conchinhas  na  costa,  pela  mão  de  minha  avó,  tu 
eras  grave,  simples,  burgueza,  recolhida  e  silenciosa  como  uma 
horta  em  pleno  campo. 

Tinhas  duas  hospedarias:  a  do  Julião,  defronte  do  Castello,  e 
a  do  Silvestre,  ao  fundo  da  rua  Direita.  Em  qualquer  d'ellas,  o 
preço,  com  almoço  de  bifes  e  ovos,  jantar  e  ceia,  com  lautas  so- 
bremezas  de  pudim  de  pão  com  passas,  muita  fructa  e  vinho  á  dis- 
crição, era  de  um  pinto  por  dia.  Porque  tudo  quanto  era  bom  e 
caro,  custava  n'esse  tempo  —  ura  pinto. 

Além  d'estas  hospedarias  havia  o  café  da  Senhora  da  Luz,  a 
Assembleia  do  Mallen,  á  esquina  da  praia  dos  Inglezes;  um  bar- 
beiro na  rua  Direita,  que  era  veterano,  tinha  a  figura  de  uma  es- 
phera,  e  exhibia  á  porta  do  seu  estabelecimento  ura  pintasilgo  den- 
tro de  uma  gaiola  cylindrica,  que  andava  á  roda,  fazendo  mexer 
engenhosamente  um  boneco  e  uma  boneca  que  estavam  dos  lados, 
segurando  uma  manivella. 

Havia  também  a  Rosa  das  burras,  cujo  nome  provinha  do  seu 
estabelecimento,  em  que  se  alugavam  as  mulinhas  cavalgadas  para 
a  viagem  a  Leça,^ chamando  a  attenção  dos  viandantes  por  meio  da 
seguinte  taboleta,  pintada  no  muro  do  quintal: 

Aqui  se  alugo  vurras  para  passeio  e  para  leites 
com  albarda  e  com  selim  de  homen  e  de  senhora. 


24  AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 

No  principio  da  estapão,  em  agosto,  começavam  a  ciiegar  os 
banhistas ! 

Vinham  as  familias  do  Douro.  Via-as  a  gente  em  magotes,  con- 
frangidas, arripiadas,  olhando  para  o  mar  com  uma  grande  sensa- 
ção de  espanto,  de  pavor  e  de  frio. 

Os  homens  traziam  os  seus  capotes  bandados  de  velludo  ou 
de  baeta  verde.  As  senhoras  atavam  na  cabeça  três  lenços,  e  pu- 
nham por  cima  uma  manta.  Ao  lado  ia  o  padre,  o  capellão  da  casa 
ou  o  prior  da  freguezia,  com  o  seu  sohdeo  de  retroz  atabafando- 
Ihe  as  orelhas,  o  chapéu  braguez  seguro  por  baixo  da  -barba  com 
ura  cordão,  com  passador,  terminando  n'uraa  bolota.  E  o  ecclesias- 
tico,  levando  na  mão  o  seu  lenço  de  Alcobaça,  de  quadrados  azues 
e  encarnados,  apontava  para  os  navios  com  o  ferrão  do  seu  guar- 
da-sol  e  exphcava  alguns  segredos  da  navegação.  Atraz  seguia  a 
criada,  boquiaberta,  com  os  seus  bandós  ahsados  com  banha  de 
porco,  os  pés  sem  meias  calçados  em  grossos  sapatos,  a  saia  curta, . 
as  mãos  debaixo  do  avental. 

Tinham  os  seus  passeios  favoritos: 

Ao  farol  da  Senhora  da  Luz,  onde  o  faroleiro  deixava  olhar 
pelo  óculo  para  os  velhos  telegraphos,  cujo  apparelho  de  taboi- 
nhas,  armado  no  viso  dos  montes,  parecia  espreguiçar-se  e  boce- 
jar as  noticias  no  azul  do  espaço; 

Pela  manhã,  á  feira  onde  estacionavam  os  carros  das  melan- 
cias, as  canastras  com  os  frangos,  os  gigos  d'uvas,  a  louça  branca 
e  amarella,  e  as  bilhas  do  leite; 

Á  Cantareira,  de  tarde,  quando  chegavam  as  lanchas  do  peixe 
e  se  comprava  a  volumosa  pescada  de  dorso  preto,  que  as  criadas 
traziam  para  casa  em  argola,  com  a  ponta  da  cauda  na  bocca,  como 
o  syrabolo  da  immobiUdade  egypcia. 


Não  sei  qual  era  a  vida  das  demais  familias  que  iam  para  a 
Foz  n'esse  tempo,  porque  a  convivência  era  tão  pouca,  que  toda  a 
gente  comia  salada  de  alho,  francamente,  sem  receio  de  vir  a  fal- 
lar  com  outrem  que  não  fosse  a  famiiia. 

Na  minha  casa,  o  theor  era  este: 

De  manhã,  depois  do  banho,  ás  oito  horas,  almoçava-se  café 
com  leite,  pão  com  manteiga  fresca,  que  vinha  das  terras  de  mi- 
nha avó.  Ao  meio-dia  jantava-se.  Ás  Ave-Marias,  quando  se  escon- 
diam as  moscas  e  o  sol,  persignavamos-nos,  rosávamos  o  Angelus 
ao  toque  do  sino  da  Igreja  e  tomávamos  chá  com  pão  de  Villar  e 
biscoutos  de  Avintes. 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL  25 

Vinha  depois  o  serão:  uns  costuravam,  outros  liam  o  Perió- 
dico dos  Pobres,  outros  jogavam  o  voltarete ;  eu  tirava  os  meus  si- 
gnificados de  Tito  Livio  e  adormecia  —  sendo  cônsules  Marco  Tullio 
e  PuLlio  Vitellio. 

Ás  oito  horas  e  meia,  quando  os  tambores  e  as  cornetas  do 
Castello  tocavam  a  recolher,  comia-se  peixe  cosido,  bifes,  esperre- 
gado,  enormes  quantidades  de  melão;  procedia-se  á  operação  de 
ir  cada  um  para  o  seu  quarto  queimar  os  mosquitos;  e  todos  se 
deitavam  em  seguida. 

Alta  noite  acordava-se  por  via  de  regra  uma  vez.  No  grande 
silencio  da  terra  ouvia-se  o  mar  bramir  e  rebentar  na  costa  com 
um  echo  solemne  e  triste.  Uma  voz  ao  longe  chamava :  Ó  sê  Ma- 
chado! Ó  sê  Machado!  Eram  os  pescadores  que  vinham  acordar  o 
patrão  de  uma  lancha.  Na  capoeira,  umas  azas  espanejavam  rui- 
dosamente. Cantava  um  gallo.  A  gente  pensava:  «Está  digerido  o 
melão.»  E  adormecia-se  outra  vez,  emquanto  um  mosquito,  que 
escapara  á  queima,  zumbia  nas  trevas,  guloso  e  feroz. 


Muita  gente  vinha  do  Porto,  de  madrugada,  tomava  banho  e 
regressava  á  cidade.  Este  serviço  era  em  grande  parle  feito  pelos 
carroções,  um  dos  mais  extraordinários  inventos  do  espirito  por- 
tuense, apphcado  á  locomoção. 

O  carroção  era  um  pequeno  prédio,  com  quatro  rodas,  pu- 
xado por  uma  junta  de  bois.  Dentro  havia  duas  bancadas  paralle- 
las,  em  que  se  sentavam  os  viajantes.  Por  fora,  sobre  uma  faixa 
pintada  de  uma  còr  alegre,  lia-se  o  nome  do  proprietário  e  do  in- 
ventor da  machina:  Manoel  José  de  Oliveira. 

Quanta  gente  cabia  n'um  carroção?  Nunca  se  pude  saber.  Um 
carroção  levava  uma  familia.  Que  esta  fosse  pequena  ou  grande, 
o  carroção  não  se  importava  cora  isso  e  levava-a.  Levava-a  de  va- 
gar, mas  ia-a  levando  sempre. 

Havia  famílias  enormes  que  não  cabiam  em  duas  salas  e  que  se 
accommodavam  n'um  carroção.  No  inverno,  uma  d'essas  ingentes 
molles  chegava  á  porta  do  theatro  de  S.  João.  A  portinhola  abria- 
se;  havia  uma  escada  com  corremão  para  descer;  o  carroção  co- 
meçava a  despejar  senhoras.  O  pateo  do  theatro  enchia-se  e  o  car- 
|i   roção  continuava  sempre  a  deitar  gente.  Pasmava-se  de  que  elle 
'   podésse  conter  tantas  pessoas,  ia-se  olhar  e  encontrava-se  ainda,  lá 
dentro,  no  escuro,  a  mexer-se  e  a  preparar-se  para  sahir,  tanta  gente 
I  como  a  que  estava  fora  I 


26  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

Nas  viagens  para  a  Foz,  para  Leça,  para  a  Ponte  da  Pedra, 
para  Mathosinhos,  além  da  gente,  ia  também  nos  carroções  louça, 
fatos,  roupas,  viveres  para  os  viajantes  e  penso  para  os  bois !  Para 
este  fim  havia  nas  bancadas,  por  baixo  das  almofadas,  esconderi- 
jos tenebrosos  e  profundos,  onde,  no  caso  de  necessidade,  poderia 
arruraar-se  -^  outra  familia. 

Manei  Zé  de  Oliveira,  ou  simplesmente  Manei  Zé,  como  por 
elegante  abreviatura  se  lhe  chamava,  alugava  os  seus  carroções 
por  ura  pinto,  como  os  quartos  da  hospedaria  do  Damião. 

Por  tão  módica  quantia  teve  Manei  Zé  por  muitos  annos  o  glo- 
rioso privilegio  de  fazer  viajar  a  população  portuense  pelos  diver- 
sos subúrbios  tão  pittorescos  da  sua  cidade  invicta. 

Como  os  carroções  andavam  tão  devagar  como  as  noras,  de- 
pois de  entrar  a  gente  para  dentro  d'elles  e  de  se  pôr  a  olhar  para 
fora  pelos  postigos,  não  tinha  remédio  senão  observar  por  muito 
tempo  os  togares;  de  sorte  que  as  viagens  feitas  por  este  modo 
eram  para  sempre  memoráveis. 

O  primeiro  golpe  na  popularidade  enorme  de  Manei  Zé  foi-lhe 
verberado  pelo  segeiro  Tavares,  da  rua  da  Boa-Vista.  Em  certo  dia 
de  funcção  suburbana  Tavares  pòz  na  rua  três  caiTOçÕes  novos,  de 
cores  extraordinárias,  maiores  que  os  de  Manei  Zé  e  aperfeiçoa- 
dos com  o  appenso  festival  de  uma  bandeira.  Estes  três  carroções 
chamavam-se  o  Rápido,  o  Veloz  e  o  Ligeiro.  Do  Porto  á  Foz,  uma 
légua,  ida  e  volta,  grande  celeridade,  a  toda  a  força  dos  bois, — 
um  dia. 

Manei  Zé,  vendo  passar  o  Ligeiro — e  só  Deus  sabe  o  tempo 
que  o  Ligeiro  levava  a  passar  I  —  desmaiou  de  desgosto. 

Além  d'estes  carroções  de  aluguer  puxados  por  bois,  havia  os 
carroções  particulares,  puxados  por  vaccas. 

Sobre  um  jogo  de  quatro  rodas  enormemente  altas,  tendo 
duas  vezes  o  diâmetro  das  rodas  das  antigas  seges  de  cortinas,  al- 
çavam-se  quatro  tremendos  ganchos  de  ferro;  da  ponta  d'estes 
ganchos  desciam  quatro  valentíssimas  correias ;  na  extremidade 
d'estas  correias  suspendia-se  a  caixa  do  carroção  particular,  tendo 
na  trazeira  uma  taboa  e  duas  alças  para  um  criado  de  pé,  e  ao 
lado,  por  baixo  das  portinholas,  dois  estribos  de  que  se  desdobra- 
va uma  escadaria  para  subir  ao  monumento. 

Consagrando  estas  modestas  linhas  á  historia  da  antiga  viação 
portuense,  não  posso  oraittir  a  descripção  do  notável  carroção  da 
minha  familia. 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  27 

Um  tio  meu,  irmão  de  minha  avó,  que  fora  frade  Grillo,  in- 
ventou o  carroção  —  de  via  estreita. 

Meu  tio,  que  era  também  meu  padrinho,  tinha  uma  enorme 
forpa  legendaria,  comparável  á  do  príncipe  Maurício  de  Saxe,  que 
fazia  um  saca-rolhas  torcendo  um  prego  com  as  pontas  dos  dedos. 
Pouco  mais  ou  menos  com  a  mesma  facilidade  com  que  eu  dobro 
pelo  meio  um  bilhete  de  visita,  meu  tio  dobrava  na  sua  forte  mão 
um  pinto  de  boa  e  rija  prata  de  lei,  do  tempo  do  snr.  D.  João  v. 
ImpossibiUtado  de  andar,  em  consequência  de  ter  sido  gravemente 
mordido  em  uma  perna  por  um  cão  de  fda,  empregava  os  seus 
ócios,  de  erudito  e  de  pregador  notável,  em  trabalhos  manuaes. 
Eram  feitos  por  elle  todos  os  instrumentos  ruraes  da  nossa  peque- 
na lavoura. 

O  seu  engenho  mechanico  levou-o  um  dia  a  mandar  construir, 
com  a  sua  coUaborafão  e  debaixo  da  sua  direcção  technica,  um 
carroção. 

A  modificação  essencial  introduzida  por  elle  consistia  em  af- 
feiçoar  as  rodas  ao  trilho  ordinário  dos  carros  de  bois  de  modo 
que  o  seu  carroção  podésse  penetrar  nos  caminhos  viccinaes  das 
aldeias,  seguir  os  atalhos,  subir  aos  montes,  entrar  nos  campos, 
etc.  A  outra  modificação  era  a  suppressão  das  molas,  dos  ganchos 
de  ferro  e  dos  suspensórios  de  couro.  O  carroção  de  meu  tio  — 
sinto  dizel-o  —  não  era,  em  resumo,  mais  que  uma  caixa  enverni- 
zada, com  rodas  e  com  postigos  envidraçados.  De  resto,  infinita- 
mente commodo,  porque,  como  elle  muito  bem  dizia,  «ia-se  n'aquil- 
lo  para  toda  a  parte».  Somente  não  se  ia  bem. 

A  não  ser  eu,  que  tinha  então  cinco  annos,  ninguém  da  mi- 
nha famiha  consentiu  jamais  em  acompanhar  meu  tio  dentro  da 
coisa  a  que  elle  chamava  um  carroção,  mas  a  que  minha  avó  cha- 
mava —  um  moinho. 

Os  mesmos  víveres  eram  difiiceis  de  transportar,  porque  tudo 
quanto  sahia  de  casa  sob  as  formas  de  garrafas,  perna  de  vitella, 
pão,  queijo,  laranjas,  etc,  chegava  ao  termo  da  nossa  viagem  sob 
ã  fórraa  única  e  homogenia  —  de  picado. 

A  meu  tio,  porém,  todos  os  carroções  lhe  pareciam  inferiores 
ao  seu. 

—  Olha,  —  dizia-rae  elle  quando  passava  o  carroção  do  nosso 
visinho,  o  visconde  de  Beire  — repara  n'aquino:  n'aquella  caran- 
guejola tudo  são  balanços :  balanço  para  diante,  balanço  para  traz, 
balanço  para  a  direita,  balanço  para  a  esquerda.  No  nosso  carroção 
ha  um  balanço  só,  único,  exclusivo,  que  é  o  balanço  de  baixo  para 
cima. 


28  AS  PRAIAS   DE    PORTUGAL 


\ 


Assim  era,  effectivaraente.  Esse  balanço,  porém,  valia  por  to- 
dos os  outros,  porque  era  tão  forte,  que  por  muitas  vezes  me  fez     | 
ir  apalpar  o  tecto  com  a  nuca.  I 

— É  para  te  abrir  esse  juízo!  dizia-me  meu  tio,  usando  assim,     ■ 
como  orador  sagrado,  da  figura  de  rhetorica,  que  toma  o  conteúdo 
pelo  continente.  Jl 

No  sentido  litteral  o  que  verdadeiramente  ameaçava  abrir-  V 
se-me  não  era  o  juizo,  era  a  cabeça. 

Ainda  assim  divertiamo-nos.  Meu  tio  estava  no  carroção  como 
no  seu  quarto.  As  caixas  dos  bancos  tinham  chaves  e  levavam  as 
suas  coisas,  provisões  de  differentes  géneros,  os  seus  livros,  a  sua 
espingarda.  Eu  soltava  no  ar  o  meu  papagaio  de  papel,  e  levava-o 
seguro  pelo  fio  dentro  do  carroção;  meu  tio  deixava-me  algumas 
vezes  dar  tiros  aos  pardaes. 

Cm  dia  —  dia  fatal !  —  meu  tio  entendeu  que  o  seu  carroção 
era  de  via  ainda  mais  reduzida  do  que  elle  effectivamente  era. 
Mandou-o  metter  no  campo  por  um  caminho  estreitíssimo.  De  re- 
pente achamo-nos  atravancados  entre  dois  prédios  rústicos.  Foram 
baldados  todos  os  esforços  que  se  empregaram  para  nos  desen- 
cravar  d'alli:  o  carroção  não  ia  para  diante  nem  vinha  para  traz 
de  modo  algum.  Tivemos  então  todos  que  nos  separar.  Dissemos 
adeus  aos  bois  pelo  postigo  da  frente.  O  gado  foi  por  um  lado, 
nós  viemos  por  outro;  e  por  cima,  das  janellas  das  casas,  desce- 
ram homens  que  desfizeram  o  carroção  e  o  trouxeram  para  nossa 
casa,  em  pedaços,  ás  costas. 


Além  das  familios  que  iam  á  Foz  de  carroção,  havia  as  pes- 
soas que  iam  em  burros.  Ao  pé  de  Sobreiras  parava  tudo  para 
desaguar  o  gado  e  para  os  homens  comerem. 

Ninguém  fazia  o  trajecto  de  ida  e  volta  á  Foz  em  menos  de 
seis  a  oito  horas,  comprehendido  o  tempo  do  banho. 


No  meio  d'esta  geração  vagarosa,  pacata,  ronceira,  havia  uma 
mocidade  scintillante,  vivaz,  animadíssima. 

O  folhetim  portuguez  teve  então  a  sua  edade  de  ouro  nas  co- 
lumnas  do  Nacional,  onde  experimentavam  as  suas  armas  com  o 
mais  brilhante  successo  Evaristo  Basto,  Camillo  Castello-Branco,  Ar- 
naldo Gama  e  Ricardo  Guimarães,  mais  tarde  visconde  de  Benal- 
canfôr. 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  29 

No  dandysmo  os  Bl■o^Yns,  os  Monteiros,  os  Maias  e  outros,  cons- 
tituiam  um  grupo  que  cão  teve  egual,  e  que  poderia  ser  compa- 
rado ao  que  era  pelo  mesmo  tempo  em  Pariz  a  celebre  sociedade 
de  Roger  de  Beauvoir. 

Um,  jogando  ii'uma  soirce  na  Foz,  perdeu  um  cavallo  inglez 
que  apostara  n'uma  carta  contra  50  moedas.  Veio  em  seguida  á 
rua,  montou  o  cavallo,  esporeou-o  pelas  escadas  e  pelos  corredo- 
res, e  foi  pul-o  na  casa  de  jogo  ao  pé  da  cadeira  de  José  Lombar- 
di,  que  o  ganhara. 

Outros,  sahindo  a  cavallo  de  madrugada,  e  encontrando-se  no 
largo  da  Trindade  com  os  piquetes  da  guarda  municipal,  que  ti- 
nham patrulhado  a  cidade  e  que  se  reuniam  n'esse  ponto  para 
marcharem  juntos  para  o  quartel,  carregaram  a  guarda,  desarma- 
ram-a  e  dispersaram-a  a  chicote. 

Os  de  outra  cavalgada  tomaram  de  uma  vez  o  Castello  do 
Queijo,  aprisionaram  os  veteranos  que  faziam  a  guarnição,  carre- 
garam as  peças,  levantaram  a  ponte  levadiça  e  Gearam  lá  dois 
dias,  homens,  mulheres  e  cavallos,  vivendo  uns  de  amor,  outros 
de  champagne,  outros  de  palha,  conforme  as  necessidades  do  tem- 
peramento e  do  appetite  de  cada  um. 

Os  jornalistas  tinham  uma  audácia  e  uma  fúria,  de  que  não 
ficou  exemplo.  Conta-se  que  três  bons  burguezes,  membros  da  So- 
ciedade da  herva,  que  assim  se  chamava  a  Assembleia  Portuense, 
fulminados  n'um  folhetim,  morreram  successivamente  de  ataques 
apopieticos  dentro  de  quinze  dias. 

O  respeito  das  formulas  exteriores  era  tal  que  nenhum  nego- 
ciante ousava  deixar  crescer  o  bigode  e  nenhum  homem  grave  fu- 
mava na  rua.  Da  força  da  resistência  contra  este  espirito  humilde, 
timorato  e  burguez,  bastará  dar  um  exemplo: 

Eu  mesmo  vi  um  dia  saliir  da  Foz  uma  burricada,  em  que  um 
dos  cavalleiros  ia  em  ceroulas,  com  as  chinellas  de  ter  no  quarto, 
levava  aos  hombros  um  lençol,  e  na  cabeça,  enfiada  pelo  cano,  uma 
enorme  bota  de  montar. 

Os  negociantes  do  Souto,  do  largo  da  Feira  e  da  rua  das  Flo- 
res, tinham  epylepsias  de  rancor  perante  estas  exhibições  do  es- 
cândalo, mas  nenhum  protestava  ostensivamente,  porque  os  rapa- 
zes doesse  tempo  ainda  se  não  chamavam  os  crevés,  chamavam-se 
os  leões;  usavam  calças  á  hussard  e  esporas,  bigodes  longos  e  re- 
curvos; traziam  em  vez  de  bengallas  casse-têtes  de  castões  de  fer- 
ro ou  de  galho  de  veado,  suspensos  do  pulso  por  uma  asa  de  couro. 

Sob  o  seu  aspecto  bellicoso,  tinham  um  grande  fundo  de  inno- 


30 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 


cencia  e  de  candura,  uma  sentimentalidade  terna  e  magoada;  eram 
umas  crianças  —  terriveis. 

Deram  de  uma  vez  um  jantar  de  despedida  a  uma  alegre  ra- 
pariga franceza.  O  jantar  celebrou-se  n'uma  casa  de  Entre-Paredes, 
e  foi  todo  servido  em  louça  da  China  e  em  cristaes  inglezes.  Á  so- 
bre-meza  houve  um  hurrah  temeroso  :  os  convivas  pegaram  na  toa- 
lha e  arrojaram  toda  a  baixella  á  rua. 


O  serviço  dos  carroções  e  dos  burros,  sobre  os  quaes  as  se- 
nhoras regressavam  do  banho  com  os  seus  narizes  frios  e  os  seus 
chapéus  postos  em  cima  de  seis  lenços  atados  na  cabeça,  foi  am- 
pliado por  ílm  com  o  serviço  dos  omnibus,  cuja  empresa  falliu 
cuido  eu. 

Os   homens  sérios  não  queriam  sujeitar-se   ás  convivências^ 
que  ás  vezes  os  esperavam,  ou  aos  ditos  de  que  eram  objecto  se 
não  confraternisavam  com  a  companliia  que  se  lhes  deparava  no 
omnibus. 

Na  carreira  d'estas  carruagens,  quando  o  ventre  de  um  ca- 
pitalista assomava  á  portinhola  para  se  apear,  havia  na  almofada 
uma  voz  que  bradava:  «Previne-se  o  pubhco  de  que  vae  arrotar 
o  omnibus!»  Logo  que  o  poderoso  burguez  saltava  á  rua,  outra 
voz  não  menos  temerosa  gritava  de  dentro:  «Meus  senhores  e 
minhas  senhoras  1  o  omnibus  arrotou ;  vamos  proseguir  I  » 

Aos  omnibus  seguiram-se  os  chars-à-bancs ;  e  desde  que  estes 
entraram  na  carreira  da  Foz,  partindo  do  Carmo  e  da  Porta  No- 
bre, o  movimento  dos  banhistas  augmentou  extraordinariamente  e 
a  vida  n'esta  praia  entrou  na  sua  phase  moderna.  Como  eram  in- 
suíTicientes  as  casas  da  antiga  povoação,  circumscripta  nos  peque- 
nos bairros  do  Monte,  da  Praia  e  da  Cantareira,  as  novas  edifica- 
ções começaram  a  estender-se  por  Carreiros,  aonde  se  abriu  a  for- 
mosa estrada  de  Lessa,  batida  pelo  Oceano,  varrida  pela  brisa  ma- 
rítima, impregnada  das  penetrantes  exhalaçues  salgadas.  Alguns 
dos  novos  prédios  construídos  n'este  sitio,  um  dos  mais  bellos  do 
nosso  litoral,  seguiram  os  modelos  das  construcções  francezas  do 
mesmo  género  e  oíTerecem  o  elegante  aspecto  modesto  e  confor- 
tável, tão  raro  nas  casas  portugaezas. 


O  movimento  da  sociedade  na  Foz  tem  o  que  quer  que  seja 
de  desordenado  e  confuso  que  perturba  os  que  chegam  de  novo. 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  31 

Não  se  sabe  facilmente  de  onde  é  que  tanta  gente  vem  e  para 
onde  é  que  tanta  gente  vae.  Os  estrangeiros  acham-se  isolados  no 
meio  da  multidão  e  julgam-se  infastiadamente  fora  dos  interesses 
que  determinam  aquelle  movimento  geral.  A  rasão  é  que  toda  a 
gente  na  Foz  anda  na  rua  sem  outro  destino  que  não  seja  sahir  de 
casa  e  voltar  para  casa. 

A  arte  de  empregar  o  tempo  agradavelmente,  rara  em  portu- 
guezes,  é  inteiramente  desconhecida  na  Foz.  Não  ha  o  estabeleci- 
mento dos  banhos  como  nas  praias  francezas;  não  ha  um  parque 
com  flores,  com  agua,  com  musica,  com  jogos  de  jardim,  para 
onde  as  mulheres  e  as  crianças  vão  estar  ao  ar  livre ;  não  ha  se- 
quer um  club  —  o  triste  club  —  pelo  menos  em  que  as  senhoras 
se  reunam  de  dia. 

Almoçar,  jantar,  enxugar  os  cabellos,  é  a  occupação  ordinária 
das  banhistas  n'esta  praia,  desde  as  oito  horas  da  manhã  até  o  fim 
da  tarde. 


Á  noite,  os  homens  jogam  nos  tripots. 

Algumas  senhoras  do  Porto  recebem  nas  suas  casas  ou  orga- 
nisam  soirées  em  uma  casa  commum  destinada  especialmente  para 
este  fim.  Estas  soirées  são  extremamente  agradáveis. 

As  senhoras  portuenses,  em  cujas  píiysionomias  predomina 
o  louro  elemento  minhoto  e  britânico,  entre  as  quaes  é  raro  o 
typo  meridional  da  mulher  de  Lisboa,  são  inteiramente  amáveis. 

Vestem-se  melhor  para  o  campo  e  para  viagem,  do  que  para 
baile.  Nas  suas  toilettes  decotadas,  nos  seus  vestidos  cobertos  de 
renda,  nos  seus  penteados  difficeis,  vistas  á  noite,  entre  as  flores, 
no  meio  das  bandejas  dos  gelados,  sob  os  lustres,  falta  ás  vezes 
uma  pequena  coisa,  uma  prega,  uma  dobra,  um  vinco,  um  toque 
quasi  indizível,  mas  essencial  ao  effeito  da  linha. 

Umas  vezes  é  a  roda  do  vestido  que  não  tem  a  devida  di- 
mensão, que  não  está  bem  distribuída,  que  não  quebra  onde  de- 
via quebrar,  e  por  esse  motivo,  na  valsa  ondula  mal,  descobre  de 
mais  ou  não  descobre  bastante  o  pé,  e  ao  sentar  n'um  fauteuil  ou 
no  canto  de  uma  ottomana,  não  se  aparta  bem,  rapidamente,  cora 
um  impulso  do  pé,  para  um  lado;  e  cae  m.al. 

Outras  vezes  são  as  luvas,  demasiadamente  apertadas,  que 
não  deixam  fechar  a  mão,  e  são  um  indicio  flagrante  e  terrível  de 
refinamento  provinciano. 

Ha  n'alguns  casos  o  cabello,  a  complicada  questão  do  cabello, 
que  nem  sempre  se  resolve  satisfactoriamente. 


32  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

No  penteado  ha  dois  géneros:  o  género  desdém  e  o  género 
esmero.  O  género  desdém  fica  bem  ás  louras.  Os  cabellos  castanhos 
e  os  cabellos  pretos  não  supportam  senão  o  género  esmero. 

Os  escolhos  do  penteado  desdém  são  a  pellicula  e  o  gancho. 
Uma  pellicula,  uma  pelliculasinha  muito  pequenina,  o  mais  ténue 
indicio,  a  mais  remota  suspeita  de  caspa,  compromette  tudo.  O 
gancho  que  se  deixa  ver  está  no  mesmo  caso  da  pellicula. 

O  perigo  do  penteado  esmero  é  a  complicação  e  os  cosméti- 
cos: desde  que  elle  não  reúne  a  extrema  simplicidade  com  a  mi- 
nima  porção  de  pomada,  está  perdido. 

Estes  senões  são  coisas  tão  subalternas  e  tão  secundarias,  que 
eu  só  as  menciono  a  titulo  de  pura  curiosidade  local. 

De  resto,  as  soirées  da  Foz,  mesmo  género  das  soirées  por- 
tuenses, são  animadíssimas.  As  senhoras  teem  alegria  e  vivacida- 
de. Conversam  affectuosamente,  com  uma  certa  ingenuidade  ca- 
ptivante.  A  entonação  e  o  compasso  da  sua  maneira  especial  de 
declamar  dà-lhes  na  conversação  um  ar  sympathico,  de  uma  bon- 
dade risonha,  que  fica  bem  entre  os  bons  dentes  brancos,  nas 
lindas  boccas  frescas  e  vermelhas. 

Os  homens  teem  o  tom,  o  ar  e  a  moda  ingleza ;  cultivam  es- 
meradamente a  suissa,  a  gravata  apparatosa,  o  fraque  curto,  a  bota 
grossa  e  o  chapéu  de  chuva.  Andam  depressa  e  a  largas  passadas. 
Jantam  sempre  em  famiha.  Os  restaurantes  e  as  mezas  redondas 
são  apenas  frequentadas  pelos  viajantes  e  pelos  extrangeiros.  Ha 
dois  annos  contavam-se  apenas  na  cidade  toda  quatro  sujeitos  va- 
dios. Ultimamente,  consta-nos  que  foi  um  d'elles  para  o  Brazil, — 
de  enfastiado;  e  que  o  outro  montou  uma  casa  de  commissões, — 
para  ter  para  onde  ir.  Assim,  o  numero  dos  habitantes  do  Porto 
inteiramente  desoccupados,  deve  n'esta  data  achar-se  reduzido  — 
a  dois. 

Ha  quatro  annos,  os  portuenses,  considerando  que  Lisboa  gos- 
tava muito  de  touros,  e  que  elles  detestavam  os  touros,  pareceu- 
Ihes  que  esta  differença  constituía  para  a  sua  cidade  uma  inferio- 
ridade burgueza,  e  na  semana  seguinte,  a  cidade  em  peso,  como 
um  só  homem,  como  um  só  fadista,  pediu  touros,  muitos  touros, 
que  lhe  não  dessem  senão  touros! 

—  Pois  quê!  pensavam  elles,  os  lisboetas  cuidam  que  são 
muito  por  gostarem  de  touros?  Não  são  nada.  Vamos-lhes  provar 
immediatamente  que  gostamos  trezentas  mil  vezes  mais  de  touros 
do  que  elles. 

Construiram-se  duas  praças  e  as  touradas  principiaram.  Êxito 
enorme!  Concorrência  immensa!  Geral  frenesi  de  enthusiasmo!  A 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL  33 


sociedade  tomou  um  certo  ar  toureiro.  As  senhoras  mostravam-se 
interessadas  na  qualidade  dos  curros,  queriam  ver  o  gado,  punham 
gravatas  vermelhas  e  offereciam-se  para  dar  monas.  Muitos  cavai- 
los  appareciam  arreados  ao  modo  do  Ribatejo,  com  o  xairel  de 
pelle  e  estribos  de  pau.  Os  mancebos  á  moda  vestiam-se  de  jaleca 
e  cinta,  com  calças  de  boca  de  sino,  aos  sabbados  de  tarde.  As 
duas  praças  eram  insuílicientes  para  a  multidão  dos  aficionados. 
Os  lidadores  eram  cobertos  de  charutos,  de  rebuçados,  de  palmas 
,e  de  gritos  de  triumpho.  Finalmente,  um  dehrio ! 
I  Ao  cabo  de  dois  annos  ninguém  mais  voltou  aos  touros.  Os 
'elegantes  deram  as  jalecas  e  as  calças  de  boca  de  sino  aos  seus 
criados  de  cavallariça;  as  senhoras  nunca  mais  tornaram  a  fallar 
em  gado;  as  guitarras  que  haviam  sido  importadas  desapparece- 
ram  da  circulação;  o  fado,  que  alguns  dedos  femininos  dedilhavam 
nos  teclados  de  Herard,  deixou  de  acordar  os  eccos  surprehendi- 
dos  e  vexados  dos  salões  portuenses;  as  duas  praças,  não  tendo 
outra  coisa  que  fazer,  começaram  a  apodrecer  e  esperam  anciosas 
o  primeiro  pretexto  decente  para  se  deixarem  cahir. 

Mas  Lisboa  tinha  recebido  uma  hção  terrível !  O  Porto  tinha- 
Ihe  mostrado  que,  se  quizesse  gostar  de  touros,  ninguém  gostaria 
mais,  ninguém  seria  mais  maníaco,  mais  doido,  mais  frenético  por 
touros,  do  que  elle !  É  para  que  se  saiba ! 

O  portuense  é  o  homem  mais  dedicado,  mais  serviçal,  mais 
bom  homem.  Somente  ha  três  coisas  de  que  elle  não  gosta  —  e 
in'esse  ponto  é  mau  brincar  com  elle.  Não  gosta  de  Lisboa.  Não 
Igosta  da  polícia.  Não  gosta  da  auctorídade.  Da  auctorídade  vinga-se, 
|despresando-a.  Da  policia  vinga-se,  resistindo-lhe.  De  Lisboa  vin- 
iga-se,  recebendo  os  lisboetas  com  a  mais  amável  hospitalidade  e 
com  a  mais  obsequiosa  bisarría. 


O  serviço  dos  caminhos  de  ferro  americanos,  explorados  com 
talento,  converterá  dentro  em  pouco  tempo  a  Foz  n'um  bairro  do 
Porto.  A  empreza  do  carril  da  Boa-Vista  annuncia  bilhetes  annuaes 
a  preços  reduzidíssimos.  Como  esses  bilhetes  são  pessoaes  e  ín- 
transmissíveís,  em  cada  bilhete  será  impressa  a  photographia  do 
seu  dono.  Para  este  fira,  a  empreza  fará  de  graça  o  retrato  photo- 
graphíco  de  cada  um  dos  seus  chentes. 

As  casas  na  Foz  alugam-se  ao  mez  ou  pela  temporada.  As  ren- 
das em  qualquer  das  casas  orçam  pelas  de  Lisboa.  Os  mezes  mais 


34  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

baratos  são  os  de  junho  e  agosto.  A  grande  affluencia  realisa-se  era 
setembro  e  outubro. 

As  principaes  hospedarias  são  a  de  Mary  Castro  —  cosinha  in- 
gleza;  a  da  Boa- Vista  —  cosinha  portugueza;  a  do  Louvre  —  cosi- 
nha mixta,  portugueza  e  franceza.  Os  preços  são  de  1í5»200  por 
dia. 


LEÇA  E  MATHOSINHOS 


Leça  e  Mathosinhos  são  para  a  Foz  o  que  a  Ponte  de  Algés  e 
3.  José  de  Ribamar  são  para  Pedrouços :  uma  espécie  de  appenso. 
d  que  não  obsta  a  que  Leça  seja  de  per  si  só  mais  importante  que 
3.  José  de  Ribamar,  Algés  e  Pedrouços,  todos  juntos. 

O  grande  defeito  de  Leça  é  que  a  sua  vida  objectiva  é  quasi 
3xclusivamente  mineral  e  vegetal.  Entre  tantas  casas,  tantos  quin- 
;aes,  tão  bellas  arvores,  o  animal  desapparece,  o  cão  esconde-se, 
D  homem  sepulta-se,  a  mulher  some-se. 

j  O  habitante  de  Leça  foi  por  muito  tempo  para  nós  como  o  ha- 
bitante da  antiga  lua — um  problema. 

Um  dia  —  ha  talvez  dezoito  annos  —  achava-se  o  obscuro  au- 
ítor  d'estas  regras  n'uma  barraca  da  praia  da  Foz  embrulhado  n'um 
ençol,  com  os  pés  dentro  de  uma  gamella.  Coelho  Louzada,  o  des- 
litoso  escriptor,  estava  ao  meu  lado,  em  outra  barraca,  embru- 
hado  n'outro  lençol,  com  os  pés  n'outra  gamella.  Tínhamos  chegado 
lo  nosso  banho. 

No  momento  da  reacção  eu  estremeci  e  senti  que  tinha  na  ca- 
beça a  ideia.  Louzada,  a  quem  communiquei  esta  noticia,  aconse- 
Ihou-me  que  puzesse  os  pés  para  cima  e  mettesse  na  gamella  a 
fiabeça. 

j  A  ideia,  porém,  que  me  habitava  irrompeu.  Era  ir  d'ali  a  ca- 
i^allo  pela  beira-mar,  até  Leça. 

[l  Lousada  acompanhou-rae.  Alugamos  dois  machinhos  na  Rosa  das 
Burras.  O  marido  da  Rosa,  um  ruivo,  cheio  de  sardas,  com  a  voz 
lílautada,  veio  fazer  a  operação  difflcil  de  segurar  o  estribo  e  acer- 
i-ar-nos  os  loros  ao  comprimento  das  pernas.  Problema  insolúvel ! 
Os  furos  dos  loros  na  Rosa  das  Burras  estavam  distribuídos  de  ma- 
JQeira  que  nunca  os  dois  estribos  ficavam  em  nivel. 


36  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

Quando  os  viajantes  se  queixavam  d'este  estado  de  coisas,  a 
Rosa  e  o  Ruivo  começavam  por  dar  pontapés  com  os  bicos  dos  so- 
cos no  ventre  dos  machinhos.  Se  ainda  assim  se  não  acertavam  os 
estribos,  elles  batiam  nos  filhos  com  os  loros  em  disponibilidade. 
Se  continuava  a  differença  na  altura  dos  estribos,  o  Ruivo  e  a  Rosa 
batiam  ura  no  outro.  Se  o  passageiro,  depois  de  todos  estes  exfor- 
ços  para  se  lhe  acertarem  os  estribos  ainda  se  não  dava  por  satis- 
feito, batiam  no  passageiro: 

Portanto,  apenas  elles  acabaram  de  bater  nos  machinhos,  nos 
filhos  e  em  si  próprios,  nós  apressamo-nos  a  declarar  que  achá- 
vamos os  estribos  óptimos,  e  despedimos  por  Carreiros  fora  a  toda 
a  velocidade  dos  machinhos,  que  fugiam  como  settas,  imaginando 
talvez  que  nós  já  tínhamos  levado  a  nossa  conta  e  que  era  chega- 
da a  vez  de  se  tornar  a  começar  por  elles  o  processo  da  Rosa  para  a 
regularisação  dos  estribos. 

Ao  chegar  a  Mathosinhos,  no  cães,  perto  da  ponte  estava  uma 
mulher  vendendo  louça;  corapramos-lhe  dois  assobios  de  barro 
vermelho  vidrado,  galanteria  muito  curiosa,  porque  de  um  lado  era 
um  apito  e  do  outro  lado  era  um  gallo. 

Atravessamos  a  ponte  de  arcos  de  pedra  que  une  as  duas  pit- 
torescas  margens  do  rio  Leça  e  entramos  na  povoação  que  tem  o 
nome  do  rio.  Corremos  todas  as  ruas  ao  trote  mais  estrepitoso  que 
os  machinhos  podiam  executar  por  cima  das  lages  das  calçadas, 
assobiávamos  ambos  com  toda  a  força  a  que  se  prestavam  os  gallos 
pelo  lado  em  que  eram  apito. 

Com  tanta  bulha  é  impossível  que  não  appareça  alguém,  que 
alguém  não  saia  á  rua  ou  não  assome  ás  janellas!  Ninguém  appa- 
recia. 

Passamos  por  um  taberneiro,  que  tinha  á  sua  porta,  preso  ao 
humbral,  sahindo  para  fora  como  a  haste  de  uma  bandeira,  um  fo- 
guete. Este  homem  vendia  artifícios  de  fogo.  Gomprainos-lhe  bom- 
bas que  começamos  a  fazer  estalar  pelas  ruas  desertas  com  um  ri- 
bombo terrível.  Pareceu-nos  então  ouvir  uma  voz  do  alto  de  uma 
janella;  olhamos:  era  um  papagaio.  Esta  antipathica  ave  estava  no 
seu  poleiro  meneando-se,  erguendo  ora  um  pé,  ora  outro,  e  regou- 
gando  esta  phrase :  Passa  fora  cachorro ! 

íamos  partir,  iamos  regressar  á  Foz,  desenganados  de  que  não 
veríamos  ninguém,  quando,  ao  passar  na  praia,  avistamos  ao  longe, 
crescendo  para  nós,  uma  figura  de  mulher.  Esperamos.  Ella  veio. 
A  sua  longa  e  esgalgada  perna  comia  léguas  no  espaço;  o  seu  longo 
pé  abria  abysmos  na  areia.  Parecia  uma  cegonha  em  pernas  de  pau. 
Ura  véu  verde  cobria-lhe  o  rosto  e  descia-lhe  discretamente  até  à 


AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL  37 

cinta.  Duas  mechas  de  cabello  louro,  torcidas  em  spiral,  serpentea- 
vam-lhe  de  cada  lado  do  rosto  até  á  extremidade  do  véu  como  dois 
enormes  saca-rolhas.  Os  cinco  tentaculos  da  sua  mão,  calpada  em 
luvas  de  fio  de  Escócia,  seguravam  debaixo  do  braço  uma  larga 
pasta  de  marroquim.  Via-se-lhe  um  só  dente  mas  tão  grande  que 
parecia  vêrem-se-lhe  todos! 

Como  nós  estávamos  com  os  machinhos  atravessados  na  embo- 
cadura da  rua  que  era  provavelmente  o  seu  caminho,  ella  pareceu 
hesitar  um  momento.  Em  seguida  o  seu  pé  ergueu-se,  ergueu-se, 
ergueu-se. . .  Comprehendemos  que  ella  ia  passar  por  cima  de  nós 
e  dos  machinhos,  tiramos  á  pressa  da  algibeira  os  nossos  gallos  e 
principiamos  a  imitar  o  melhor  que  podemos  os  silvos  da  terrível 
cobra  cascavel  no  momento  pavoroso  em  que  essa  venenosa  ser- 
pe se  acha  no  auge  da  fome  e  do  rancor. 

A  do  véu  verde,  então,  deu  um  salto  para  traz  sobre  o  pé 
que  tinha  no  chão,  e  o  pé  que  estava  no  ar,  em  vez  de  passar  por 
cima  de  nós,  pousou  a  um  lado.  Ella  ficou-nos  de  perfil,  descreveu 
em  largos  e  altos  passos  uma  linha  que  fazia  angulo  recto  com  a 
que  eUa  seguia  ao  marchar  sobre  nós,  e  o  véu  verde  desappare- 
ceu  d'ahi  a  pouco  nas  brumas  opalinas  do  horisonte. 

Ninguém  mais  vimos !  Era  todavia  em  setembro,  e  Leça  estava 
cheia  de  banhistas.  Voltei  lá  no  inverno,  quando  Leça  estava  intei- 
ramente vasia,  esperando  ver  alguém :  a  solidão  era  a  mesma,  dir- 
se-hia  que  Leça  continuava  sempre  —  a  estar  cheia!  Fui  lá  outra 
vez  este  anno  no  principio  da  estação  com  Emilio  Pimentel.  íamos 
percorrendo  as  differentes  ruas  desertas  da  povoação  quando  ao 
dobrarmos  uma  esquina  ouvimos  uma  campainha  tangida  á  porta 
de  um  cottage.  O  dedo  seco  e  longo  que  carregava  no  botão  de  co- 
bre reluzente  era  um  dos  cinco  tentaculos  que  eu  vira  ha  dezoito 
annos.  Debaixo  de  um  braço  reconheci  a  mesma  pasta  de  marro- 
quim; no  rosto  o  mesmo  dente  e  os  mesmos  dois  saca-rolhas  ap- 
pareciam  como  dois  capítulos  vivos  da  inflexível  historia,  essa  gran- 
de mestra  da  vida!  EHa  olhou-me  de  lado,  obliquamente,  com  um 
olho  só,  nú,  mas  tão  vivo  que  parecia  armado  de  uma  forte  lente 
esverdenhada.  Creio  que  me  reconheceu  e  que  teve  medo  da  peço- 
nha do  assobio  que  eu  n'outro  tempo  expedia,  porque  o  seu  grande 
véu  cahiu-lhe  rápido  sobre  o  rosto  até  meio  do  peito,  a  porta  do 
cottage  abriu-se  como  tocada  por  uma  mola  secreta,  e  ella  desap- 
pareceu  como  uma  sombra. 


38  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 


Na  Praça  Nova  de  Mathosinhos  ha  uma  estatua  com  esta  inscri- 
pção: 

Á  memoria  de  Passos  Manoel 

Erigiram  este  monumento  seus  conterrâneos 

24  de  agosto  de  1864 


Este  singello  e  sympathico  testemunho  da  estima  de  alguns 
cidadãos  pela  memoria  de  um  seu  conterrâneo  illustre  vale  muito 
mais  como  intenção  moral  que  como  obra  artistica.  A  estatua  do 
eminente  estadista  e  do  insigne  tribuno  popular  parece-se  pouco 
com  o  original.  A  attitude  é  encolhida  e  falsa.  A  correcção  do  de- 
senho é  ligeiramente  contestável.  O  grande  homem,  representado 
n'esta  eííigie  de  mármore  branco,  tem  o  aspecto  de  quem  está  pe- 
dindo a  opinião  dos  passeantes  acerca  do  corte  austero  da  sobre- 
casaca monumentosa  que  elle  tem  vestida.  Essa  sobrecasaca,  tão  digna 
e  honradamente  mal  feita,  certifica  á  posteridade  a  puresa  dos  cos- 
tumes do  cidadão  que  a  enverga,  impoUuto  dos  contactos  viciosos 
e  depravados  do  dandysmo  moderno. 

Na  mesma  praça  arborisada  em  que  está  a  estatua  de  Passos 
Manoel  acha-se  o  Hotel  de  Mathosinhos,  do  snr.  José  Henrique  Gon- 
çalves, onde  os  quartos  se  alugam  por  1:000  reis  por  dia,  serviço 
todo  incluído. 

No  hotel  ha  restaurante  com  serviço  por  lista. 

A  pequena  povoação  de  Mathosinhos,  com  a  sua  igreja  e  a 
sua  enorme  imagem  do  Senhor,  tão  sympathica  à  devoção  dos  ma- 
reantes, é  extremamente  aceada,  alegre,  bem  lavada  de  ares.  Tem 
novas  casas  modernas,  elegantes,  muito  bem  repartidas,  construí- 
das recentemente  pela  Companhia  Edificadora  Portuense. 

Na  estrada  de  Mathosinhos,  perto  da  povoação,  está  o  hypo- 
dromo  do  Jockey  Club  Portuense,  vasto,  com  uma  boa  pista,  do- 
minado por  uma  esbelta  tribuna.  Tem  um  só  defeito:  é  circumdado 
por  uma  alta  vedação  de  madeira.  Para  que  é  vedal-o  por  esta  for- 
ma? Uma  simples  corda  bastaria.  Se  querem  fazer  das  corridas  um 
divertimento  nacional,  é  preciso  que  o  povo  as  veja  de  graça.  Em 
Inglaterra,  em  França,  em  todos  os  grandes  campos  de  corridas,  o 
povo  tem  o  seu  logar  gratuito.  Vedar  com  tristes  e  melancólicas 
pranchas  de  madeira  a  vista  de  quem  não  paga  é  dar  ao  sentido 
das  corridas  uma  estreita  accepção  que  pôde  parecer  mesquinha 
da  parte  de  ricos  e  cavalheirosos  gentlmen. 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  39 

Em  Leça  encontram-se  pequenas  casas  confortáveis  um  pouco 
mais  baratas  que  na  Foz,  de  apparencia  mais  modesta,  e,  para  assim 
dizer,  mais  rústica. 

Dois  lioteis — o  Central  e  o  Stephania — recebem  hospedes  a 
1:000  e  a  1:500  reis,  havendo  abatimento  para  mais  de  uma  pes- 
soa da  mesma  familia.  No  Stephania,  mais  longe  da  praia  que  o 
outro,  ha  bilhar  e  piano.  O  preço  dos  jantares  à  mesa  redonda  nos 
dois  hotéis  é  de  500  reis.  No  Central  ha  dois  jantares,  um  ás  5 
horas  outro  ás  6.  Na  primeira  mesa  recebem-se  os  hospedes  por- 
tuguezes,  na  segunda  os  cidadãos  britannicos. 

Leça  é  nos  subúrbios  do  Porto  a  praia  preferida  pela  colónia 
ingleza,  cujos  hábitos,  cavallos,  trens,  toilettes  imprimem  ao  sitio  a 
principal  animação  do  seu  aspecto  exterior. 

Na  praia  ha  um  miramar  cora  este  distico: 


Real  sociedade  humanitária. 

João  Pinto  de  Araújo, 

a  bem  da  classe  pescadora,  mandou  edificar 

em  1870 


O  miramar  é  destinado  a  dar  senha  aos  barcos  de  pesca  que 
passara  à  vista  da  costa  em  dias  de  mar  bravo. 

A  fortaleza  da  povoação,  cujos  fossos  estão  cuidadosamente 
ajardinados,  tem,  vista  de  perto,  o  caracter  pittoresco  de  uma  horta 
acastellada.  Gomo  construcção  militar  é  do  género  d'aquellas  que 
existem  na  maior  parte  das  praias  portuguezas  e  que  foram  cons- 
truídas sob  a  direcção  do  conde  de  Lipe. 

O  rio  Leça,  de  margens  ameníssimas,  presta-se  ás  pequenas 
partidas  de  canotage. 

Um  bello  passeio,  por  estrada  carroajavel,  liga  Leça  á  estação 
de  Pedras  Rubras  e  põe  os  seus  habitantes  em  communicação  com 
o  caminho  de  ferro  da  Povoa  de  Varzim  excellente  para  os  passeios 
dos  convalescentes  e  para  as  excursões  dos  paizagistas. 

Aos  caçadores  proporciona-se,  tanto  aqui  como  na  Foz,  o  tiro 
ás  rolas  de  arribação  que  passara  era  agosto  e  seterabro,  depois 
dos  priraeiros  ventos  de  leste. 


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PEDROUCOS 


É  a  mansão  offlcial  da  villagiatura  burocrática  de  Lisboa. 

Chefes  de  secretaria,  officiaes,  amanuenses,  tabelliães,  guarda- 
livros,  caixeiros  de  escriptorio,  escrivães,  retemperam  annuaimente 
em  Pedrouços  a  sua  pallida  e  sedentária  fibra  plumitiva. 

Por  isso,  Pedrouços,  a  uma  légua  de  Lisboa,  tem  um  pouco 
o  aspecto  de  uma  secretaria  do  Estado  —  ao  ar  li\Te. 

Os  prédios  á  beira  da  estrada,  que  atravessa  a  população  e 
constitua  a  sua  rua  principal,  são  graves,  sérios,  aprumados,  e 
olham  uns  para  os  outros  pacatamente,  como  quem  se  prepara 
para  jogar  o  wisth  ou  para  resolver  a  questão  da  fazenda. 

Senhoras  em  cabello  saltitam  na  rua,  de  casa  de  umas  para 
j  casa  de  outras,  visinhando. 

i  Meninas  de  bibes  brancos,  escrupulosamente  nitidos.  trazem 

os  seus  arcos. 

Seis  ou  oito  pianos  em  uso  de  ares,  anemicos,  debilitados, 
tossem  a  valsa  da  moda  com  uma  alegria  contrafeita  e  um  élan 
doente  e  abatido. 

Empregados  públicos,  de  botinas  brancas,  sentados  em  cadei- 
ras de  vime  á  porta  das  suas  habitações.  Itíem  a  prosa  da  folha 
official  e  parecem  regalados  na  convivência  d'aquelle  bom  compa- 
nheiro—  tão  espirituoso!  —  o  Diário  do  Governo. 

Nas  ruas  do  interior  da  população  vé-se  pelas  janellas,  no  in- 
terior do  primeiro  pavimento  das  casas,  a  mobiha,  as  camas,  os 
fatos,  os  viveres  e  os  habitantes,  accommodados  como  n'um  ar- 
mário repleto.  Não  ha  no  chão  a  menor  superfície  desoccupada.  e 
nota-se  com  sobresalto  que.  para  entrar  ali  uma  \1sit^;  teria  for- 
\  çosamente  de  sahir  d' ali  uma  commoda. 

i  O  lixo  das  ruas  tem  um  caracter  especial,  parecido  com  o  hxo 

i  erudito  e  pedante  que  Henry  Heine  encontrou  nos  jardins  dos  pro- 


42  AS   PRATAS   DE   PORTUGAL 

fessores  da  Universidade  de  Goettingue.  O  lixo  dePedroupos  nada  tem 
de  commum  com  o  lixo  ordinário  das  aldeias  e  das  povoações  ma- 
rítimas. É  um  lixo  urbano,  cazeiro,  mais  de  corredor  que  de  rua, 
feito  de  bocadinhos  de  trapo,  de  amostrinhas  de  hareges,  de  papeis 
velhos  e  de  jornaes  rasgados. 

Á  noite,  quando  os  candieiros  se  accendem,  as  famílias  fazem 
grupo  em  volta  da  mesa  redonda  com  tapete  azul.  É  o  recolhimento 
domestico,  modificado  no  seu  aspecto  por  uma  consideração :  —  a 
consideração  feita  pelo  recolhimento  de  que  o  estão  observando  os 
passageiros  curiosos  dos  omnibus,  que  passam  na  rua,  quasi  por 
cima  dos  pés  das  pessoas  que  estão  nas  salas. 

As  casas  são  tão  juntas  e  a  concorrência  tão  agglomerada,  que 
todos  vivem  em  contacto  intimo  uns  com  os  outros,  mesmo  ficando 
cada  um  em  casa.  Pela  manhã,  a  gente  abre  a  janella  do  seu  quarto, 
deita  a  cabeça  de  fora  e  pôde  fazer  a  barba  no  espelho  do  seu  vi- 
sinho  do  prédio  fronteiro. 

Ha  um  bom  hotel,  o  Hotel  Club,  fresco,  aceado,  dirigido  por 
uma  senhora  franceza  e  apresentando  a  boa  apparencia  interior, 
modesta  e  confortável  da  pension  bourgeoise. 

Ha  também  algumas  velhas  arvores  frondosas  dentro  da  quinta 
do  duque  de  Cadaval,  a  cuja  porta  hospitaleira  vão  as  senhoras 
nos  dias  calmosos  pedir  sombra. 

Pedrouços  tem  óptima  sombra  fresca  e  murmurosa  para  todos 
os  seus  habitantes.  Somente  é  preciso  que  estes  tenham  o  traba- 
lho de  a  ir  buscar  á  matta  de  Cadaval.  Fora  d'esta  propriedade  é 
arriscado  contar  com  outra  sombra  que  não  seja  a  que  cada  um 
projecta  nos  muros,  o  que  sempre  dá  alguma  frescura,  ainda  que 
pouca —  ás  paredes. 

A  praia,  como  todas  as  da  grande  Bahia  do  Tejo,  é  lisa,  plana, 
de  areia  fina.  O  mar  é  tranquillo,  sereno  como  um  lago,  o  melhor 
dos  banhos,  na  maré  enchente,  para  as  creanças  fraquinhas,  para 
as  mulheres  débeis,  fatigadas. 

O  forte  mar  que  bate  as  rochas  da  praia  da  Foz,  da  Figueira, 
de  Leça,  da  Povoa  de  Varzim,  convém  mais  particularmente  aos 
fortes,  ás  grossas  constituições  limphaticas,  alentadas  e  molles, 
que  precisam  do  exercício  da  resistência  e  da  lucta.  As  praias  do 
Tejo,  de  Pedrouços  a  Cascaes,  são  como  as  dos  golphos  da  Itália 
e  as  da  bahia  de  Arcachon,  as  mais  propicias  á  constituição  dos 
valetudinários  e  dos  anemicos. 

É  pena  que,  de  tantas  senhoras  que  se  banham  em  Pedrou- 
ços, no  Dá-Fundo,  em  Paço  d'Arcos,  em  toda  a  orla  do  Tejo,  tão 
poucas  nadem.  N'estas  aguas  serenas  seria  da  maior  vantagem  para 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  43 


as  mulheres  a  natação.  Este  nobre  exercício,  executado  de  bruços, 
obriga  a  uma  forte  contracção  os  músculos  do  dorso  e  do  pescoço, 
gjTnnastica  extremamente  benéfica  para  as  pessoas  que  se  fatigara 
com  o  menor  exercício,  e  ás  quaes  a  natação  desenvolve  muito  a 
força  da  columna  vertebral. 

Seria  um  óptimo  serviço  á  therapeutica  o  estabelecimento  n'esta 
praia  de  uma  escola  de  natação  para  as  senhoras. 

Nas  praias  da  Allemanha  é  raríssima  a  mulher  que  não  sabe 
nadar.  Outra  differença:  as  portuguezas  vão  para  a  agua  cora  de- 
masiado fato ;  as  allemãs  chegam  a  ir  vestidas  unicamente  com  o 
seu  bracelete.  Para  que  esta  innocente  hberdade  paradisíaca,  para 
que  esta  simples  toilette  pre-historica  se  torne  possivel,  ha  na  Alle- 
manha algumas  praias  privativas  das  senhoras,  onde  o  ingresso  é 
prohibido  aos  homens  por  meio  de  ura  distico  coUocado  a  distancia 
n'um  poste  de  madeira.  Ao  que  transgride  a  disposição  do  letreiro, 
appUca-se  uraa  multa  de  cerca  de  duas  libras . . .  Meu  Deus !  é  enorme. 
Aconselho  a  escola  de  natação,  mas  não  aconselho  na  toilette  senão 
modificações  parciaes,  porque,  a  nudez  por  ura  lado,  as  duas  li- 
bras por  outro,  em  Allemanha  é  a  lei  para  todos,  em  Portugal 
seria  para  cada  ura  a  ruina :  tantas  vezes  a  multa  seria  paga ! 

Junto  de  Pedrouços,  para  o  lado  de  Lisboa,  fica  a  praia  de 
Belém,  cujas  condições  são  muito  similhantes  ás  de  Pedrouços. 

Como  povoação,  Belera  tera  inteiraraente  o  caracter  de  ura 
bairro  urbano,  desgregado  da  capital  pela  breve  solução  de  con- 
tinuidade que  ha  nas  edificações  raarginaes  entre  Alcântara  e  a  Jun- 
queira. Supprimara  essa  solução  com  a  edificação  de  alguns  pré- 
dios, e  desde  Santa  Apolónia  até  o  Bom  Successo  ninguera  perce- 
berá onde  Lisboa  termina  e  onde  o  subúrbio  começa. 

Durante  a  melhor  parte  da  estação  dos  banhos,  em  agosto  e 
setembro,  o  principal  elemento  da  vida  social  e  da  animação  de 
Belém  e  praias  adjacentes,  é  a  feira,  a  faraosa  feira  de  Belera. 

No  grande  largo  dos  Jeronyraos,  em  frente  da  igreja,  arma-se 
a  feira  era  três  long.os  arruaraentos  parallelos.  O  primeiro  tera  de 
ura  lado  a  igreja  e  do  outro  a  linha  das  barracas  dos  bonitos,  da 
louça  das  Caldas,  da  quinquilheria,  da  ourivesaria,  dos  pequenos 
botequins,  onde  antigamente  o  serviço  se  resumia  em  nozes,  quei- 
jadas da  Sapa,  algum  doce  d'ovos  e  licor  de  rosa,  mas  onde  mo- 
dernaraente  se  vendem  os  gelados  aristocráticos,  ha  um  piano 
que  procura  com  mais  ou  menos  êxito  alegrar  os  prazeres  da  gula, 
e  sob  os  bicos  de  gaz  scintillara  os  copos  de  groseille,  larabedor 
que  parece  particularraente  grato  ás  raeninas  de  olhos  sentiraen- 


44  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

taes  que  circumdara  as  mesas,  e  aos  offlciaes  subalternos  dos  es- 
quadrões de  lanceiros  que  completam  a  roda. 

No  segundo  arruamento  estão  dispostos  os  restaurantes  am- 
bulantes, as  tascas  nacionaes,  tão  pittorescas  e  tão  características, 
presididas  pelos  Vateis  celebres  na  gastronomia  popular:  o  Velho 
Pinxa,  a  Guilhermina,  o  Vicente. 

Este  arruamento  é  o  orgulho  da  cosinha  portugueza  em  toda 
a  sua  nativa  e  genuina  pureza. 

Nos  grandes  restaurantes  de  Lisboa,  a  preoccupação  franceza 
desnortéa  os  cosinheiros  e  leva-os  a  envenenar-nos  com  burun- 
dangas  asquerosas,  cujos  effeitos  gástricos  levam  muitas  vezes  a 
victima  a  lamentar  que,  em  vez  de  terem  vendido  a  sua  alma  ao 
extrangeiro,  os  cosinheiros  a  não  tivessem  vendido  ao  diabo,  para 
não  manipularem  para  mais  ninguém  as  suas  mixordias  execran- 
das e  traidoras.  Na  tasca  da  feira  de  Belém,  a  caldeirada  de  me- 
xelhão  e  de  ruivo,  os  camarões,  as  saladas  de  alface  ou  de  pimen- 
tos, o  linguado  frito,  constituem  a  lista  do  que  Portugal  pôde  ofTe- 
recer  de  mais  perfeito  na  ordem  dos  simples  e  honestos  acepipes 
nacionaes. 

No  terceiro  arruamento  ficam  os  theatros  ambulantes,  os  acro- 
batas, os  alcides,  os  animaes  sábios,  as  figuras  de  cera,  o  tiro  ao 
alvo,  os  gigantes,  os  anões  e  as  mulheres  gordas,  que,  depois  de 
haverem  sido  admiradas  em  todas  as  curtes  e  de  terem  fascinado 
as  principaes  testas  coroadas,  consentem  afinal,  cheias  de  magna- 
nimidade e  de  transpiração,  que  os  povos,  com  a  ponta  do  dedo 
e  mediante  a  quantia  de  um  pataco,  verifiquem  que  ellas  não  tra- 
zem algodão  na  barriga  da  perna  nem  em  nenhuma  outra  parte,  a 
não  ser  talvez,  um  pouco,  no  velludo  do  vestido  —  dadiva  de  um 
poderoso  príncipe. 

Na  varanda  dos  pequenos  theatros,  os  figles  bufam  grossos 
monosylabos  mavórcios;  os  clarinetes  silvam  alegres  marchas 
triumphaes ;  uma  corneta  de  chaves,  dedilhada  por  uma  grossa 
mão  athletica  com  uma  unha  esmagada,  divaga  em  requebros  sen- 
tiraentaes  e  gemebundos.  Os  palhaços  gritam:  «Vae  prrrincipiar  a 
funcpãol  Vae  prrrincipiar!  Comprrrem  seus  bilhetes!»  A  grande  luz 
crua  do  gaz  alluraia  de  chapa  as  physionomias  dos  circumstantes. 
Uma  dançarina  macroba,  cora  a  sua  angulosa  corpulência  ossuda, 
vestida  de  tulle  de  côr  verde,  mastigada  pelo  tempo,  salpicada  de 
lentejoulas  enferrujadas  pelo  suor,  com  o  rosto  estucado  de  alvaiade 
e  alegrado  de  vermelhão,  espera  ao  lado  da  orchestra,  com  as 
suas  castanholas  nc  bolso,  que  sòe  a  hora  tle  ella  entrar  em  scena, 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  45 

juvenil,  travessa,  salerosa,  com  uma  rosa  de  papel  vermelho  af- 
íixada  na  cuia,  sorrindo  n'um  pas  de  deux  ao  gitano  de  óculos, 
que  interinamente  está  por  baixo,  n'um  nicho,  vendendo  os  bi- 
lhetes. 

E  dentro  das  pequenas  barracas  mais  obscuras  —  á  porta  das 
quaes  ura  simples  realejo  modestamente  remoe  —  o  anão,  vaidoso 
e  maligno,  passeia  com  as  mãos  nos  bolsos ;  a  mulher  gorda,  posta 
no  throno  em  que  se  ha  de  exhibir,  pede  ao  seu  empresário  que  vá 
de  uma  corrida  buscar-lhe  um  bocado  do  ventre  postiço  que  lhe  es- 
queceu em  casa;  e  o  gigante,  encolhido,  contemplando  as  suas  longas 
pernas  esgalgadas  e  frágeis,  escuta  a  musica,  os  pregões,  os  ale- 
gres ruidos  da  feira,  sente  a  mais  profunda  tristeza  nostálgica — a 
enorme  tristeza  dos  gigantes;  e  com  o  seu  pequenino  craneo,  des- 
proporcional, apertado  nas  mãos,  considera-se  o  mais  desgraçado 
dos  seres. 


Para  os  extrangeiros,  Belém  é  interessantíssimo,  pelos  monu- 
mentos que  encerra: 

O  Picadeiro  de  Belém,  onde  se  conservam  os  velhos  coches 
de  gala  dos  reis  portuguezes. 

O  monumental  paço  d 'Ajuda,  de  uma  grandeza  cezarea,  cuja 
ornamentação  caracterisa  profundamente  o  mau  gosto  inexcedivel 
da  arte  decadente,  da  orgulhosa  pompa  monarchica,  absolutista  e 
fradesca,  construído  pelo  italiano  Fabri  e  encerrando  alguns  fres- 
cos bem  pintados  por  Pedro  Alexandrino. 

Finalmente,  o  convento  dos  Jeronymos,  a  jóia  preciosa,  a  obra 
prima  da  architectura  nacional. 


O  Santo  templo 
Que  nas  praias  do  mar  está  sentado. 


A  historia  do  grande  e  famoso  mosteiro  prende-se  aos  fastos 
mais  bellos  da  nossa  historia,  à  gloria  immarcessivel  dos  nossos 
navegantes. 

No  logar  em  que  hoje  se  acha  o  edificado  convento  —  a  antiga 
praia  do  Rastéllo  —  existia  no  tempo  de  D.  Manoel  uma  simples  er- 
mida, fundada  pelo  infante  D.  Henrique  e  doada  por  elle  á  ordem 
de  Christo,  de  que  era  mestre,  a  fim  de  n'ella  se  prestarem  os  soc- 
corros  espirituaes  aos  mareantes. 


46  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 


Esta  ermida  presenceou  no  dia  8  de  julho  de  1497 — um  sab- 
bado — a  ceremonia  que,  solemnisando  a  partida  de  Vasco  da  Ga- 
ma, marcava  a  primeira  data  do  maior  feito  d'essa  edade:  —  o 
descobrimento  do  caminho  maritimo  da  índia.  Barros,  nas  Décadas, 
descreve  nos  seguintes  termos  essa  commovente  solemnidade: 

«E  quando  foi  ao  embarcar  de  Vasco  da  Gama,  os  freires  da 
casa,  com  alguns  sacerdotes  que  da  cidade  lá  eram  idos  dizer  mis- 
sa, ordenaram  uma  devota  procissão,  com  que  o  levaram  ante  si 
n'esta  ordem :  Eile  e  os  seus  com  cirios  nas  mãos,  e  toda  a  gente 
da  cidade  ficava  de  traz,  respondendo  a  uma  ladainha  que  os  sa- 
cerdotes adiante  iam  cantando,  té  os  porem  junto  dos  bateis  em 
que  se  haviam  de  recolher.  Onde,  feito  silencio,  e  todos  de  joe- 
lhos, o  vigário  da  casa  fez  em  voz  alta  uma  confissão  geral;  e  no 
fim  d'ella  os  absolveu  na  forma  das  bulias  que  o  infante  D.  Hen- 
rique tinha  ávido  para  aquelles  que  n'este  descobrimento  e  con- 
quista fallecessem.  No  qual  acto  foram  tantas  as  lagrimas  de. todos, 
que  n'este  dia  tomou  aquella  praia  posse  das  muitas  que  n'ella 
se  derramam  na  partida  das  armadas  que  cada  anno  vão  a  essas 
partes  que  Vasco  da  Gama  ia  descobrir.  De  onde  com  razão  lhe  po- 
demos chamar  praia  de  lagrimas  para  os  que  vão  e  terra  de  pra- 
zer para  os  que  vem.  E  quando  veio  ao  desfaldrar  das  velas,  e  que 
os  mareantes,  segundo  seu  uso,  deram  aquelle  alegre  principio  de 
caminho,  dizendo:  boa  viagem,  todos  os  que  estavam  presentes 
na  vista  d'elles  com  uma  piedosa  humanidade  dobraram  estas  la- 
grimas e  começaram  de  os  encommendar  a  Deus  e  lançar  juizos, 
segundo  o  que  cada  um  sentia  d'aquella  partida.  Os  navegantes, 
dado  que  com  o  favor  da  obra  e  alvoroço  d'aquella  empreza,  em- 
barcaram contentes,  também,  passado  o  termo  do  desferir  das  ve- 
las, vendo  ficar  em  terra  seus  parentes  e  amigos,  e  lembrando-se 
que  sua  viagem  estava  posta  em  esperança,  e  não  em  tempo  certo  e 
lugar  sabido,  assim  os  acompanharam  (aos  que  ficavam)  em  lagri- 
mas e  no  pensamento  das  cousas  que  em  tão  novos  casos  se  apre- 
sentam na  memoria  dos  homens. » 

D'esta  partida  e  do  glorioso  regresso  de  Vasco  da  Gama,  veio 
talvez  a  D.  Manoel  a  ideia  de  fundar  o  convento  que  substituiu  a 
ermida,  sendo  dada  pela  coroa  aos  freires  de  Christo  a  casa  em 
que  fora  uma  synagoga,  que  a  rainha  mandou  purificar  e  que  se 
converteu  na  igreja  da  Conceição  Velha. 

Os  religiosos  a  quem  foi  dado  o  mosteiro  sob  a  invocação  de 
S.  Jeronymo  eram  oljrigados  á  seguinte  clausula:  «Ao  lavabo,  o 
sacerdote  que  celebrasse  a  missa,  se  voltaria  para  os  fieis  e  diria 
em  voz  alta:  Rogae  a  Deus  pela  alma  do  infante  D.  Henrique, 


»:-( 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  47 


primeiro  fwidador  d'esta  casa,  e  pelu  de  D.  Manoel,  qns  a  doou 
d  7wssa  ordem. » 

Segundo  o  snr.  abbade  Castro,  o  altar  em  que  se  disse  a  missa 
da  partida  do  Gama  é  o  do  Senlior  dos  Navegantes,  que  ainda  lioje 
se  conserva  na  igreja  de  Belém. 

O  templo  é  todo  de  mármore  branco,  no  estylo  gothico,  sendo 
todos  os  ornatos  arrendados  e  cinzelados  primorosamente  ao  gosto 
manoelino  que  inspirou  o  risco  opulentíssimo  do  claustro. 

Ao  entrar  na  igreja  pela  porta  principal,  transpondo-se  a  pri- 
meira parte  do  edifício,  abafada  debaixo  do  curo,  recebe-se  uma 
repentina  sensafão  de  grandeza  e  de  magestade,  de  que  Filippe  ii 
deu  a  medida,  quando,  visitando  pela  primeira  vez  a  igreja  de 
Belém,  se  voltou  para  Ctiristovam  de  Moura  que  o  acompanhava  e 
lhe  disse:  É  nada  o  que  fizemos  no  Escu/rial. 

Fihppe  II  tinha  estudado  profundamente  architectura.  O  seu 
voto,  como  critico,  é  tão  auctorisado  quanto  é  insuspeita  a  since- 
ridade da  sua  admiração  como  rei  e  como  hispanhol. 

Os  pilares  que  sustentam  o  tecto,  de  abobada  chata,  são  tão 
superiormente  trabalhados,  que  o  barão  Taylor,  enviado  a  Lisboa 
em  1836  pelo  governo  francez,  não  só  tirou  d'elles  os  desenhos, 
mas  os  mandou  modelar  a  todos  em  gesso  pelo  natural. 

A  abobada  do  cruzeiro  é  mais  admirável  que  a  da  casa  do 
capitulo  na  Batalha, 

Na  porta  da  igreja  para  a  parte  do  Sul,  trabalhada  como  uma 
jóia,  de  magnificência  admirável,  vé-se  sobre  a  columna  que  di- 
\ide  a  porta  pelo  meio,  a  estatua  do  infante  D.  Henrique,  armado, 
de  cabeça  descoberta,  encostado  á  espada.  Seria  demasiado  longo 
consagrar  aqui  ao  mosteiro  dos  Jeronymos  o  estudo  que  elle  me- 
rece e  que,  de  mais,  está  já  feito  pelos  snrs.  abbade  Castro  e  Var- 
nhagen.  Ás  investigações  d'este  ultimo  erudito  se  deve  o  achar-se 
hoje  demonstrado  que  o  primeiro  architecto  da  obra  de  Belém  foi 
um  itahano  chamado  Bocetaca.  O  segundo  mestre  foi  o  portuguez 
João  de  Castilho.  Além  d'este  havia  outros  empreiteiros  que  se 
obrigavam  a  trazer  effectivos  no  trabalho  um  certo  numero  de  ope- 
rários, cerca  de  cem  cada  empreiteiro. 

Mestre  Bocetaca  ganhava  100  reis  por  dia.  O  jornal  dos  ope- 
rários era  de  40  reis  e  o  dos  mestres  empreiteiros  50  a  60  reis. 

A  estas  despezas  tinha  D.  Manoel  mandado  apphcar  a  vintena 
da  importância  dos  productos  trazidos  da  índia.  Em  1570,  D.  Se- 
bastião mandou  cessar  as  obras  que  ainda  se  estavam  fazendo  na 
capella-mór  da  igreja,  reedificada  pela  rainha  D.  Catharina,  sendo 


48  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

O  dinheiro  anteriormente  destinado  á  obra  applicado  por  ordem  do 
mesmo  rei  ás  despezas  das  guerras  d'Africa. 

No  edifício  do  mosteiro  acha-se  estabelecida,  desde  a  extincção 
das  ordens  religiosas,  a  Real  Casa  Pia  de  Lisboa,  um  dos  raros  es- 
tabelecimentos portuguezes  exemplarmente  administrados  e  diri- 
gidos. 


POVOA  DE  VARZIM 


É  o  caravansará  rtos  habitantes  do  Minho  em  uso  de  ba- 
nho ou  de  ar  do  mar.  Nenliuma  outra  praia  ofTerece  tão  variada 
concorrência.  Em  agosto  e  setembro  a  Povoa  converte-se  em  uma 
enorme  estalagem  com  quartos  a  todo  o  preço,  em  que  se  alber- 
gam os  romeiros  de  todas  as  gerarchias,  desde  o  mendigo  legen- 
dário, o  mendigo  dos  melodramas  e  das  feiras  minhotas,  de  mu- 
letas, de  alforge  ao  pescoço  e  de  grandes  barbas  esquálidas,  até  o 
poderoso  commendador  brasileiro,  de  camisa  de  bretanha  anilada 
como  um  retalho  de  ceu  pregado  no  peito  com  um  brilhante. 

A  rua  da  Junqueira  —  principal  artéria  da  povoação  que  hga  a 
praça  em  que  se  acha  a  casa  da  camará,  a  administração  e  o  mer- 
cado, com  a  praia  —  está  desde  pela  manhã  cedo  até  alta  noite  coa- 
lhada de  moscas  e  de  gente. 

As  moscas  cobrem  os  muros,  as  humbreiras  das  portas,  as  vi- 
trines e  os  mostradores  das  lojas,  n'uma  immobilidade,  n'um  goso, 
n'um  extasi  que  impressiona  particularmente  os  forasteiros.  As  su- 
perQcies  que  as  moscas  deixam  devolutas  são  occupadas  pela  gen- 
te. Quando  um  viajante  chega,  com  a  sua  mala,  ergue-se  no  ar  uma 
nuvem  negra  que  scintilla  e  que  zumbe:  são  as  moscas  que  se  des- 
locam e  procuram  apertar-se  um  pouco  mais  para  dar  logar  ao 
adventício.  Outras  vezes  é  a  gente  que  encurta  o  passo,  que  se  con- 
densa, que  se  enovella:  n'estes  casos  é  uma  nova  mosca  que  che- 
ga e  sollicita  o  seu  logar  na  rua.  Dá-se-lhe  o  espaço  preciso  para 
ella  se  estabelecer  e  a  circulação  dos  viandantes  regularisa-se  e 
prosegue. 

Vê-se  o  pequeno  lavrador  que  desceu  dos  montes  para  banhar 
as  suas  enfermidades.  Traz  um  lenço  na  cabeça,  por  baixo  do  cha- 
péu, atado  ao  queixo,  amplas  chinellas  de  couro  cru,  longo  capote 
de  cabeções.  Mulheres  de  pés  mis,  com  as  saias  de  baeta  pelos 


50  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

hombros,  as  mãos  crusadas  no  estômago,  o  cabello  curto  cabido 
n'uma  sanefa  sobre  as  sobrancelhas.  Os  morgados  ruraes,  de  botas 
de  montar  e  esporas,  jaqueta  de  astrakan,  alta  chibata  de  marme- 
leiro. As  senhoras  provincianas  com  as  suas  boas  cores  sadias,  os 
seus  bons  dentes  brancos,  as  suas  fortes  bocas  vermelhas,  luvas 
de  fio  de  Escócia  apertadas  com  cordões  de  seda  azul  e  cuias  de 
retroz  em  rolo  inteiriço,  enroscado  como  o  chouriço  de  sangue,  ou 
dividido  em  secções  como  um  cacho  de  murcellas  de  Arouca  preso 
á  nuca  com  dois  pregos  de  cabeça  de  tartaruga.  Todos  os  juizes, 
todos  os  delegados,  todos  os  presidentes  de  camarás  das  comarcas 
e  das  municipalidades  circumvisinhas.  O  sport  de  Braga,  com  os 
seus  bigodes  espessos  e  brilhantes,  os  seus  chapéus  á  moda  e  as 
suas  esporas  de  prata  tilintando  na  lage  das  calçadas.  O  high-life  de 
Guimarães,  de  Fafe,  dos  Arcos,  de  Santo  Thyrso,  de  Villa  Nova  de 
Famalicão,  de  Barcellos,  ostentando  novas  toilettes  esmeradas,  imi- 
tadas dos  últimos  figurinos  com  as  devidas  modificações  exigidas 
por  um  bem  entendido  espirito  de  conciliação  entre  a  novidade  de 
Pariz  e  as  tradições  e  as  conveniências  locaes  dos  respectivos  me- 
ridianos. Os  jogadores  de  toda  a  provinda  e  de  outros  pontos  do 
reino  com  as  pálpebras  inflammadas  pela  acção  do  gaz  e  do  petróleo, 
com  a  sua  paUidez  oleosa  como  se  fosse  tratada  pelas  exhalações 
da  terebentina  ou  como  se  se  lhes  tivesse  congelado  na  face  o  gor- 
duroso vapor  das  batotas. 

Entre  esta  multidão  que  permanece  na  Povoa  durante  um, 
dois  ou  três  mezes,  figuram  ainda  os  touristes  que  fazem  a  viagem 
circulatória  do  Minho  e  se  demoram  poucos  dias,  os  visitantes  do 
Porto  que  chegam  nos  domingos  com  os  seus  bilhetes  de  ida  e  volta. 

A  rua  da  Junqueira  com  a  sua  gente  e  as  suas  moscas  apre- 
senta o  aspecto  de  um  arruamento  de  feira. 

Em  todas  as  casas  ao  rez  da  rua  se  organisam  estabelecimen- 
tos de  commercio,  uns  fixos,  outros  fluctuantes. 

As  lojas  de  barbeiro,  sempre  em  exercício,  no  meio  das  quaes 
um  homem  envolto  n'uma  toalha,  dorme  n'uma  cadeira  de  braços 
ou  considera  as  moscas  que  coalham  o  tecto,  em  quanto  o  Figaro, 
de  mangas  arregaçadas,  lhe  segura  delicadamente  a  ponta  do  nariz 
e  lhe  raspa  a  face  envolta  n'um  floco  de  espuma. 

Os  ourives  postados  por  traz  das  suas  vitrines  mostrando  ás 
mulheres  do  campo  os  grandes  corações  de  filagrana  de  ouro,  os 
relicários,  as  grossas  arrecadas. 

Os  camiseiros  com  a  sua  exposição  de  camisas  de  cor,  de  gra- 
vatas de  todas  as  gradações  do  iris,  de  bengalas,  de  chapéus  de 
chuva,  de  jóias  de  cobre  dourado,  de  collarinhos  postiços,  de  lu- 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  51 

vas,  de  aguas  de  cheiro  e  de  unguentos  aromáticos,  —  todos  os  ar- 
tigos do  luxo  barato. 

Os  espectáculos  das  grandes  guerras  e  dos  longínquos  paizes, 
das  mulheres  gordas  e  das  mulheres  gigantes,  tendo  á  porta  o  seu 
reposteiro  de  chita  encarnada  ao  lado  do  respectivo  cartaz  e  den- 
tro o  realejo  festival  moendo  um  trecho  da  Favorita. 

Os  botequins,  os  estancos,  as  tabernas  com  o  seu  grande  ra- 
mo de  loureiro  á  porta. 

Os  mercadores  ambulantes,  vendendo  ás  esquinas  os  peque- 
nos espelhos,  as  estampas,  as  lithographias  das  testas  coroadas  e 
os  reporíorios  montados  n'um  barbante.  Os  que  trazem  suspenso 
do  pescoço  por  uma  correia  o  taboleiro  com  os  canivetes,  os  gar- 
fos, as  colheres,  os  pentes,  as  caixas  dos  pós  de  dentes  e  os  sa- 
bonetes Windsor.  Os  que  tiram  as  nódoas  e  vendem  as  pastilhas 
maravilhosas  que  comem  a  gordura  da  gola  das  jalecas.  Os  que 
exhibem  encostada  ao  muro  a  coUecção  de  varapaus  argolados,  de 
desempenados  marmeleiros,  de  cannas  da  Índia  com  os  seus  ferrões 

■  polidos  embrulhados  em  papel. 

N'esta  multidão  espessa  e  ruidosa  sobresahem  de  espaço  a  es- 

'  paço  as  pesadas  diligencias,  os  chars-à-bancs  de  cortinas  de  risca- 
do ou  de  couro,  cobertos  de  poeira,  puxados  por  três  cavallos  es- 
cancellados,  com  o  tejadilho  acuculado  de  malas,  de  saccos  de  chi- 
ta, de  alforges,  de  bahus,  de  caixas  de  lata,  carreando  os  passa- 

:  geiros  de  Barcellos,  de  Fão,  de  Celorico  e  do  Pico. 

'  A'  porta  das  estalagens  homens  com  as  suas  bagagens  sobra- 
çadas descendem  gymnasticamente  da  imperial,  emquanto  mulhe- 
res gordas  e  pesadas,  amparadas  com  as  duas  mãos  aos  batentes 
da  portinhola,  adeantam  para  o  estribo  um  pé  arrastado,  desco- 
brindo o  grosso  artelho  entorpecido  pela  sciatica. 

Dois  grandes  e  bellos  cafés,  com  óptimos  bilhares,  grandes 
espelhos,  muita  luz,  abrem  as  suas  portas  sobre  a  rua  da  Jun- 
queira. 

A'  noite  esses  cafés  enchem-se  inteiramente.  Homens,  senho- 

!  ras,  banhistas  de  todas  as  classes,  viajantes  de  todas  as  procedên- 
cias, occupam  todos  os  bancos,  agglomeram-se  em  volta  de  todas 
as  mezas.  No  meio  os  jogadores  de  bilhar  procuram  cora  diílicul- 

'  dade  um  pequeno  espaço  para  poderem  recuar  os  tacos.  Os  crea- 
dos  circulam  difficilraente  com  as  bandejas.  Harpas  e  rebocas  or- 
ganisam  um  concerto.  Uma  mulher  hespanhola  ou  italiana,  com  um 

'  prato  de  estanho,  soUicita  com  um  sorriso  os  donativos  da  assem- 
bleia. Um  barítono  de  longos  cabellos,  penteados  para  traz  das 
orelhas,  infatigável  borrador,  com  a  mão  na  abertuia  do  coUete, 


52  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

a  fronte  alta,  o  olhar  intrépido,  entoa  uma  romansa.  Uma  espessa 
aíhmosphera  de  fumo  dos  charutos,  empregnada  dos  vapores  do  ál- 
cool, da  cerveja  e  do  café^  envolve  aquelle  grande  ruido.  Ás  por- 
tas mulheres  do  povo,  homens  de  cajados  e  jalecas  ao  hombro, 
olham  apinhados  e  em  bicos  de  pés. 

Por  cima  de  um  d'estes  cafés  é  a  casa  de  Jantar  do  hotel 
Luso-Brasileiro,  um  vasto  salão  que  eni  algumas  noites  se  converte 
em  sala  de  baile.  Não  ha  club.  Os  bailes  organisam-se  por  subscri- 
pção  entre  os  banliistas  e  a  casa  é  alugada  para  esse  fim  aos  pro- 
prietários do  hotel. 

Em  todos  os  cafés  ha  um  compartimento  supplementar  em 
que  se  joga  o  monte  ou  a  roleta;  em  um  d'elles  passa-se  da  sala 
do  bufete  ao  jardim,  onde  se  acha  a  roleta  installada  n'um  bonito 
pavilhão. 

Na  Povoa,  assim  como  em  Espinho,  na  Foz,  na  Figueira,  em 
todas  as  grandes  praias,  a  concorrência  em  volta  do  panno  verde 
é  das  mais  curiosamente  variadas.  Homens  de  todas  as  condições 
sociaes,  proprietários,  funccionarios  públicos,  capitalistas,  professo- 
res, htteratos,  mihtares  com  os  seus  uniformes,  sacerdotes  com  as 
suas  coroas.*  Como  o  jogo  é  prohibido,  como  a  casa  da  tavolagem 
se  considera  secreta,  como  ha  uma  entrada  mysteriosa,  cada  ura  se 
julga  ao  abrigo  da  notoriedade  e  todo  o  mundo  joga.  Os  caixeiros 
imaginam  que  não  serão  ahi  vistos  pelos  seus  patrões,  os  filhos 
que  não  encontrarão  lá  os  seus  pães,  os  devedores  remissos  que 
estarão  livres  dos  fornecedores  implacáveis,  os  amanuenses  que 
não  darão  com  os  chefes  de  secretaria,  os  jovens  tenentes  que  es- 
tarão a  coberto  do  olhar  reprehensivo  e  severo  dos  commandan- 
tes  dos  corpos.  Depois,  lá  dentro,  se  os  inesperados  encontros  se 
eíTectuam,  como  geralmente  succede,  a  cumplicidade  n'um  delicto 
commum  estabelece  uma  indulgência  reciproca.  Isto  é  uma  cala- 
midade que  só  ha  um  meio  de  evitar :  decretar  a  hberdade  do  jogo 
sob  certas  condições  essenciaes  entre  as  quaes  não  devem  esque- 
cer as  seguintes: 

1.^  Que  o  jogo  seja  inteiramente  publico,  cora  porta  aberta 
para  toda  a  gente  sem  excepção  alguma.  Desde  que  um  filho-fami- 
lia  com  os  seus  sapatos  envernizados,  as  suas  meias  de  seda  e  as 
suas  luvas  côr  de  pérola,  resolve  frequentar  a  batota,  é  preciso 
que  entenda  bera  que  se  rebaixa  até  o  ponto  de  ir  achar-se  senta- 
do entre  um  moço  da  cavallariça  e  um  empregado  na  limpesa  dos 
canos,  os  quaes  irão  com  as  suas  camisas  gordurosas  e  fétidas  e 
com  os  seus  pés  nús  dar  á  mocidade  inexperiente  e  elegante  a 
dura  Ução  das  vicissitudes  sociaes. 


AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL     -  53 

2.^  Que  a  casa  de  jogo  seja  assignalada  á  critica  do  publico, 
ao  exame  dos  philosophos  e  á  vigilância  da  policia  por  meio  de 
uma  taboleta  e  de  uma  lanterna  especial  que  estará  accesa  toda  a 
noite. 

3.*  Que  a  policia  tenha  direito,  quando  o  julgue  conveniente, 
de  exigir  o  nome  de  cada  um  dos  jogadores,  a  fim  de  que  possa 
,  capturar  os  vadios,  que  por  ventura  se  tenham  escapado  á  acção 
:  da  lei. 

4.^  Que  os  proprietários  das  casas  de  jogo  sejam  devidamen- 
te inscriptos  nos  registros  dos  escrivães  de  fazenda,  que  se  torne 
extensiva  á  sua  industria  a  lei  tributaria  que  pesa  sobre  os  lucros 
proporcionaes  de  todos  os  cidadãos. 

5.^  Que  os  banqueiros,  proprietários  das  casas  de  jogo  sejam 
obrigados  a  uma  escripturação  regular  e  authentica  dos  seus  lu- 
cros e  perdas,  da  qual  a  policia  extraia  os  dados  precisos  para  a 
estatística  geral  do  vicio,  averiguada  pelo  exame  d'estas  novas  ca- 

■  sas  toleradas. 

A  repressão  do  jogo,  além  de  offensiva  da  liberdade,  é  diífl- 

cil  de  se  tornar  eífectiva.  Dá  em  resultado  encarcerar  de  quando 

:  em  quando  alguns  pobres  diabos  que  jogam  os  seus  patacos  em 

um  quarto  de  taberna,  emquanto  deixa  impunes  os  jogadores  mais 

■  poderosos  que  encontram  sempre  meio  de  evadir-se  ás  pesquisas 

■  pohciaes. 

Emquanto  o  jogo  fôr  uma  illegalidade  secreta,  elle  manterá 
os  attractivos  das  coisas  defesas.  E'  preciso  dar-lhe  na  sociedade  o 
seu  verdadeiro  logar  e  mostral-o  claramente,  não  como  um  fructo 
prohibido,  mas  como  um  fructo  podre. 

Emquanto  a  imprensa  considerar  sob  outro  ponto  de  vista  a 

questão  cio  jogo  este  continuará  como  até  agora  fazendo  estragos 

irremediáveis  na  honra  e  na  fortuna  das  famílias  e  constituirá  nas 

'  praias  de  Portugal  durante  a  estação  dos  banhos  o  mais  lamenta- 

'  vel  flagelo. 

Como  o  numero  das  pessoas  do  Minho  predomina  na  concor- 
rência a  esta  praia,  a  Povoa  mantém  inalteravelmente  a  feição  pro- 
vinciana. Todos  os  banhistas  jantam  ás  três  horas  e  fazem  os  seus 
passeios  á  tarde.  Ao  toque  das  Ave-Marias  toda  a  gente  que  pas- 
seia na  praia  e  no  Paredão,  que  é  o  ponto  da  reunião  geral,  tira 
os  seus  chapéus,  pára,  persigna-se  e  faz  oração. 

A  mais  interessante  e  a  mais  importante  curiosidade  da  Po- 
voa é  o  pescador  poveiro. 

O  poveiro  constituo  uma  raça  perfeitamente  especial  na  po- 
pulação do  nosso  littoral.  Inteiramente  diíTerente  dos  typos  gregos. 


54  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

finos,  magros,  elegantes,  de  perfis  aquilinos,  dos  varinos,  dos  ce- 
lebres pescadores  de  Ovar  e  de  Olhão,  o  poveiro  tem  o  typo  sa- 
xonio.  É  ruivo,  de  olhos  claros,  largos  hombros,  peito  athletico, 
pernas  e  braços  hercúleos.  As  feições  são  arredondadas  e  duras. 
As  bocas  dos  velhos  quando  perdem  os  dentes  alargam-se  extre- 
mamente na  direcção  das  orelhas  e  dão-lhes  ao  perfil  uma  certa 
similhança  com  os  jacarés.  Teem  uma  força  prodigiosa.  Ha  tempos 
um  poveiro  ainda  moço  fói  capturado  em  consequência  de  um  pe- 
queno distúrbio  n'uraa  taberna.  iMettido  pela  primeira  vez  da  sua 
vida  na  cadeia,  onde  devia  passar  vinte  e  quatro  horas,  sentiu 
uma  saudade  irresistível  da  liberdade  e  fez  o  seguinte :  agarrou  a 
grade  com  os  seus  fortes  pulsos,  arredou  um  dos  varões  de  ferro 
para  um  lado,  arredou  o  outro  para  o  lado  opposto,  e  pelo  espaço 
aberto  foi-se  embora  para  casa. 

Eu  mesmo  conheço  um  já  velho,  que  o  vicio  da  embriaguez 
fez  expulsar  successivamente  de  todas  as  companhas.  Um  amigo 
meu,  José  Falcão,  deu-lhe  um  bote  e  umas  redes.  Elle  só,  consti- 
tuo a  tripulação  d'este  barco;  elle  só,  lança  e  recolhe  as  redes; 
elle  só,  dirige  a  embarcação  no  mar  alto;  elle  só,  á  força  de  re- 
mos, a  arranca  da  praia  e  lança  ao  mar  nos  dias  em  que  a  maré 
rebenta  com  mais  Ímpeto  na  costa.  Quando  vae  embriagado  para  o 
mar,  o  que  muitas  vezes  lhe  succede,  chora  de  enthusiasmo  no 
meio  da  borrasca  e  faz  discursos  patheticos  ao  oceano.  Os  seus 
confrades  teem-o  visto  só  no  meio  dos  vagalhões,  em  pé  na  sua 
pequena  barca,  bater  no  peito  nú  e  hirsuto  com  o  punho  cerrado 
e  exclamar  trovejantemcnte :  —  Eh !  mar ! . . .  aqui  agora  é  nós 
dois,  tu  e  eu!  Tu  com  as  tuas  ondas,  eu  com  os  meus  protectores: 
Deus  e  o  sôr  José  Falcão ! 

Quando  o  mar  se  levanta  repentinamente,  todos  os  barcos  an- 
corados na^praia  são  varados  na  areia  á  força  de  braços  por  ho- 
mens e  mulheres.  As  embarcações,  grandes  lanchas  algumas  d'ellas, 
são  encalhadas  a  remos.  Uma  vez  na  areia  homens  e  mulheres, 
mettidos  na  agua  até  á  cinta,  encostam  o  hombro  ao  barco  e  fa- 
zem-o  subir  na  praia  até  dez  ou  quinze  metros  acima  da  lingua 
da  maré.  É  n'estes  duros  exercícios  que  se  pôde  apreciar  a  ex- 
traordinária força  muscular  d'esta  raça  privilegiada.  Velhos  de  ses- 
senta a  oitenta  annos,  de  cabellos  brancos  e  duros  cabidos  na  testa, 
a  camisa  desabotoada,  o  peito  mordido  pelo  sol  e  pelo  vento  do 
mar,  a  pelie  vermelha,  doirada,  com  reflexos  metálicos  como  uma 
folha  de  vinha  no  outono,  acocoram-se  debaixo  da  popa  de  uma 
lancha,  fincam  os  pés  na  areia  e  impellem  com  as  costas,  desen- 
volvendo a  maior  força  de  que  pôde  dispor  a  columna  vertebral, 


AS   PRAL^S   DE   PORTUGAL  55 

ura  peso  de  esmagar  um  homem  vulgar.  N'essas  altitudes,  com  as 
clavículas  descobertas,  os  braços  e  as  pernas  nuas,  de  uma  riqueza, 
de  uma  amplidão,  de  uma  perfeipão  muscular  que  eguala  as  mais 
vigorosas  anatomias  de  Miguel  Angelo,  os  po veiros  são  verdadeira- 
mente bellos,  de  uma  belleza  titânica. 

O  traje  de  que  usam  contribue  para  fazer  realpar  o  aspecto 
da  sua  forta  corpulência.  De  uma  espécie  de  grossa  ílanella  branca, 
fabricada  na  Covilhã  e  chamada  branqueia,  trazem  umas  amplas 
pantalonas  largas  até  o  bico  do  pé,  camisa  egual,  cinta  de  lã  preta, 
barrete  encarnado,  de  grande  manga,  cabido  quasi  até  á  cinta,  e, 
lançado  ao  hombro,  um  jaquetão  de  grosso  panno  azul;  que  se  não 
veste  senão  quando  chove.  Nada  mais  simples,  mais  confortável  e 
mais  commodo  para  um  homem  do  mar. 

Para  os  trabalhos  da  pesca  arregaçam  as  mangas  até  o  hom- 
bro, arregaçam  as  calças  até  o  alto  da  perna,  e  ficam  quasi  nús 
como  03  atlethas. 

Muitos  são  condecorados  pelos  assombrosos  actos  de  dedicação 
e  de  bravura,  praticados  no  mar  em  serviço  dos  seus  similhantes. 
Nenhum  d'elles  traz  a  medalha  na  camisola  ou  na  jaqueta.  A  con- 
decoração, que  elles  estimam  como  uma  lembrança  querida  e  so- 
lemne,  trazem-a  pendente  do  pescoço,  escondida,  junto  da  pelle, 
sobre  o  coração. 

No  mez  de  maio  do  anno  findo,  1875,  naufragou  uma  lancha 
á  vista  de  terra.  ^Morreram  seis  homens.  N'essa  occasião,  um  dos 
tripulantes  de  um  dos  botes  que  acudiram  de  terra  ao  logar  do 
sinistro,  mergulhou  no  alto  mar  e  arrancou  do  fundo  do  oceano 
um  dos  seus  companheiros  exânimes.  Prestaram-se-lhe  promptos 
soccorros  e  esse  naufrago  sobreviveu  aos  effeitos  da  congestão  que 
o  atacara.  O  valente  companheiro  que  o  salvou  e  por  esse  facto 
foi  condecorado  com  a  medalha  de  prata  chama-se  Domingos  Go- 
mes, o  Ainda. 

Os  factos  d'esta  natureza  repetem-se  por  varias  vezes  em  cada 
inverno. 

Os  trabalhos  do  mar  são  aqui  perigosíssimos.  Na  costa,  intei- 
ramente descoberta  e  nua,  ha  apenas  um  pequeno  abrigo  feito  por 
um  quebra-raar  não  concluído.  Dobrar  a  ponta  do  quebra-mar  e 
recolher  no  abrigo  é  de  um  perigo  iminente  apenas  o  mar  se  en- 
crespa. Logo  que  uma  lancha  está  era  perigo,  as  mulheres  dos  tri- 
pulantes vêem  á  praia  e  pedem  em  gritos  dilacerantes  aos  santos 
seus  conhecidos  que  salvem  a  embarcação.  Se  o  perigo  continua, 
se  os  santos  se  não  apressam  a  salvar  os  maridos,  os  pães  e  os 
irmãos  d'aquellas  boas  mulheres,  ellas  accordam  os  santos  que  es- 


56  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

tão  em  uma  capella  próxima,  partindo-lhes  as  vidraças  e  enchendo 
de  pedradas  o  templo.  Emqiianto  a  lancha  em  crise  se  não  vira, 
os  pescadores  que  estão  na  praia  desembarcando  as  suas  redes  ou 
varando  os  seus  barcos  são  absolutamente  indiíTerentes  ao  alarido 
lacrimoso  das  mulheres  e  ao  espectáculo  do  naufrágio  eminente. 
Aquillo  mesmo  foi  o  que  lhes  succedeu  a  elles  na  véspera  e  é  o 
que  os  espera  no  outro  dia.  Virada  a  lancha,  correm  então  ao 
salva-vidas  e  todos  se  prestam  a  partir  immediatamente  em  auxi- 
lio dos  seus  companheiros. 

De  uma  actividade  infatigável  no  mar,  os  poveiros  em  terra 
trabalham  pouquíssimo ;  alguns  não  trabalham  pela  palavra  nada. 
Ancorado  o  barco  recolhem  o  remo  e  ficam  nos  bancos  dormindo 
com  os  braços  crusados  no  peito.  São  n'este  caso  as  mulheres  que 
descarregam  o  peixe,  que  contractam  a  venda,  que  recebem  o  di- 
nheiro dos  negociantes  e  que  distribuem  as  quotas  pelos  tripulan- 
tes. Estes  acordam  para  receber  o  dinheiro,  mettem-o  na  algibeira, 
sobraçam  um  pichei  ou  um  pequeno  pipo  que  todo  o  pescador  leva 
com  vinho  para  o  mar,  lançam  ao  honibro  o  jaquetão,  saltam  á 
praia,  e,  com  a  indifferença  mais  profunda  por  tudo  quanto  os 
cerca,  caminham  solemnemeníe  para  a  taberna. 

De  uma  ignorância  pyramidal,  é  raríssimo  aquelle  que  sabe 
syllabar.  Nenhum  sabe  escrever.  Na  administração  do  concelho  per- 
guntaram a  um  que  ali  tinha  ido  saber  se  o  filho  estava  recenseado 
como  se  chamava  o  filho;  elle  pediu  que  o  esperassem  um  mo- 
mento e  foi  n'uma  corrida  a  casa  perguntar  como  o  filho  se  cha- 
mava. Pela  sua  parte,  nunca  lhe  tinha  chamado  senão  unicamente 
filho. 

São  naturalmente  bons,  dedicados,  reconhecidos,  dóceis  como 
mulheres.  Com  uma  palavra  e  com  um  sorriso,  uma  creança  le- 
va-os  por  uma  orelha  para  onde  quizer,  para  a  taberna  ou  para 
a  morte. 

Não  usam  faca.  Nas  suas  questões  pessoaes  batem-se  ao  pu- 
gilato. Nas  questões  de  companha  para  companha  batem-se  no  alto 
mar  á  pedrada.  Nos  motins  em  terra  lançam  mão  da  primeira  arma 
que  o  acaso  lhes  ministra  e  tudo  é  arma  nas  mãos  d'elles.  Um  dia, 
em  1846,  constou-lhes  que  a  camará  municipal,  reunida  em  ve- 
reação, estava  tractando  de  lhes  lançar  um  novo  tributo.  Vieram 
alguns  á  praça  em  que  estavam  os  paços  do  concelho,  arrancaram 
os  estadulhos  dos  carros  que  estão  no  mercado,  subiram  á  casa 
da  municipalidade,  e  tudo  quanto  lá  estava  dentro,  vereadores, 
auctoridades  administrativas,  policia,  fisco,  saltaram  pelas  janellas 
á  rua.  No  dia  immediato  chegava  á  Povoa  um  regimento  para  suf- 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  57 

focar  a  anarchia.  Os  pescadores  que  teem  ás  armas  de  fogo  um 
terror  de  selvagens,  apenas  lhes  constou  esta  noticia,  desamarra- 
ram de  noite  os  seus  barcos,  fugiram  para  o  mar  e  durante  mui- 
tos dias  nem  um  único  appareceu.  Se  o  regimento  não  retirasse 
seria  de  receiar  que  nunca  mais  voltassem  a  terra. 

É  incomparável  e  única  a  aversão  do  poveiro  ao  serviço  mi- 
litar. O  modo  como  elles  conseguem  evadir-se  ao  pagamento  do 
tributo  de  sangue  merece  referir-se.  Para  isso  porém  são  necessá- 
rias algumas  palavras  acerca  do  bairro  especial  dos  pescadores  na 
Povoa. 

Nada  teem  com  o  resto  da  villa  os  pescadores.  Vivem  em  uma 
parte,  da  povoação  inteiramente  distincta  e  que  fica  na  praia  ao  sul 
do  paredão  a  que  acima  me  referi.  Três  ruas  parallelas,  cujas  pe- 
quenas casas  ficam  umas  defronte  das  outras  á  beira  do  mar,  con- 
stituem a  porção  da  villa  que  os  pescadores  habitam.  Um  signal 
dado  n'um  apito  ou  n'uma  busina  previne  todos  os  moradores 
d'este  pequeno  bairro.  As  casas  são  interiormente  de  um  grande 
piltoresco.  Nos  dias  de  sol,  com  todas  as  casas  abertas,  de  qual- 
quer das  ruas  se  avista  a  espaços  o  mar  descoberto  atravez  das 
portadas.  O  mesmo  quarto  serve  de  sala,  de  alcova,  de  cosinha.  A 
um  lado  está  o  lar,  ao  outro  a  cama,  um  leito  ou  um  beliche  sus- 
penso como  a  bordo;  a  prateleira  da  louça  pende  de  uma  pa- 
rede; do  tecto  suspendem-se  os  molhos  das  cordas  còr  de  sé- 
pia; as  trouxas  de  roupa,  as  redes,  os  cestos,  os  apparelhos  de 
pesca.  Lembraria  os  interiores  flamengos  se  a  ausência  completa 
da  agua,  os  cações  escalados  que  estão  secando  ao  sol  estirados 
nas  portas  com  três  pregos,  as  paredes  negras  e  gordurosas  não 
provassem  evidentemente  ao  viajante  que  elle  está  bem  longe  das 
cabanas  hollandezas  escrupulosamente  baldeadas,  esfregadas  e  lus- 
tradas todos  os  dias,  como  o  convez  da  mais  nitida  corveta  da  ma- 
rinha ingleza. 

Eífectuados  na  Povoa  os  trabalhos  do  recenseamento  militar  e 
do  recrutamento  subsequente  sem  que  um  só  poveiro  se  tenha 
apresentado  perante  as  convocações  da  auctoridade,  um,  dois,  três 
ou  quatro  beleguins  acompanhados  do  respectivo  escrivão  apre- 
sentam-se  no  bairro  dos  pescadores  a  requisitar  os  refractários. 
Apenas  os  representantes  dos  poderes  públicos  penetram  no  bairro 
da  pesca,  um  signal  dado  pela  primeira  pessoa  que  os  avista,  ura 
velho,  uma  creança,  uma  mulher,  põe  de  sobreaviso  toda  a  visi- 
nhança.  Se  os  pescadores  estão  a  essa  hora  no  mar  não  appare- 
cem  senão  mulheres,  as  quaes  declaram  todas,  contestes,  que 
nunca  ouviram  fallar  nos  nomes  dos  refractários  a  que  a  auctori- 


58  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

dade  se  refere.  Se  os  pescadores  estão  em  terra,  apparecem  to- 
dos ás  suas  portas.  Todos  teem  os  mesmos  typos  physionomicos, 
todos  teem  o  mesmo  vestuário,  o  grande  gorro  encarnado  ou  preto, 
a  larga  calça  e  a  camisa  de  branqueia  ou  a  camisola  justa  com  um 
coração  e  uma  cruz  bordada  no  peito,  e  umas  armas  de  Portugal 
cora  a  respectiva  coroa  bordadas  no  braço  direito.  Principia  então 
o  inquérito  do  refractário. 

—  Onde  mora  aqui  João  das  Pragas,  filho  de  José,  o  Russo? 
O  primeiro  dos  pescadores  a  quem  se  dirige  esta  pergunta 

retira  o  seu  cachimbo  de  gesso  do  canto  da  bocca  e  diz: 

—  O  João? 

—  Sim,  snr. 

—  O  João  das  Pragas  ? 

—  Sim,  snr. 

—  O  filho  do  Russo  ? 

—  Sim,  snr. 

—  Conheci  muito  bem.  Esse  rapaz  morreu. 

—  Morreu  ?  Mas  do  livro  ■  dos  óbitos  da  freguezia  não  consta 
que  elle  tenha  fallecido. 

—  Pois  pôde  mandar  plantar  no  livro  que  morreu.  A  gente 
não  estamos  lá  no  livro,  porque  a  gente  quando  morremos  não  mor- 
remos cá  na  freguezia.  A  gente  morremos  no  mar. 

—  Passa-se  a  interrogar  o  segundo  poveiro,  que  dá  exacta- 
mente a  resposta  que  deu  o  primeiro ;  o  terceiro  responde  como  o 
primeiro  e  o  segundo;  e  assim  por  deante,  successivamente,  a 
mesma  resposta  invariável,  até  não  haver  mais  poveiros  que  in- 
quirir. 

Outro  refractário :  Manoel  Forte,  filho  de  Joaquim  da  Rita. 

—  Está  intimado  para  declarar  terminantemente  sob  pena  de 
cadeia  onde  pára  este  mancebo. 

—  O  Manoel?  O  Manoel  Forte?  o  filho  do  Joaquim  da  Rita? 
Gonheci-o  muito  bem !  Até  parece  que  ainda  o  estou  a  ver!  Esse 
rapaz  está  ali  defronte ... 

—  Onde? 

—  No  fundo  do  mar. 

E  a  evasiva  consagrada,  a  resposta  sabida  e  constante:  todo 
o  mancebo  recenseado  morreu. 

Deante  das  requisições  da  auctoridade  não  ha  entre  os  pes- 
cadores inimigos  nem  indiíTerentes,  protegem-se  todos  dedicada- 
mente perante  o  inimigo  commum.  É  uma  alliança  indissolúvel  e 
invencível.  Todos  os  esforços  são  inúteis  para  a  combater.  Viola- 
dos no  seu  bairro,  os  pescadores  fogem  para  a  praia.  Alii  a  per- 


AS  PRAIAS    DE   PORTUGAL  59 

seguição  é  perigosissima  para  quem  a  intenta.  Se  um  oíTicial  de 
justiça  ousasse  apparecer  na  praia  seria  infallivelmente  morto  de- 
baixo da  mais  densa  chuva  de  pedras,  de  fisgas,  de  liarpões.  Em 
ultimo  recurso  embarcam.  Assim  a  Povoa  não  dá  um  único  homem 
para  o  recrutamento  maritimo,  o  que  prova  que  quando  três  mil 
e  quinhentos  homens  reunidos  não  querem  uma  coisa  é  impossí- 
vel obrigal-os  áquillo  que  elles  não  querem. 

Três  mil  e  quinhentos  é  o  numero  dos  pescadores  na  Povoa. 
O  producto  annual  da  pesca  é,  segundo  as  estatísticas  da  alfande- 
ga, de  145  contos.  Segundo  o  computo  mais  provável  dos  nego- 
ciantes, que  proposeram  fiscalisar  por  sua  conta  e  dar  ao  Estado  o 
tributo  proporcional,  eleva-se  aquella  somma  a  269:66ô?$>600  reis. 

O  imposto  do  pescado  pago  pelos  pescadores  da  Povoa  é  de 
5:661^828  reis. 

Em  troca  d'esta  elevada  quantia  quaes  são  os  servipos  pres- 
tados pelo  Estado  a  estes  pescadores?  Nenhuns.  O  quebra-mar 
está  por  concluir  ha  muitos  annos,  apesar  da  promessa  feita  aos 
pescadores  pela  própria  pessoa  de  el-rei,  em  1872,  de  que  o  go- 
verno iria  occupar-se  immediatamente  da  conclusão  d'aquella  ur- 
gentíssima obra.  A  camará  da  Povoa  e  os  seus  habitantes  estão  in- 
hibidos  de  occorrer  áquelle  trabalho  tão  importante  pela  razão 
que  pertencem  exclusivamente  ás  altribuições  do  ministério  da 
marinha  as  obras  comprehendidas  desde  o  ponto  a  que  chega  a 
hngua  da  maré  em  agosto  até  o  mar. 

Não  ha  um  guindaste  a  vapor,  que  poderia  prestar  relevan- 
tes serviços  á  fazenda  dos  pobres  pescadores  recolhendo  rapida- 
mente nas  occasiões  de  borrasca  os  seiscentos  barcos  ancorados 
na  praia  nos  dias  de  inverno. 

Ha  um  farol  cujo  custeio  é  pago  da  bolsa  particular  dos  pes- 
cadores. A  somma  de  perto  de  seis  contos  de  reis  que  elles  pa- 
gam annualmente  ao  Estado  não  chega  a  este  para  lhes  accender 
sequer  uma  luz  que  os  livre  de  serem  devorados  pela  vaga  sus- 
pendendo assim  o  pagamento  do  tributo  que  pesa  sobre  as  suas 
vidas.  Uma  vez  que  elles  deixam  de  pagar  depois  de  mortos,  estaria 
talvez,  não  diremos  n'um  dever  de  humanidade,  de  justiça,  mas 
no  próprio  interesse  do  Estado  contribuir  um  pouco  para  salvar  a 
vida  dos  que  tão  desinteressadamente  o  subvencionam. 

O  único  serviço  que  ha  memoria  de  ter  sido  prestado  aos 
poveiros  pelo  governo  portuguez  é  o  presente  que  ha  annos  lhes 
foi  feito  de  um  barco  de  salva-vidas  cujo  patrão  percebe  pelo 
orçamento  geral  do  Estado  a  quantia  de  360  reis  diários.  Estes 
360  reis  diários  são  todo  o  troco,  que  o  Estado  julga  consciencio- 


60  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

sãmente  dever  dar  aos  poveiros,  dos  cinco  contos  seiscentos  e  ses- 
senta e  um  mil  oitocentos  e  vinte  e  oito  reis,  que  o  fisco  lhes  sub- 
trae  do  modo  mais  escandalosamente  iniquo  perante  os  princípios 
mais  rudimentares  do  direito. 

Sempre  que  um  cidadão  paga  ao  Estado  em  imposto  mais  do 
que  o  Estado  lhe  ministra  em  serviços  á  classe,  á  industria,  ao 
meio  em  que  elle  vive,  o  cidadão  é  roubado  em  quantia  egual  á 
differença  que  existe  entre  a  importância  do  imposto  e  o  valor 
equivalente  do  serviço. 

Ora  os  mesmos  únicos  360  reis  votados  pelo  Estado  ao  pa- 
trão do  salva-vidas  não  são  a  paga  de  um  serviço  real  prestado 
aos  pescadores,  por  isso  que  o  patrão  é  um  cargo  exclusivamente 
nominal  e  honorifico.  O  patrão  não  embarca  nunca.  O  salva-vidas 
nas  occasiões  de  temporal  e  de  perigo  é  tripulado  pelos  próprios 
pescadores.  Para  occorrer  ás  despesas  dos  soccorros  aos  náufra- 
gos, os  poveiros  impuseram-se  um  segundo  tributo  que  pagam  á 
Senhora  d'Assumpção.  Esta  segunda  collecta,  de  uma  rede  de  peixe 
annual  por  cada  lancha  produz  uma  receita  de  600  a  700  mil  reis 
que  a  confraria  dispende  no  farol,  nos  estipêndios  aos  que  tripu- 
lam o  salva-vidas  e  em  ajudas  de  custo  para  irem  ao  Porto  sub- 
metter-se  aos  cuidados  de  um  algebrista  aquelles  que  quebram 
alguns  ossos  no  trabalho  da  pesca.  O  saldo  que  no  fim  do  anno 
sobeja  da  applicação  da  receita  a  estes  encargos,  mais  á  fabrica 
da  capella  e  a  seis  missas  rosadas  por  alma  dos  que  morrem  no 
mar,  calcula  naturalmente  o  leitor  que  reverte  aos  pescadores  que 
se  associaram  na  confraria  para  esse  fim?  Não.  Quando  na  confra- 
ria ha  um  saldo  no  fim  do  anno  económico,  esse  saldo  embolsa-o 
o  Estado  para  o  applicar  juntamente  com  o  imposto  do  pescado  aos 
encargos  orçaraentaes  do  exercito,  da  instrucção,  das  estradas,  da 
rehgião  do  Estado,  coisas  de  que  o  pescador  poveiro  tiraria  ape- 
nas o  delicado  proveito,  puramente  platónico,  da  satisfação  do  seu 
orgulho  nacional,  se  lhe.  fosse  dado  fazer  alguma  ideia  da  existên- 
cia de  qualquer  d'essas  coisas :  nacionalidade,  instrucção,  viação 
publica,  religião  do  Estado,  etc. 

Da  nacionalidade  elles  sabem  que  um  soberano  portuguez, 
viajando  a  bordo  de  um  paquete  e  encontrando-os  no  mar  alto,  im- 
pressionado pela  extranheza  dos  seus  trages  e  dos  seus  typos  phy- 
sionoraicos,  lhes  perguntou  se  eram  portuguezes.  Ao  que  elles  res- 
ponderam que  não;  e  accrescentaram :  —  «A  gente  semos  poveiros, 
meu  senhor.» 

De  instrucção  sabem  o  que  aprenderam  com  os  seus  pães: 


AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL  61 

tecer  uma  rede,  colher  uma  vela,  manejar  um  remo,  prever  o 
tempo  e  calcular  a  hora  pelo  aspecto  do  ceu. 

Da  viação  sabem  que  ha  o  caminho  de  ferro  da  Povoa — feito 
por  uma  empreza  particular. 

Da  religião  salDcm  que  ha  o  parocho  a  quem  elles-  pagam  os 
baptisados,  os  casamentos  e  os  enterros  e  que  ha  também  a  Se- 
nhora da  Assumpção  que  lhes  dá  missas  regulares  que  elles  pa- 
gam e  um  ou  outro  milagre  extraordinário,  que  elles  também  pa- 
gara. 

Tal  é  o  poveiro.  Tal  é  o  caracter  das  suas  relações  com  a  so- 
ciedade portugueza.  Entre  o  Estado  e  elle,  a  seguinte  distribuição 
de  serviços:  o  Estado  recebe;  elle  paga.  Paga  e  pesca. 

Poderoso  e  desdenhado,  o  poveiro  captiva  a  nossa  mais  viva 
sympathia,  e  alcançará  decerto  a  do  leitor,  que  nos  perdoará  as 
longas  linhas  que  dispendemos  em  apresentar-lh'o  de  perto. 


A  Povoa  de  Varzim,  vestígio  evidente  da  existência  de  uma 
colónia  saxonia  n'esta  parte  do  território  portuguez,  tem  um  nome 
commum  a  varias  posições  da  AUemanha.  Chama-se  egualmente 
Varzim  á  propriedade  celebre,  residência  habitual  do  snr.  de  Bis- 
mark. 

Da  Povoa  podem-se  emprehender  com  commodidade  e  cora 
economia  os  melhores  passeios  e  as  mais  interessantes  digressões 
no  alto  Minho.  A  cerca  de  duas  léguas  ao  Norte,  á  beira  da  estrada 
de  Barcellos,  fica  perto  de  S.  Pedro  de  Rates,  o  Monte  de  S.  Fé- 
lix de  Lanudos,  cuja  ascenção  está  nas  forças  do  homem  menos 
robusto  e  até  de  qualquer  senhora  habituada  a  andar  a  pé. 

A  vista,  do  alto  da  montanha,  estrellada  de  moinhos  de  vento, 
coroada  por  um  marco  geodésico,  é  admirável.  No  fim  da  tarde, 
nos  bellos  dias  do  outomno,  o  aspecto  da  paizagera  corapensa  bera 
o  leve  incommodo  da  ascenção,  que  somente  se  pôde  fazer  a  pé. 
Para  todos  os  lados  bastas  florestas  de  pinheiros,  por  entre  os  quaes 
ondeia  o  rio  Cavado;  largo  horisonte  de  dez  léguas,  descobrindo 
para  um  lado  a  Povoa,  Villa  do  Conde,  Moreira;  para  outro  lado  a 
Apúlia,  Fão,  Esposende,  Vianna  do  Castello. 

Na  falda  do  monte,  à  beira  da  estrada,  ha  uma  pequena  ta- 
berna, que  recommendamos  aos  viajantes.  O  fino  ar  da  montanha, 
o  exercício  da  ascenção  e  mais  ainda  o  da  descenção,  abrem  natu- 
ralmente o  appetite  e  tornam  convidativo  e  ridente  o  aspecto  rús- 
tico e  negro  da  pequena  taberna.  Que  o  viajante  a  evite!  Essa 
crypta  é  a  mansão  do  jejum.  Tudo  lhe  falta.  É  inteiramente  ency- 


62  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

clopedica  a  sua  nudez.  Não  tem  um  ovo,  não  tem  uma  talhada  de 
chouriço,  não  tem  uma  simples  fatia  de  pão,  não  tem  um  biscoito ! 
Estive  n'esta  catacumba,  ao  descer  de  Lausados,  restaurando  as  mi- 
nhas forças  com  a  única  coisa  que  o  antro  me  podia  fornecer  —  o 
contacto  de  um  banco.  Tive  a  curiosidade  de  perguntar  á  dona  da 
taberna  o  que  fazia  ella  mesma  tenção  de  jantar.  Ella  sorriu  tris- 
temente. Insisti.  Um  homem  que  estava  á  porta,  encostado,  e  ao 
qual  eu  tinha  dado  lume  para  accender  um  cigarro,  explicou-me 
então  que  por  aquelles  sitios  não  era  uso  entre  os  povos  o  jantar; 
cada  um  comia  um  bocado  de  pão,  quando  o  tinha,  ou  um  cacho 
de  uvas,  quando  o  encontrava. 

Na  Povoa  ha  vários  hotéis,  dos  quaes  damos  os  nomes  dos 
maiores  pela  ordem  da  sua  importância:  Central,  de  Itália,  Por- 
tuense, do  Sígnal.  Os  preços  são  de  1)^000  a  l^JiSOO  reis.  As  ren- 
das da  casa  variam,  segundo  as  commodidades  que  proporcionam, 
desde  a  quantia  de  200  a  2f$i000  reis. 


A  GRANJA 


A  Granja  é  uma  povoação  diamante,  uma  estação  bijou,  uma 
iraia  de  algibeira.  Ao  chegar  tem  a  gente  vontade  de  a  examinar 
10  microscópio;  ao  partir  appetece  leval-a  na  mala,  entre  as  ca- 
nisas,  como  um  sachet. 

Ha  poucos  annos  ainda,  quando  se  abriu  o  caminho  de  ferro 
.lo  norte,  não  havia  uma  só  casa  na  actual  povoação.  As  primei- 
ras conslrucções  foram  edificadas  depois  da  inauguração  da  via 
férrea  por  um  proprietário  da  visinhança,  o  snr.  José  Fructuoso 

Íyres  de  Gouveia. 
As  condições  do  logar,  a  meia  hora  do  Porto,  á  beira  do  mar, 
a  orla  de  um  denso  pinhal,  attrahirara  successivamente  os  ba- 
nhistas e  fizeram  rapidamente  da  Granja  o  que  ella  é  hoje:  a  mais 
graciosa,  a  mais  fresca,  a  mais  aceiada  das  estações  de  recreio  em 
Portugal. 

Como  não  ha  no  logar  população  indígena,  a  Granja  pertence 
exclusivamente  aos  banliistas.  Quando  estes,  no  mez  de  novembro 
levantam  os  arraiaes,  a  povoação  deshabitada  é  guardada  apenas 
pelo  banheiro,  pelo  padeiro  e  pelo  tendeiro  do  sitio. 

De  sorte  que  a  Granja  é  verdadeiramente  a  coisa  que  o  seu 
nome  indica,  —  uma  espécie  de  quinta. 

Os  banhistas  poderiam  mandar  mural-a  e  pòr-lhe  uma  grade 
de  ferro  cora  o  seu  guarda-portão  que  annunciasse  os  viajantes 
ou  acceitasse  os  seus  bilhetes  de  visita  nos  casos  em  que  a  popu- 
lação não  quizesse  receber. 

O  serviço  do  portão  é  feito  por  emquanto  pelos  empregados 
na  estação  do  caminho  de  ferro,  a  um  dos  quaes  nós  perguntamos 
um  dia  em  outubro  passado: 

—  Queira  dizer-me:  está  em  casa  a  Granja? 
I        E  elle  respondeu-nos : 


64  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

—  Não,  snr.  Está  em  Mathosinhos.  Foram  para  lá  todos,  áí 
corridas  de  cavallos,  pelo  comboyo  da  manhã.  iMas  as  senhoras  vol- 
tam para  jantar  no  expresso  das  sete  horas. 

Na  Granja  os  banhistas  não  são  somente  os  habitantes,  en 
grande  parte  proprietários  das  casas,  são  ao  mesmo  tempo  os  do- 
nos da  povoação  e  representam  n'ella  a  camará  municipal,  o  exer- 
cito, a  policia,  o  escrivão  da  fazenda  e  a  repartição  das  obras  pu- 
blicas. As  despesas  geraes,  o  club,  a  fonte,  a  igreja,  o  mercado, 
a  rua,  são  mantidas  pela  communidade,  que  se  cotisa  para  esse 
fim.  Notável  exemplo  do  principio  da  descentrahsação  na  sua  mais 
larga  escala. 

Graças  a  este  systema  de  administração  local,  as  ruas  estãc 
escrupulosamente  aceiadas  e  não  lhes  falta  senão  uma  coisa:  uri 
cinzeiro  a  cada  esquina  para  se  lançarem  as  pontas  dos  charutos, 

O  aspecto  do  pequeno  mercado,  com  o  seu  pavimento  areadc 
como  um  jardim  e  os  seus  pavilhõesinhos  rústicos,  inspira  um  re- 
ceio :  o  de  lhe  poder  cahir  uma  nódoa. 

Os  vallados  estão  plantados  de  cactos. 

As  ruas  são  salpicadas  de  corbcilles  com  flores  como  squares 
ajardinados. 

Os  taludes  acham-se  cobertos  de  choupos,  de  eucaliptus,  de 
tramaguciras,  de  roseiras  bravas. 

Grandes  moutas  de  magnificas  hortênsias  ornam  a  entrada  das 
casas. 

A  grande  floresta  de  pinheiros  que  cobre  a  povoação  do  lado 
do  nascente  está  tratada  com  esmero ;  tem  clareiras  terraplenadas 
para  o  jogo  da  bola  e  do  croquet,  varias  plantações  de  camehas, 
viveiros  de  arbustos. 

Entre  as  mais  recentes  edificações  sobresaem  algumas  casas 
lindíssimas,  verdadeiros  modelos  do  género,  delineadas  e  execu- 
tadas com  o  mais  perfeito  gosto. 

O  chalet  do  snr.  Nuno  de  Carvalho  situado  na  orla  da  flores- 
ta, circumdado  de  pinheiros,  com  o  telhado  de  ardozia  de  largos 
beiraes  salientes  e  a  sua  ampla  janella  aberta  sobre  o  mar  e  res- 
guardada do  sol  por  um  longo  toldo  escocez,  é  um  primor  da  gra- 
ciosa architectura  moderna  das  edificações  de  recreio. 

O  cottage  do  snr.  Eduardo  Ghamiço,  com  os  seus  tijolos  re- 
vestidos de  hera,  o  seu  talude  plantado  de  roseiras  e  coberto  de 
relva,  abarracado,  com  pequenas  janellas,  é  o  typo  da  habitação 
modesta  e  elegante,  o  modello  do  ined-à-terre  gracioso  e  econó- 
mico. 

As  casas  dos  sns.  Manoel  de  Esperguelra,  Francisco  António 


AS   PRAIAS    DE    PORTUGAL  65 

Miranda  e  algumas  outras  dão  ainda  á  paisagem  do  sitio  uma  va- 
liosa contribuição  de  pittoresco. 

A  concorrência  dos  banhistas  na  praia  da  Granja,  cujo  movi- 
mento pôde  ser  actualmente  orçado  em  cerca  de  trezentas  pes- 
soas, augmenta  consideravelmente  de  anno  para  anno. 

Uma  companliia  estabeleceu  alii  um  hotel  regularmente  ser- 
vido com  quartos  pelo  preço  de  li$í200  reis,  comprehendido  o  ser- 
viço. 

O  club,  para  o  qual  está  sendo  concluído  um  edifício  especial 
com  um  salão  para  trezentas  pessoas,  restaurante,  cocheiras,  etc, 
acha-se  estabelecido  em  uma  casa  provisória  e  é  muito  concorrido. 
N'elle  se  dançou  era  muitas  noites  durante  a  temporada  passada, 
fizeram-se  concertos,  e  no  dia  era  que  ali  passaraos  planeava-se  a 
representação  de  um  provérbio  de  Musset,  uma  sessão  de  qua- 
dros vivos  extrahidos  de  ilkistrações  de  Gustave  Doré,  e  um  pas- 
seio á  luz  dos  archotes  na  floresta. 

Os  banhistas  da  Granja  conhecem-se  todos,  apertam-se  todos 
a  mão,  frequentam  as  casas  uns  dos  outros,  vivera  finalmente  em 
família.  É  tão  agradável  isto  que  custa  ás  vezes  a  supportar. 

A  gente  acaba  de  chegar  e  de  entrar  em  casa :  calçou  as  suas 
chinelas,  poz-se  em  mangas  de  camisa,  aninhou-se  diante  da  sua 
mala,  está  tirando  para  fora  as  piugas,  tem  as  escovas  no  chão  a 
'um  lado,  os  lenços  de  assoar  a  outro  lado,  as  camisas  debaixo  do 
braço. . .  N'isto  grandes  risadas  frescas  e  cristallinas  entram  como 
'um  enxame  alegre  e  canoro:  são  as  amáveis  senhoras  A. . .  e  as 
■encantadoras  meninas  B.. .,  que  souberam  da  nossa  chegada,  que 
vêem  fazer-nos  uma  surpresa,  que  nos  trazem  um  ramalhete  de 
irosas  chá,  que  teem  uma  truta  na  mesa,  que  nos  esperam  para 
-almoçar  no  prédio  ao  lado,  que  acceitam  uma  garrafa  do  nosso 
'Chably,  que,  em  summa,  começam  a  fazer-nos  a  honra  de  nos  re- 
|ceber  «em  famiha». 

'  A  gente  foge  para  o  canto  da  cama,  acalcanha  como  pôde  um 
par  de  sapatos^  enfia  á  pressa  uma  jaqueta,  ata  um  lenço  no  pes- 
■coço,  corre  ao  chapéu  de  palha  que  está  n'um  taboleiro  da  mala 
em  cima  de  uma  cadeira,  e  lança-se  na  vida  «de  família»  a  braços 
com  uma  garrafa  de  Chably  e  com  o  receio  de  ter  talvez,  indiscre- 
tamente, manifestado  a  cor  dos  seus  suspensórios  ás  amáveis  se- 
nhoras A . . .  e  ás  encantadoras  meninas  B . . . 

Depois  ás  senhoras  A . . .  e  ás  meninas  B . . .  reune-se  a  inte- 
ressante família  C . . .  que  nos  leva  a  jantar  para  casa  dos  hospita- 
leiros cônjuges  D. . .  Pela  nossa  parte  procuramos  pagar  todas  es- 
'tas  obrigações  com  a  amabilidade,  com  a  phrase,  cora  a  anedocta, 


¥ 

66  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

com  o  dito,  com  todas  as  despezas  da  conversapão,  com  todas  as 
prodigalidades  do  espirito. 

Todas  aquellas  pessoas  nos  retribuem  na  mesma  moeda  e  são 
egualmente  espirituosas  comnosco. 

Á  noite  estamos  todos  cançados  da  graça  que  tivemos,  e  mais 
ainda  da  graça  que  fomos  obrigados  a  achar  que  tinham  os  ou- 
tros! 

Recolhemo-nos  pensando  nas  meninas  A. . .,  que  vimos  n'esse 
dia  sem  pó  de  arroz  e  que  teem  sardas  quando  estão  nas  praias ; 
nas  senhoras  B...,  que  tinhamos  por  espirituosas  nos  salões  de 
Lisboa  e  que  são  insignificantissimas  no  téte-à-téte  do  campo  quando 
lhes  falta  para  discursar  o  escândalo  do  dia,  a  anedocta  do  baile 
da  véspera,  a  phrase  consagrada  á  critica  do  ultimo  drama  ou  á 
musica  da  ultima  opera;  na  interessante  família  G. . .,  que  mette 
os  bicos  dos  pés  para  dentro;  nos  cônjuges  D...,  dos  quaes  um 
troca  o  b  pelo  f  e  o  outro  tem  só  meia  unha  em  um  dos  dedos  pol- 
legares. 

Elles,  os  A ... ,  os  B . . . ,  os  G . . . ,  os  D . . . ,  pela  sua  parte, 
observaram-nos  também  de  perto,  cara  a  cara,  durante  um  clia  in- 
teiro, o  que  nunca  até  então  lhes  succedera.  É  claro  que  nos  acha- 
ram mil  vezes  peor  do  que  nos  presumiam,  porque  é  raríssimo  o 
individuo  que  examinado  minudentemente  não  perca  cincoenía  por 
cento  do  valor  que  se  lhe  presumia  quando  cultivado  apenas  no  i 
intervallo  de  uma  quadrilha,  durante  um  entre-acto  n'um  cama-  t 
rote,  nos  quinze  ou  vinte  minutos  de  uma  conversação  de  visita   . 
quando  elle  traz  preparadas  para  o  caso  as  suas  phrases  assim 
como  as  suas  finas  luvas  còr  de  ganga,  e  a  gente  o  olha  barbeado 
de  fresco,  com  os  cabellos  correctamente  separados  por  uma  risca 
bem  uitida,  vestido  por  Poole,  sentado  n'um  fauteuU  de  setim  e 
tendo  no  plastron  uma  grossa  pérola  còr  de  rosa. 

No  campo  ou  nas  praias,  com  sapatos  ferrados,  sem  luvas, 
sentados  no  chão,  sem  ter  o  santo  e  a  senha  da  conversação  do 
dia,  como  succede  nos  grandes  centros,  entregues  a  si  mesmos, 
aos  seus  recursos  pessoaes,  ás  suas  observações,  ao  seu  critério, 
ás  suas  ideias,  quantos  resistem  á  tremenda  eternidade  de  uma 
convivência  de  dez  horas  ? 

Nas  grandes  sociedades  a  attenção  de  que  somos  objecto  es- 
palha-se  por  aquelles  que  nos  cercam;  em  uma  quinta  ou  n'uma 
pequena  praia  essa  attenção  recae  toda  sobre  os  nossos  ridículos, 
sobre  os  nossos  defeitos.  Fomos  já  discutidos  desde  que  annun- 
ciamos  a  nossa  vinda,  fallou-se  de  nós  uma  noite  inteira,  os  nos- 
sos amigos  disseram  de  nós  o  menos  bem  que  poderam,  as  meni- 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  67 

nas  esperam-nos.  Ainda  não  olharam  para  nós  e  já  nos  viram,  na 
sombra,  projectando  no  muro  um  immeuso  nariz  disforme  e  ridi- 
culo.  Ainda  llies  não  falíamos  e  ellas  conservam  os  olhos  baixos, 
mas  sob  esse  estreito  raio  visual  descobriram  já  as  joelheiras  que 
temos  nas  calças  e  o  lado  para  que  cambam  os  nossos  tacões.  As 
senhoras  idosas  assestam  sobre  nós  as  suas  terríveis  lunetas  cu- 
riosas, sedentas  de  matéria  examinavel,  e  pensam  que  a  nossa  pho- 
tographia  nos  favorece  de  mais  e  que  somos  inferiores  á  fama  que 
nos  precedeu  como  figura,  como  maneiras  e  como  intelligencia. 

Deita mo-nos  n'este  primeiro  dia  aborrecidos  de  obséquios,  es- 
tafados de  amabilidades,  esvaídos  de  conversação.  Promettemo-nos 
descançar  ao  outro  dia  no  silencio  e  na  solidão,  fumando  o  nosso 
velho  cachimbo  á  beira  do  mar,  conversando  simplesmente  com 
um  rude  pescador  ou  com  um  bronco  trabalhador  dos  campos 
tranquillo  e  sereno,  sem  ideias,  sem  pretenções  e  sem  palavras. 

No  dia  seguinte,  levantando-nos  de  madrugada,  não  achamos 
pescadores  na  costa  nem  cavadores  nas  terras.  Creados  de  sapa- 
tos descobertos,  meias  brancas,  e  jalecas  de  linho,  envernisam  ás 
janellas  as  botinas  dos  seus  patrões,  lavam  as  vidraças,  lustram  as 
guarnições  de  cobre  das  portas  da  rua,  regam  com  uma  bomba  a 
relva  dos  taludes.  É  o  alvorecer  do  chie. 

Refugiamo-nos  no  pinhal,  na  boa  solidão  simples  da  natureza. 
Deitamo-nos  de  costas  no  solo  fofo,  na  cama  feita  com  a  rama  secca 
dos  pinheiros.  Respiramos  com  delicia  a  brisa  marítima  coada  pe- 
los arvoredos.-  Olhamos  para  o  ceu  azul  e  diaphano  cortado  pelo 
voo  sereno  das  rolas  trazidas  pelo  primeiro  vento  suão,  sentimos 
a  grande  tranquillidade  ineíFavel  que  dá  a  convivência  da  floresta, 
a  plenitude  do  nosso  ser,  o  profundo  bem-estar.  A  mansidão  ex- 
terior das  coisas  communica-se-nos  e  dá-nos  a  satisfação  moral. 
Pensamos  nos  nossos  amigos  com  ternura,'  nos  nossos  inimigos  com 
indulgência  e  com  bondade.  Planeamos  estudos,  trabalhos,  propó- 
sitos bons.  Principiamos  a  applaudir-nos  da  escolha  que  fizemos  do 
tranquillo  e  doce  retiro  cuja  influencia  tão  saudavelmente  nos  fe- 
cunda. 

N'isto,  por  entre  a  cor  sombria  da  espessura,  vemos  uns  pon- 
tos garridos,  alegres  e  ruidosos  que  se  aproximam.  Na  clareira 
ao  pé  da  qual  nos  deitamos  desembocam  de  repente  os  chapéus 
ornados  de  margaridas,  de  papoulas,  de  flores  silvestres,  os  vesti- 
dos de  linho  aromáticos  e  frescos  guarnecidos  de  renda  côr  de  pa- 
lha. Os  sapatos  de  pelle  de  gamo  apertados  com  fitas  de  seda  branca 
e  as  meias  côr  de  cinza  de  xadrezes  de  seda  apparecem  ao  sal- 
tar do  pequeno  valado.  As  bolas  de  buxo  torneado  rolam  de  en- 


68  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

contro  aos  arcos  de  ferro  cravados  no  chão.  As  meninas  E. . .,  as 
meninas  F. . .  e  as  meninas  G. . .,  ás  quaes  na  véspera  á  noite, 
no  club,  fomos  apresentados  pelas  já  mencionadas  senlioras  A. . ., 
B...,  C...  e  D...  cliegam  com  os  seus  malhos  polidos  em  Lon- 
dres e  vêem  fazer  a  sua  partida  matinal  de  croquet. 

—  Que  bom  acaso! 

—  Que  fehz  coincidência! 

— É  o  nosso  visinho  H. . .  que  chegou  hontem  de  Lisboa. .  . 

—  Minhas  senhoras! 

—  Que  vae  fazer  a  nossa  partida. . . 
— E  informar-nos  dos  últimos  casos. . . 

—  Se  é  verdade  que  se  está  dançando  o  fado  uo  club  de  Cas- 
caes ! 

—  Se  efTectivamente  a  viscondessa  deX. . .  foi  vista  fumando 
cigarros  còr  de  rosa  na  praia  de  Paço  d'Arcos ! 

—  Em  paga  virá  esta  noite  ver  o  nosso  fogo  de  artificio . . . 

—  E  entrará  amanhã  nas  charadas  vivas  que  vamos  fazer  aqui 
no  pinhal  com  illuminação  veneziana . . . 

E  assim  começa  a  repetir-se  n'esse  dia  a  scena  da  véspera, 
que  ha  de  repetir-se  ainda  no  dia  immediato,  e  no  outro,  e  mais 
no  outro,  e  em  todos  os  outros  dias  até  o  fim  da  temporada.  Sem- 
pre as  anedoctas,  os  ditos,  os  encontros,  os  gracejos! 

Se  uma  vez  não  sahimos,  vem  a  colónia  toda  visitar-nos. 

Um  manda-nos  uma  garrafa  da  sua  agua  de  Saint-Galmier. 
Outro  remette-nos  a  sua  botica  homoepathica,  os  seus  synapismos 
Rigolot,  as  suas  pastilhas  de  Vichy.  Oito  pessoas  dedicadas  mettera 
a  um  tempo  os  dedos  nas  algibeiras  do  coUete  para  extrahirem  a 
caixa  das  suas  pilulas  predilectas:  as  Radway,  as  anti-biliosas,  as 
Déhaut,  as  de  Famiha...  Surgem  de  toda  a  parte,  cercam-nos, 
prehenchem-nos,  cumulam-nos  as  receitas,  os  alvitres,  os  diagnós- 
ticos, os  conselhos  therapeuticos. 

—  Tome  quinino! 

—  Siga  a  medicina  caseira  de  Raspail. 

—  Vejamos  o  pulso  ! 

—  Deite  a  hngua  de  fora! 

—  Porque  não  toma  agua  de  Wals?  "i 

—  Beba  alcatrão  e  chá  de  eucaliptus.  ' 

—  O  que  elle  tem  é  tristeza,  desanimo,  aborrecimento,  final- 
mente— figado ! 

—Dieta! 

—  Carnes  brancas ! 

—  Ostras  e  muitas  uvas  1  ^ 

U 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL  69 

— E  gelados,  muitos  gelados  de  limão  e  de  laranja! 

Se  saliimos  sósinhos  uma  vez,  uma  única  voz,  para  descansar- 
mos, para  nos  acharmos  sem  companhia,  os  homens  todos  a  um 
por  um,  procuram-nos  n'essa  noite  ou  ao  outro  dia,  chamam-nos 
á  parte,  levam-nos  para  debaixo  de  uma  arvore,  para  a  beira  do 
mar,  para  o  vão  de  uma  janella;  enfiam  um  dedo  pela  casa  do  nosso 
fraque,  sacodem-nos  as  pontas  da  gravata  com  pequenos  piparotes 
amigáveis,  e  principia  uma  successiva  e  interminável  ladainha  de 
explicações  e  de  desculpas. 

—  Não  cuidei  nunca,  meu  caro,  que  você  nos  privasse  do 
prazer  da  sua  companhia  unicamente  porque  hontem  uma  simples 
palavra  que  eu  proferi  innocentementc . . . 

—  Que  a  allusão  aliás  benévola  de  minha  mulher. . . 

—  Que  o  dito  irreflectido  de  minha  filha. . . 

—  Esperamos  porém  que  este  desagradável  incidente  se  con- 
sidere terminado. . . 

—  Que  se  esqueça  este  desgosto. . . 

—  Que  se  restabeleça  a  bella  harmonia  inalterável  n'esta  co- 
lónia. . . 

—  Que  você  nos  restitua  a  sua  amisade . . . 
Etc,  etc,  etc. 

De  modo  que  é  absolutamente  impossível  passear  só,  ficar  em 
casa,  fechar  a  porta,  prescindir  das  relações,  abstermo-nos  da  con- 
vivência, dispensar  a  companhia,  por  um  dia,  por  um  só  dia  que 
seja! 

Na  Granja  desde  que  o  banhista  salta  do  wagon  á  gare,  es- 
treitado nos  braços  da  colónia,  até  que  salta  da  gare  ao  wagon, 
solto  dos  braços  da  mesma  colónia,  o  seu  destino  impreterível,  fa- 
tal, é  viver  ali  simplesmente,  agradavelmente,  sem  exigências  de 
apparato  e  de  luxo,  saudavelmente,  divertidamente,  mas  sempre 
—  em  família. 

— . .  .Que  é  o  melhor  que  tem  esta  praia!  exclamam  uns. 

— . .  .Que  é  o  peor  que  esta  praia  tem!  murmuram  outros. 


( 


DE  PEDROUÇOS  A  CASCAES 


Se  queres  dar,  leitor,  o  mais  bello  dos  passeios  permittidos 
ao  habitante  de  Lisboa,  faze  o  que  eu  hontem  fiz. 

Levanta-te  ás  5  horas  da  manhã,  n'um  domingo,  veste-te  á 
luz  do  candieiro,  porque  em  seteml^ro  ainda  não  é  bem  dia  a  essa 
hora,  pega  na  tua  bengala  e  no  teu  binóculo  e  vae  á  ponte  dos 
vapores  ao.  Cães  do  Sodré. 

Tomamos  um  bilhete  de  ida  e  volta  no  vapor  de  Cascaes  por 
dez  tostões.  Ainda  é  cedo,  o  vapor  não  parte  senão  ás  7  horas. 
Entramos  no  café  Grego  e  fazemo-nos  servir  uma  chávena  de  leite 
ou  chá  preto. 

Os  passageiros  vêem  chegando  em  multidão  ao  cães.  A  ponte 
dos  vapores  enche-se  de  alegres  e  frescas  toilettes  de  manhã.  Lis- 
boa madruga  para  fugir  á  calma  e  á  semsaboria  de  um  domingo 
de  verão  dentro  da  cidade.  Enchem-se  os  vapores  de  Cacilhas  e 
de  Belém. 

Embarcamos,  accendemos  um  charuto,  subimos  á  ponte  do 
vapor.  Magnifico  espectáculo ! 

Diante  de  nós  estende-se  em  toda  a  sua  magestade,  como  um 
pequeno  Mediterrâneo,  o  bello  Tejo,  que  scintilla  sob  a  bruma 
aquática  como  um  peito  de  aço  coberto  por  um  véu  de  gaze,  ba- 
tido pelo  largo  sol. 

Perdeu  muito  da  sua  fama  antiga  o  celebrado  Tejo.  Podería- 
mos mesmo  dizer  que  alguma  coisa  perdeu  também  das  suas  an- 
tigas aguas. 

Frei  Bernardo  de  Brito  conta  que  viu  em  Toledo  um  dos  bar- 
cos que  no  seu  tempo  faziam  a  navegação  do  Tejo  e  que  de  Lis- 
boa tinha  ido  á  vela  até  áquella  cidade,  o  que  corrobora  de  um 
modo  bem  notável  o  phenomeno,  tão  estudado  actualmente  pelos 
geólogos,  da  progressiva  diminuição  da  agua  no  volume  dos  rios 
e  no  debito  das  fontes  em  toda  a  Europa. 


72  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 


As  éguas  das  vastas  lezírias  do  Tejo  não  são  já,  como  nos  tem- 
pos imaginosos  de  Virgilio,  fecundadas  pelo  vento. 

Das  suas  margens  já  se  não  exportam  as  cannas,  que,  segundo 
Strabão,  davam  as  pennas  preferidas  dos  escriptores  romanos. 

Também  já  não  produz  o  ouro,  de  que  Duarte  Nunes  de  Leão 
conta  que  se  fez  ura  sceptro  para  D.  João  iii. 

Finalmente,  já  não  sahem  da  sua  incomparável  bahia  os  al- 
terosos galeões  que  no  tempo  da  Renascença  varreram  do  Oceano, 
para  abrir  campo  à  historia  de  novos  feitos,  a  velha  tradição  das 
conquistas  dos  phenicios  e  dos  descobrimentos  dos  normandos. 

Em  compensação  ahi  temos  o  Aterro,  com  as  suas  altas  e  es- 
guias chaminés  empennachadas  de  fumo,  a  fabrica  de  gelo  arti- 
ficial, o  gazometro,  a  officina  de  serração  a  vapor.  Lá  está  o 
Grande  Hotel  Central,  com  a  sua  casa  de  banhos  e  o  seu  res- 
taurante francez.  Mais  acima,  a  bandeira  ingleza  tremula  na  larga 
varanda  do  Bragance  Hotel.  Carroagens  de  New-York,  puxadas 
por  mulas  brasileiras,  rolam  apparalosamente  sobre  o  carril  ame- 
ricano e  salpicam  o  cães  com  as  suas  alegres  cores  ambulantes. 
■ — O  que  tudo  prova  que  alguma  coisa  se  tem  feito  no  mundo 
n'estes  três  séculos  que  nós  temos  passado  a  recordar  que  foi 
por  nosso  intermédio  que  as  naus  da  índia  trouxeram  à  Europa  as 
pimentas  de  Ceilão. 


Do  outro  lado  do  rio  fica-nos  Almada,  de  cuja  elevação  se  des- 
cobre para  um  lado  Lisboa  inteira,  desde  Santos  o  Velho  até  Belém,  e 
para  o  outro  a  industrial  Arrentella,  o  realengo  Azeitão,  Palmella, 
acastellada,  o  Barreiro,  com  a  sua  estação  do  caminho  de  ferro  do 
Sul,  o  Lavradio  com  as  suas  apreciadas  vinhas,  e  Cezimbra,  a  piscosa. 

Diz-se  que  Almada  fora  fundada  pelos  inglezes  que  vieram 
ao  Tejo  na  expedição  de  Guilherme,  o  da  longa  espada,  e  que 
Affonso  Henriques  doara  aquelle  território  aos  que  desistissem  da  i 
cruzada  da  Palestina.  Bons  tempos  em  que  uma  expedição  ingleza 
se  peitava  com  uma  nesga  de  terra  ah  da  outra  banda!  Que  diria 
a  Inglaterra  se  nós  hoje  oíferecessemos  a  faculdade  de  residir  na 
Trafaria  aos  seus  expedicionários  que  preferissem  ficar  em  nossas 
terras  a  fazerem  a  viagem  ao  Polo? 

Mas  o  vaporzinho  de  Cascaes  levantou  a  sua  ancora  e  partiu. 


Aquelle  renque  de  palácios  que  estamos  vendo,  gravemente 
enfileirados,  com  os  seus  jardms  plantados  de  palmeiras  e  de  arau- 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  73 

carias,  é  a  Junqueira.  O  pequeno  edifício  redondo  que  mais  além 
sobresahe  no  arvoredo  é  o  observatório  da  Tapada  da  Ajuda.  Ao 
poente  fica-nos  o  grande  e  pesado  palácio  de  D.  João  vi,  que  o 
mandou  edificar  no  mesmo  logar  em  que  fura  devorado  pelas  chara- 
mas  o  antigo  paço,  habitado  ainda  por  D.  .Maria  i.  Ao  nascente 
avistamos  ainda,  como  sentinellas  da  cidade  morta,  os  cyprestes 
immoveis  dos  Prazeres. 


Passamos  era  frente  da  praia  da  Torre.  É  animadíssimo  o  seu 
aspecto.  As  barracas  dos  banhistas,  brancas,  ponteagudas,  dão-lhe 
o  ar  de  um  acampamento  de  opera  cómica. 

Junto  da  agua,  barracões  de  madeira,  embandeirados,  osten- 
tam as  suas  varandas  cobertas  com  toldos  recortados,  debaixo  dos 
quaes  ondeiam  os  véus  e  se  agitam  os  leques  das  senhoras. 

Dos  barracões  sahem  para  o  mar  pranchas,  em  que  uns  espe- 
ram, pittorescamente  drappés  nos  seus  lençoes  turcos,  e  de  que 
outros  se  precipitam  de  mergulho  na  vaga. 

Alguns  pequenos  botes,  com  espectadores,  bordejam  na  agua. 

As  cores  dos  vestidos  de  verão,  dos  chapéus  de  sol  abertos, 
das  bandeiras  desfraldadas,  produzem  sob  o  sol  uma  grande  man- 
cha alegre,  ridente,  cheia  de  luz,  no  meio  da  areia  fulva. 

Ao  lado  da  praia  destaca  magnificamente,  com  uma  leve  cor 
de  sépia  sobre  o  transparente  azul,  a  bella  Torre  de  Belém,  com 
os  seus  relevos  e  bastiões,  as  suas  guaritas,  os  seus  eirados,  o  seu 
elegante  azarve,  em  cujas  ameias  se  entalham  as  cruzes  floreteadas 
de  Chrislo,  e  a  sua  bateria  airosa  como  o  terraço  italiano  de  um 
palácio  de  recreio. 

Considerada  como  construcção  mihtar,  a  importância  da  Torre 
de  Belém  é  absolutamente  nulla.  As  suas  muralhas  de  cantaria  des- 
appareceriam  dentro  de  poucos  minutos  varejadas  pela  aililheria 
moderna.  A  única  arma  defensiva  que  a  Torre  de  Belém  pôde  em- 
pregar contra  o  inimigo  é  a  sua  belleza.  A  sua  guerra  terá  de  ser 
toda  por  sorrisos  como  a  das  creaturas  coquettes. 

Quando  ha  poucos  annos  a  torre  mandou  uma  bala  a  um  na- 
\io  de  guerra  americano  que  demandava  a  barra,  o  commandante 
da  embarcação  reuniu  conselho  de  officiaes  e  propôz  a  rephca  ao 
fogo  da  torre.  Votou-se  por  unanimidade  que  se  não  abrisse  uma 
canhoneira  contra  aquella  jóia,  tão  delicada,  que  se  desmoronaria 
á  primeira  descarga. 

Para  uma  corveta  americana,  receber  um  tiro  da  Torre  de 
Belém  era  o  mesmo  que  para  um  homem  valente  levar  uma  bo- 


74  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

fetada  da  mão  delicada,  franzina,  perfumada,  de  uma  linda  mulher, 
fraca  e  pequenina.  Á  bala  que  a  torre  enviou  ao  navio,  o  navio 
respondeu  mandando  um  beijo  á  torre.  Somente,  como  o  amante 
caprichoso  que  segura  os  pulsos  da  sua  bella  e  lhe  mette  á  força 
nos  cabellos  o  cravo  encarnado  que  trazia  na  casaca,  o  americano 
vingou-se  da  torre,  obrigando-a  a  arvorar  o  estrellado  pavilhão 
dos  Estados. 


Á  praia  de  Belém,  chamada  da  Torre,  segue-se  a  de  Pedrou- 
ços,  na  qual  falta  o  pittoresco  dos  barracões,  cujas  varandas  dão 
a  Belém,  visto  do  mar,  um  aspecto  tão  festivo  e  tão  jovial. 

De  Pedrouços  até  Cascaes  seguem-se  quasi  ininterrompida- 
mente  as  diíferentes  estações  dos  banhos.  Vem  primeiro  Algés, 
com  a  sua  ponte  e  os  seus  dois  palácios. 

Depois  apparece  S.  José  de  Ribamar,  com  o  seu  convento  en- 
carnado, actualmente  propriedade  do  conde  de  Cabral,  a  qual  so- 
bresahe  no  fundo  de  verdura  da  quinta  da  Piedade,  que  a  familia 
do  finado  príncipe  D.  Miguel  de  Bragança  herdou  o  anno  passado. 

Vamos  vendo  successivamente  o  Dá-Fundo  com  as  grandes  ar- 
vores da  bella  quinta  do  snr.  Fernando  Palha,  a  Cruz  Quebrada,  a 
Boa  Viagem,  a  Gibalta. 


Eis  Caxias  e  o  seu  palácio  real,  residência  predilecta  do  snr. 
D.  Miguel  nos  últimos  tempos  do  seu  reinado.  O  desditoso  soberano 
habitava  ordinariamente  Queluz.  Um  dia,  achando-se  ahi  occupado 
a  caçar  pombos  nas  terras  do  Infantado,  foram  participar-lhe  que 
uma  esquadra  franceza,  entrada  no  Tejo,  acabava  de  apresar  todos 
os  nossos  navios  de  guerra  a  titulo  de  indemnisação  por  um  insulto 
de  que  dois  francezes  haviam  sido  objecto.  Diante  da  noticia  d'este 
facto,  verdadeiramente  enorme — uma  flotilha  que  entra  n'um  porto 
e  se  apodera  de  uma  marinha  de  guerra  —  o  soberano,  vestido 
com  um  casacão  de  briche,  botas  de  montar,  meias  de  lã  acima  do 
joelho  e  um  bonet  de  prato,  montou  a  cavallo  e  veio  a  Lisboa  n'uma 
d'essas  galopadas  legendarias,  terror  dos  cortezãos,  muitos  dos 
quaes  derrogavam  a  etiqueta,  dei.xando  de  seguir  o  soberano  e  fi- 
cando extenuados  pelas  estradas. 

Em  Lisboa  quiz  o  rei  assestar  nos  cães  a  sua  artilheria  e  met- 
ter  a  pique,  a  tiros  de  peça,  as  embarcações  francezas.  Surgiram 
porém  obstáculos  que  não  permittiram  pôr  em  practica  este  alvitre 
mais  extraordinário  talvez  do  que  o  próprio  caso  que  lhe  dera  ori- 


AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL  75 

gem.  Sua  magestade  mandou  então  construir  uma  bateria  em  Ca- 
xias e  passou  a  entreter  os  seus  ócios,  fazendo  fogo  de  artilheria 
sobre  um  velho  navio  que  se  collocára  no  mar  como  alvo  aos  reaes 
tiros.  E,  depois  d'isso,  sua  magestade  permanecia  muito  em  Caxias, 
vigiando  o  mar,  esperando  talvez  que  a  esquadra  franceza  lhe  ap- 
parecesse  de  novo,  estando  elle  preparado  para  a  receber.  Mas  a 
esquadra  franceza  não  voltou.  Voltaram  os  navios  que  ella  apre- 
sara, trazendo  a  seu  bordo  os  homens  que  puzeram  no  throno  a 
snr.*  D.  Maria  II  e  desterraram  para  sempre  o  artilheiro  de  Caxias. 

Os  jardins  do  palácio  n'esta  praia  conservam  ainda  o  seu  ca- 
racter antigo,  e  são  como  Queluz  um  soffrivel  specimen  das  ar- 
chitecturas  vegetaes  do  século  passado,  postas  em  moda  por  Luiz 
XIV.  As  avenidas  são  riscadas  por  esquadria,  em  ângulos  rectos.  A 
arvore  é  decotada  em  forma  de  columna,  de  pyramide,  de  obelisco. 
Os  tanques  têem  molduras  altas,  lavradas  em  relevo,  como  gran- 
des espelhos  de  salão.  As  alamedas  parecem  galerias.  As  murtas 
aparadas,  lisas,  rectas,  em  volta  do  pequeno  tanque,  de  um  vaso 
de  Le  Nutre,  da  meza  de  mármore,  do  banco  esculpido,  semelham 
os  biombos  que  cercavam  a  meza  do  rei-sol,  quando  nas  noites  de 
inverno  elle  ceiava  com  as  suas  damas,  à  grand  couvert,  nos  salões 
de  Marly-Ie-Roi.  As  perspectivas  —  trompe-l'ceuil  —  de  templos  da 
Gloria,  de  palácios  de  Alcestes,  de  jardins  de  Armida,  pintadas  nos 
muros;  os  azulejos  com  que  se  forram  os  aviários;  os  embrexados, 
feitos  de  conchas,  de  seixos,  de  bocadinhos  de  porcellana,  com  que 
se  constroem  as  cascatas;  —  todas  estas  superfetações  da  natureza 
são  um  pouco  ridículas  aos  olhos  dos  paisagistas.  Todavia,  esses  anti- 
gos jardins  italianos  tinham  um  fira  lógico:  harmonisar  as  construc- 
ções  com  as  paisagens,  manter  nas  salas  e  nos  jardins  a  mesma 
.arte  decorativa,  o  mesmo  espirito  de  ornato.  Cerquem  dos  nossos 
mordemos  jardins  inglezes  os  grandes  edificios  macissos,  rectangu- 
lares, do  século  passado,  e  verão  a  discordância  mais  flagrante  e 
mais  insoffrivel. 

O  jardim  inglez,  com  os  seus  intuitos  exclusivamente  paisa- 
gistas, a  sua  imitação  da  rusticidade  ás  vezes  falsa  e  pretenciosa, 
[ião  se  supporla  senão  em  frente  da  modesta  elegância  da  casa  mo- 
lerna,  do  cottage  e  do  chalet. 

A  Caxias,  que  Deus  guarde  e  conserve  com  o  seu  jardim  e 
com  a  sua  triste  e  melancholica  praia",  segue-se  Papo  d"Arcos,  de 
Iodas  as  praias  da  margem  do  Tejo  a  que  mais  desafogadamente 
vé  o  mar  e  respira  a  atmosphera  marítima.  Tem  apenas  uma 
rua  —  a  estrada — ,  mas  essa  está  á  beira  da  agua,  exposta  a  su- 
doeste, de  modo  que  descobre  largamente  o  Oceano.  Depois  de 


76  AS   PRiVIAS   DE    PORTUGAL 

Pedrouços  é  esta  a  praia  em  que  se  grupam  mais  barracas.  As 
arvores  da  quinta  do  conde  das  Alcáçovas  facultam-lhe  um  pe- 
queno fundo  fresco  de  verdura.  Uma  ou  duas  casas,  cujos  síores 
exteriores  vestem  as  janellas  de  pequenos  toldos  á  flamenga,  dão- 
llie  uma  certa  feição  confortável. 

Porque  é  que  não  téem  todas  as  casas  da  beira-mar  esteí 
Stores  alpendrados?  Porque  não  contribuem  os  proprietários  con 
esse  pequeno  accessorio  do  piítoresco,  de  custo  tão  módico  e  tã( 
agradável  para  quem.  habita  as  casas  expostas  ao  sol? 

Quasi  todas  as  casas  do  campo  e  das  praias,  dos  subúrbio; 
de  Lisboa,  são  particularmente  mias,  descarnadas,  rectilíneas,  feiis 
Simas.  Querem  transformal-as  rapidamente,  tornal-as  agradáveis 
sympathicas,  appetitosas?  Pintem-as  de  cinzento,  de  cor  de  lous; 
ou  de  côr  de  chumbo,  adornem-as  de  uma  singela  trepadeira,  ; 
hera,  a  gahrcina,  o  hehotropo  ou  a  madresilva ;  vistam-lhes  a 
janellas  de  grandes  jelosias  brancas,  ou  suspendam  sobre  as  va 
randas  largos  stores  salientes  de  hstas  verticaes  ou  de  grande 
quadrados  escocezes.  Se  ha  um  muro  de  jardim,  substituam-o  po 
uma  sebe,  por  uma  simples  grade  de  madeira  pintada  de  verd 
ou  por  um  vallado  plantado  de  cactos. 

Não  ha  casa  que  resista  a  este  processo,  porque  as  casas  sã 
um  pouco  como  as  mullieres,  que  só  são  feias  quando  são  tão  es 
tupidas  que  se  não  sabem  dotar  com  essa  segunda  belleza  supple 
mentar  que  se  chama  a  sympathia. 


Paço  d'Arcos  dizem  que  é  a  praia  aristocrática  dos  subúrbio 
de  Lisboa.  Não  sei  bem  d'onde  é  que  esta  fama  Ibe  procede.  Cus 
ta  tanto  já  hoje  a  assignalar  na  sociedade  portugueza  o  ponto  ei 
que  a  aristocracia  principia  e  o  ponto  em  que  ella  acaba! 

Ha  por  exemplo  viscondes  que  ninguém  considera  aristocn 
tas.  lia  famosos  e  antigos  appelhdos  cujos  possuidores  passam  égua 
mente  pelas  pessoas  menos  aristocratas  do  mundo. 

Aristocrata  chama-se  em  Portugal  ao  individuo  que  tem  ce: 
tos  hábitos  de  vida,  certos  disvelos  de  roupa  branca,  certas  coi 
vivências  de  salão,  um  pouco  de  ar,  de  maneiras,  de  toilette  e  c 
mão  de  rédea. 

Que  estas  condições  se  dêem  mais  especialmente  nos  banhi: 
tas  de  Paço  de  Arcos  do  que  nos  outros,  eis  o  que  não  me  atre\ 
a  aífirmar. 

Como  quer  que  seja  o  corpo  diplomático  patenteia  por  Paj 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  77 

d'Arcos  uraa  predilecção  manifesta.  Isto  imprime  á  vida  dos  seus 
salões  o  caracter  grave  e  reservado  que  a  diplomacia  impõe.  Este 
caracter  procede  do  duplo  sentido  que  os  representantes  de  cada 
potencia  folgam  de  perscrutar  nas  palavras  que  os  outros  dizem  e 
de  dar  áquellas  que  elies  mesmos  proferem.  Assim,  quando  um 
snr.  enviado  extraordinário-  tem  calor  não  o  diz  sem  reserva,  sem 
restricção  condicional,  porque  quem  sabe  se  será  essa  ou  não 
a  opinião  thermometrica  da  politica  do  seu  governo?  Do  outro  la- 
do o  senhor  encarregado  de  negócios  que  ouve  o  senhor  enviado 
extraordinário  hesita  em  confirmar  em  absoluto  ou  em  regeitar  in 
limine  a  opinião  do  seu  illustre  interlocutor,  porque  o  senhor  en- 
carregado pensa. que  as  paredes  tem  ouvidos  e  que  uma  impru- 
dência diplomática  pôde  —  quem  sabe?  —  agitar  os  fundos.  De  sor- 
te que  nada  mais  solemne,  mais  grave,  mais  casuístico,  mais  sub- 
til, mais  diííicultoso,  do  que  formar-se  entre  suas  exceilencias  um 
accordo  sobre  a  opinião,  tão  audaz  para  uns,  tão  insidiosa  para  ou- 
tros, de  estar  ou  de  não  estar  calor! 

Era  todo  o  caso  as  caleches,  os  creados,  as  librés  dos  senho- 
res ministros,  as  saute-en-barque  de  flanela  e  os  chapéus  canotier 
dos  jovens  senhores  addidos  de  embaixada  espargem  nos  passeios 
um  aspecto  de  curte,  que  os  olhos  admittidos  aos  grandes  explen- 
■dores  agradecem,  bem  como  um  perfume  de  moda  que  acceitam 
reconhecidos  os  narizes  haut-placés. 

Paço  d' Arcos  tem  um  hotel  habitável  —  o  do  Bugio — ,  e  um 
club  em  cujo  salão  ha  soirées  aos  sabbados.  Os  banhistas  portugue- 
zes  são  apresentados  e  pagam  uraa  quota.  Para  os  extrangeiros  ha 
convites. 

Senhoras  hispanholas  a  banhos  n^estes  subúrbios  são  convoca- 
das era  cada  semana  a  levarem  aos  sabbados  de  Paço  d'Arcos  o 
doce  tributo  da  sua  presença,  da  sua  toilette  e  da  sua  expansiva 
vivacidade. 

-  Assim  como  pela  manhã  se  pergunta  para  o  banho  —  «  ha  ma- 
'ré?))  —  assim  á  noite  se  pergunta  para  o  baile  —  «ha  hispanho- 
.las?». 

í'  Havendo  hispanholas,  todos  os  portuguezes  que  estão  em  Pa- 
'ço  d'Arcos,  concorrem  ao  club;  muitos  vêem  para  esse  fim  das 
praias  circumvisinhas :  da  Boa  Viagem,  da  Cruz  Quebrada,  do  Da- 
fundo. A  valsa  toma  n'essas  noites  mais  velocidade,  mais  Ímpeto, 
mais  arranque.  A  pronuncia  hispanhola  lança  no  ruido  geral  do 
baile  um  elemento  de  rebate,  de  alarme,  como  se  se  presentisse 
ao  longe  o  frémito  dos  pandeiros,  o  frenesi  das  castanlioks,  a  ver- 
tigem do  bolero. 


78  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

Com  estes  pensamentos  contrasta  singularmente  o  aspecto  de 
Oeiras,  que  se  segue  a  Paço  d'Arcos. 

Nada  mais  profundamente  triste,  mais  abatido,  mais  destroçado ! 

O  bello  palácio  de  Oeiras  ergue-se  no  meio  da  desolação  e 
da  miséria  geral,  como  um  fidalgo  empobrecido  no  meio  de  velhos 
moveis  partidos  e  devastados. 

Muitas  casas  esqueléticas,  escancaradas,  sem  portas  nem  pos- 
tigos nem  vidraças,  parecem  caveiras  dispersas  na  pequena  pla- 
nicie. 

Oeiras  é  apenas  notável  pelo  seu  palácio  e  pelos  seus  bis- 
coutos. 

A  povoação  teve  uma  única  razão  de  ser:  a  residência  n'a- 
quelle  sitio  do  poderoso  ministro  de  D.  José.  Os  homens  como  o 
marquez  de  Pombal,  em  qualquer  parte  onde  se  achem,  espalham 
a  actividade  em  volta  d'elles;  são  um  phoco  de  organisação. 

Além  dos  homens  que  o  marquez  naturalmente  acariou,  Oei- 
ras devia  conter  no  tempo  de  D.  José  os  parasitas  que  no  século 
passado  iam  por  toda  a  parte  á  babugem  da  auctoridade  e  do  di- 
nheiro. A  classe  proletária  corrompia-se  nos  conventos  á  espera 
do  caldo  da  portaria;  a  classe  media  corrompia-se  nas  ante-cama- 
ras  dos  fidalgos  ao  farisco  dos  despachos,  das  tenças  ou  dos  sim- 
ples restos  dos  perus  que  sobejassem  do  jantar. 

Fallecido  o  marquez  de  Pombal,  Oeiras,  á  falta  de  núcleo,  dis- 
solveu-se. 


Por  cima  da  povoação  esphacelada,  no  viso  d'um  monte,  de- 
senha-se  com  uma  certa  grandeza  no  azul  do  espaço  o  duro  con- 
torno da  egreja  de  S.  Domingos  de  Rana,  com  o  seu  pequeno  car- 
rilhão, e  os  seus  dois  quadros  de  Pedro  Alexandrino:  A  ceia  e 
Nossa  Senhora  dando  o  rosário  a  S.  Domingos. 


Entre  Oeiras  e  Carcavellos,  illustre  pelos  seus  vinhedos,  do 
meio  dos  quaes  se  destaca  a  estação  do  telegrapho  submarino,  — 
fica  á  beira  do  mar,  beijada  pelas  ondas,  a  Torre  de  S.  Julião  da 
Barra,  cujas  masmorras  parecem  ainda  quentes  do  martyrio  das  vi- 
etimas  que  n'ellas  expiaram  o  seu  amor  pelos  direitos  modernos. 

Hoje  a  torre  é  uma  caserna,  que  procura  justificar-se  perante 
a  civilisaçãOj  mantendo  um  gazometro  e  accendendo  á  noite  no  ai- 


AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL  79 


to  eirado  um  pliarol,  a  cuja  luz  benéfica  e  amiga,  o  spectro  apasi- 
guado  de  Gomes  Freire,  deve,  alta  noite,  passear  tranquillo  pelas 
ameias  da  sombria  fortaleza  salpicadas  com  o  seu  sangue  generoso 
immolado  á  liberdade  e  á  civilisação. 

Ao  sul  da  Torre  de  S.  Julião  fica-nos  a  Torre  do  Bugio  cerca- 
da d'agua  como  uma  bateria  fluctuante  sobre  o  Tejo. 

Por  cima  de  Garcavellos  a  linha  do  horisonte  é  fechada  pelos 
recortes  agudos,  escarpados,  graníticos,  da  serra  de  Cintra,  onde 
campéa,  coroado  de  névoa  translúcida,  o  castello  da  Pena. 


A  marcha  do  vapor  descreve  outra  curva  e  entramos  na  ba- 
hia  de  Cascaes,  vinte  e  sete  kilometros  de  Lisboa  percorridos  em 
cinco  quartos  de  hora. 

Saltamos  nos  escaleres  e  desembarcamos  na  praia  dos  banhos 
circumdada  pela  muralha  da  villa. 

Ao  poente  fica  a  cidadella  solidamente  reconstruída  sobre  as 
suas  rochas  logo  depois  da  restauração  de  1640.  Do  lado  do  nas- 
cente a  casa  do  club  dos  banhistas  abre  sobre  a  bahia  as  suas  ja- 
nellas  de  sacada.  A  praia  é  extremamente  abrigada.  A  agua  está 
serena  como  n'uma  tina  e  a  brisa  é  tão  suave  que  não  faz  ondear 
uma  fita  nos  chapéus  das  senhoras  sentadas  á  sombra  das  suas  bar- 
racas. 

Exceptuada  esta  pequena  parte  da  enseada,  toda  a  costa  é  de 
rocha  e  a  pique,  o  que  dá  logar  aos  mais  pittorescos  accidentes, 
como  o  da  Boca  do  Inferno,  bella  caverna  escavada  pelo  mar,  on- 
de o  acaso  pérfido  da  vaga  quiz  que  uma  parte  da  família  real 
tivesse  corrido  o  perigo  de  afogar-se  pelo  verão,  no  mesmo  sitio 
em  que  eu  e  o  meu  amigo  Eça  de  Queiroz  almoçamos  tranquilla- 
mente  n'um  ventoso  dia  de  inverno.  Onde  suas  altezas  estiveram 
a  ponto  de  perder  a  vida,  por  tantos  títulos  preciosa,  tivemos  nós 
mergulhada  a  nossa  garrafa  de  champagne  que,  entre  duas  garfa- 
das  de  uma  mayonaise  de  atum,  içamos  sã  e  salva  do  traiçoeiro 
abysmo. 

Como  povoação,  Cascaes  é  a  mais  importante  das  praias  da 
Extremadura.  É  cabeça  de  concelho.  O  numero  dos  seus  fogos  é  de 
cerca  de  1:700  —  exactamente  o  mesmo  numero  que  existia  ha  cem 
annos,  o  que  prova  que  Cascaes,  se  não  tem  prosperado,  também 
não  tem  decahido  durante  o  curso  do  ultimo  século.  Esse  estacio- 
namento não  obsta  a  que  a  villa  possua,  segundo  uma  memoria 
histórica  e  estatística  do  snr.  Borges  Barruncho,  «  vinte  e  oito  ruas, 


80  AS   PRAIAS   DE    PORTUGAL 

treze  travessas,  quatro  beccos,  doze  largos,  três  calçadas,  dois  ca- 
minhos, dois  altos  8  três  sitios)). 

Além  d'isso  Cascaes  possue  uma  praça,  em  que  se  acha  o  tri- 
bunal e  a  casa  da  camará,  um  passeio  publico,  três  hotéis,  um 
theatro  e  uma  praça  de  touros.  Outra  coisa  que  ainda  lhe  faz  mais 
honra:  possue  também  dez  escholas,  das  quaes  uma  —  caso  talvez 
único  —  é  sustentada  á  custa  do  próprio  professor,  que  fornece  as 
casas  8  ensina  gratuitamente  os  alumnos.  Este  benemérito  cidadão 
obscuro  é  o  snr.  padre  José  Maria  Loureiro. 

Da  salubridade  da  villa  dá  o  mais  eloquente  testemunho  uma 
estatística  publicada  pelo  snr.  Barruncho,  da  qual  se  deduz  que  nos 
últimos  cinco  annos  a  mortalidade  foi  de  2,71  ao  passo  que  em 
Lisboa,  com  todos  os  cuidados  hygienicos  de  que  se  suppõe  que  é 
objecto  uma  capital,  a  morlahdade  tem  chegado  a  4,44. 

Dos  957  indivíduos  fallecidos  em  Cascaes  durante  o  referido 
praso  52  contavam  de  70  a  80  annos;  19  de  80  a  90;  8  de  90  a 
100;  1  de  100  a  110.  É  muito  bom. 

Um  dos  factos  mais  memoráveis  da  historia  politica  de  Cascaes 
é  a  derrota  do  prior  do  Crato,  que  concentrou  ahi  as  pequenas 
forças  com  que  se  bateu  heroicamente  contra  os  terços  do  duque 
d'Alba  que  se  dirigiam  de  Setúbal  para  a  tomada  de  Lisboa.  Schaef- 
fer  refere  que  D.  António  de  Castro,  senhor  de  Cascaes,  suggerira 
ao  duque  d'Alba  a  ideia  de  tomar  por  Cascaes  a  direcção  de  Lis- 
boa, sob  a  clausula  de  que  a  villa  não  seria  saqueada  pelas  tropas  ■ 
híspanholas.  Esta  condição,  se  foi  estipulada,  não  foi  cumprida. 
Rendida  a  cidadella,  a  villa  foi  posta  a  saque  pelo  duque  d'Alba. 
O  mais  curioso  porém  é  que  pouco  depois  d'este  desastre,  retiran- 
do de  Lisboa  para  embarcar  em  Cascaes  o  exercito  inglez  que  vie- 
ra em  soccorro  do  prior  do  Crato,  estando  já  então  a  praça  em  po- 
der dos  hispanhoes,  foi  a  villa  segunda  vez  saqueada  pelos  solda- 
dos inglezes!  Pobre  villa! 

Nos  vinte  e  dois  cubículos  que  existem  no  revelim  da  cida- 
della foram  em  1833  encurralados  duzentos  e  quarenta  e  um  pre- 
sos poUticos  transferidos  da  Torre  de  S.  Julião  da  Barra  cujos  cár- 
ceres haviam  sido  invadidos  pelo  cólera  morbus.  Isto  não  impedia 
que  dos  duzentos  e  quarenta  presos,  acabrunhados  de  privações  e 
de  vexames,  sepultados  no  reveUm  de  Cascaes,  cahissem  doentes 
cincoenta  e  três  e  fallecessem  dezeseis. 

Cascaes  tem  o  seu  homem  illustre  e  o  seu  monumento  celebre. 

O  homem  é  o  piloto  Afíbnso  Sanches,  que  tendo  arribado  no 
anno  de  1486  com  a  sua  caravella  a  uma  remota  região  desconhe- 
cida, veio  depois  a  morrer  na  ilha  da  Madeira  em  casa  de  Chris- 


AS  PBAIAS  DE   PORTUGAL  81 

tovão  Colombo,  que  herdou  as  cartas  e  o  diário  do  obscuro  nau- 
frago, o  qual  talvez,  sem  o  presumir,  fora  o  primeiro  a  tocar  no 
continente  americano. 

O  monumento  de  Cascaes  é  a  sua  bella  e  secular  palmeira, 
plantada  no  centro  da  povoação  á  beira  do  pequeno  rio  que  atra- 
vessa a  villa  descendo  do  alto  da  serra  de  Cintra. 

Cascaes,  que  além  da  via  fluvial  se  aclia  ligada  a  Lisboa  por 
uma  boa  estrada,  tem  tido  nos  últimos  annos  um  grande  desenvol- 
vimento. A  renda  das  casas,  que  se  alugam  com  mobília  e  louça 
durante  os  mezes  da  temporada  de  banhos,  comquanto  não  seja 
absolutamente  elevada,  é  ainda  pouco  menos  do  que  o  preço  por- 
que as  mesmas  casas  se  venderiam,  se  alguém  as  comprasse,  ha 
15  annos. 

Entre  as  novas  edificações  figuram  os  chalets  do  snr.  Torresão, 
as  grandes  casas  dos  snrs.  conde  de  Valle  de  Reis,  viscondes  da 
Gandarinlia  e  da  snr.^  duqueza  de  Palmella. 

Esta  ultima,  perfeitamente  construída,  tem  o  typo  das  moder- 
nas habitações  inglezas,  elegantes,  mas  tristes,  sempre  que  as  não 
rodeia  a  verdura  espessa  dos  grandes  arvoredos.  Á  casa  está  ap- 
penso  um  parque  e  um  jardim  inglez,  os  quaes  só  d'aqui  a  alguns 
annos  poderão  entrar  no  exercício  das  funcções  a  que  se  acham  des- 
tinados. 

A  casa  da  snr.^  viscondessa  da  Gandarinha  tem  a  particulari- 
dade de  estar  edificada  nos  terrenos  em  que  antes  do  terremoto 
existia  o  antigo  paço  do  senhor  de  Cascaes,  primitivamente  occu- 
pado  no  tempo  de  D.  Fernando  por  D.  Álvaro  de  Castro,  irmão  da 
linda  Ignez,  e  depois  por  João  das  Regras,  a  quem  o  senhorio  de 
Cascaes  foi  doado  por  D.  João  i. 

Desde  o  meado  de  setembro  até  o  fim  da  estação,  Cascaes  tor- 
na-se  o  centro  mais  completo,  o  mais  fino  extracto  da  vida  elegan- 
te em  Portugal. 

As  senhoras  aristocratas  começam  então  a  reunir-se  no  salão 
do  club,  onde  se  talham  e  se  cosem  os  fatinhos  para  as  creanças 
pobres,  que  sua  magestade  a  rainha  distribuo  por  sua  própria  mão 
aos  agraciados. 

Ha  as  soirées  na  cidadella  presididas  por  el-rei,  as  partidas  de 
pesca,  os  prasos  dados  para  as  reuniões  da  tarde  no  parque  da  se- 
nhora duqueza. 

E'  a  plena  vida  de  curte  na  sua  expressão  mais  genuína.  De 
dez  senhoras  que  passam,  com  as  suas  toilettes  de  campo,  vestidos 
de  mousseline  semeados  de  flores  silvestres,  chapéus  de  palha,  o 
grande  leque  —  coup  de  vent  —  suspenso  do  cinto  por  um  gancho 

« 


82  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

—  oito  são  titulares.  Representam  os  mais  bellos  nomes  da  tradi- 
ção monarchica.  Teem  os  Gnos  pés  pequenos,  o  vestuário  simples 
e  modesto,  a  voz  clara  e  bem  timbrada,  as  altitudes  de  cabeça  al- 
tas e  senhoris,  os  gestos  resolutos  das  famílias  privilegiadas.  As 
senhoras  da  burguezia  destoam  n'esse  meio  e  não  fazem  bem  em 
sujeitar-se  ao  contraste  d'esse  confronto,  a  não  ser  que  não  tenham 
levado  as  suas  jóias,  que  não  ponham  senão  os  seus  vestidos  ve- 
lhos, que  usem  o  mais  simples  dos  penteados  e  que  sejam  funda- 
mentalmente despretenciosas  e  boas,  —  no  qual  caso  todas  as  mu- 
lheres, qualquer  que  seja  o  seu  nascimento  e  a  sua  cathegoria,  são 
egualmente  elegantes  e  distinctas. 

Os  homens  novos  que  quizerem  fazer  o  que  se  chama  a  en- 
trada no  mundo,  a  investidura  social,  devera  procurar  esta  praia 
para  abrir  a  brecha,  para  penetrar  na  praça. 

Aconselhar-lhes-hemos  n'esse  caso  que  não  imitem  os  homens 
que  acompanham  essas  senhoras  e  são  os  seus  pares. 

Não,  leitor  inexperiente  e  amigo !  Se  quizeres  ser  recebido 
n'esta  sociedade  especial,  a  alta  sociedade  portugueza  —  em  que  se 
pegam  os  touros,  em  que  se  toca  a  guitarra,  em  que  se  dança  o 
fado  —  não  toques  o  fado,  não  pegues  os  touros,  não  bebas,  não  fu- 
mes, não  deites  para  traz  o  chapéu  dando-lhe  um  piparote  na  aba. 
Tudo  isso  fazem  os  fidalgos,  mas  tu,  burguez,  nunca  parecerás  um 
fidalgo  se  o  fizeres.  Parecerás  apenas  um  moço  de  cavallarice  e 
nenhuma  d'essas  senhoras  consentirá  jamais  em  que  lhe  apertes  a 
mão.  Não  tenhas  também  muito  espirito,  nem  maneiras  muito  ac- 
centuadas,  nem  opiniões  muito  expressivas. 

Sê  o  mais  que  possas  fácil,  complacente,  obscuro,  nullo.  Vae 
á  missa,  lê  o  teu  ripanso,  está  de  joelhos  na  igreja,  confessa-te  uma 
ou  duas  vezes,  veste-te  como  um  padre  ou  como  um  saloio,  dà-te 
um  ligeiro  ar  idiota,  inoffensivo,  pascacio.  Terás  um  successo  in- 
fallivel.  As  senhoras  receber-te-hão  com  agrado,  como  um  auxiliar 
que  não  compromette,  como  um  passivo,  como  um  neutro.  Apre- 
sentar-te-hão,  rindo,  ás  suas  amigas.  Pedir-te-hão  os  pequenos  ser- 
viços suaves  que  se  encarregam  aos  procuradores  e  aos  capellães: 
que  chegues  uma  cadeira,  que  vás  buscar  as  luvas,  o  lenço  ou  o 
chapéu  de  sol  que  esqueceu,  que  acompanhes  esta,  que  vás  cha- 
mar aquella,  que  deites  ao  correio  uma  carta  para  aquelfoutra, 
etc. ;  terás  uma  incumbência  de  responsabilidade  nos  pic-nics,  nos 
passeios  em  burro,  nas  soirées  de  subscripção;  serás  o  ponto  ou  o 
contra-regra,  o  comparsa  ou  o  creado  que  traz  a  carta  nas  repre- 
sentações de  salão.  Converter-te-has  finalmente  n'um  personagem 
que  será  lembrado,  requerido,  utilisado. 


AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL  83 

No  anno  seguinte  áquelle  em  que  por  estes  meios  te  houveres 
introduzido  na  sociedade,  poderás  então  tocar  guitarra,  enrolar  nos 
dedos,  em  pleno  club,  deante  das  senhoras,  um  pestilento  cigarro 
de  papel,  arrojar  o  chapéu  da  testa  para  a  nuca  com  o  piparote  fa- 
dista, e  fallar  o  calão  —  porque  terás  tomado  posse,  e  principiarás 
a  exercer  o  teu  logar  de  janota  nacional,  encartado  e  inamovível. 


Além  da  via  fluvial  que  seguimos  de  Lisboa  a  Cascaes  e  da 
respectiva  estrada  marginal  do  Tejo,  Cascaes  tem  ainda  a  estrada 
de  Cintra,  de  cuja  povoação  a  separa  um  passeio  de  três  quartos 
d'hora  em  carroagem. 

A  proximidade  de  Cintra  é  o  mais  superior  dos  merecimentos 
que  tem  Cascaes,  porque  —  apesar  da  moda  que  ultimamente  a  es- 
queceu e  qae  ha  poucos  annos  fazia  de  Cintra  a  belleza  official,  a 
paizagem  dos  compêndios  de  rhetorica,  o  logar  selecto  pela  anti- 
pathica  unanimidade  dos  suffragios  —  Cintra  é,  ainda  assim,  pela  na- 
tureza dos  seus  terrenos,  pela  abundância  das  suas  aguas,  pelas 
suas  vegetações,  pelas  suas  colhnas,  pela  sua  serra,  pelos  seus  ne- 
voeiros, pelas  suas  quintas,  uma  das  mais  bellas,  das  mais  suaves, 
das  mais  tranquillas  regiões  que  oíTerece  o  paiz.  A  vida  de  verão 
tal  como  ali  a  passam  a  maior  parte  das  famílias  que  habitam  Cin- 
tra na  estação  calmosa  não  contribuo  de  certo  pela  maneira  mais 
poderosa  para  pôr  em  relevo  os  attractivos  do  sitio.  Nos  bellos  dias, 
porém,  da  primavera  e  do  outomno,  claros,  nitidos,  quando  uma 
leve  neblina  cor  de  pérola  corua  os  píncaros  graníticos  da  monta- 
nha, quando  no  caminho  deserto  dos  Pisões  se  calcam  as  folhas  sec- 
cas  despegadas  das  arvores,  ou  se  vcem  sobre  os  grandes  tabolei- 
ros  de  relva  da  quinta  de  Monserrate  as  primeiras  flores  desabro- 
chadas dos  hlazes;  quando  a  grande  serenidade  silenciosa  e  ineíTa- 
vel  da  natureza  é  apenas  cortada  pelo  marulho  da  agua  na  fonte 
da  Sabuga  ou  pelo  ranger  da  aréa  sob  as  rodas  de  uma  caleche  na 
descida  de  Coitares ;  então,  percorrer  Cintra,  passar  ahi  um  ou  dois 
dias,  como  naturalista  herborisando,  como  paizagista  com  a  caixa 
das  aquarellas,  ou  como  simples  philosopho  em  ferias ;  ter  um  quar- 
to em  Laivrence's  Hotel,  celebre  pela  especialidade  do  bom  leite  e 
da  manteiga  fresca,  tomar  banho  no  grande  douche,  remar  na  vár- 
zea, ir  em  burrinho  á  Pena  ou  á  Pedra  d'Alvidrar,  é  ainda  uma  das 
poucas  coisas  boas,  úteis,  hygienicas,  moralisadoras,  que  um  lisboe- 
ta pôde  permittir-se  o  luxo  de  gosar  pelo  preço  de  uma  das  suas 
libras. 


I 


VILLA  DO  CONDE 


É  talvez  a  menos  frequentada  pelos  banhistas,  o  que  não  obs- 
jta  a  que  seja  uma  das  mais  pittorescas  e  mais  bellas  povoações 
marítimas  de  Portugal. 

A  uma  hora  do  Porto  pelo  caminho  de  ferro  da  Povoa,  cuja  li- 
nha é  cortada  por  entre  espessos  pinheiraes,  Villa  do  Conde  des- 
cobre-se  repentinamente,  n'uma  volta  de  estrada,  no  meio  de  uma 
vasta  paizagem,  ampla,  descoberta,  de  larga  respiração. 

Ao  penetrar  na  ponte  que  une  duas  collinas,  ao  nascente  da 
villa,  o  viajante  vé  diante  de  si,  ao  longe,  as  montanhas  de  Rattes, 
aos  seus  pés  ondula  o  rio  Ave  por  entre  viçosas  margens  cobertas 
pela  verdura  suave  dos  pinhaes.  Ao  meio  do  rio,  entre  a  ponte  de 
ferro  e  a  villa,  um  açude.  Em  cada  uma  das  margens,  um  velho 
moinho,  musgoso,  move  lentamente  a  sua  grande  roda  denegrida 
e  gotejante.  Assente  sobre  rocha,  na  margem  esquerda  do  rio,  so- 
branceiro á  villa,  o  convento,  grande  edifício  da  Renascença  fran- 
ceza,  tem  um  artístico  aspecto,  dominativo,  senhorial,  ostentando 
ao  largo  sol,  sobre  a  cimalha,  junto  de  uma  monja  com  o  habito 
de  Santa  Clara,  o  grande  elephante  branco,  symbolo  da  castidade, 
que  constituo  o  brazão  do  convento. 

D.  AíTonso  Sanches,  filho  bastardo  do  rei  D.  Diniz,  e  sua  mulher 
D.  Thereza  Martins  de  Menezes,  filha  do  primeiro  conde  de  Barcel- 
los,  foram  os  fundadores  do  convento,  onde  estão  sepultados,  e  que 
doaram  ás  freiras  franciscanas. 

O  mosteiro  de  Villa  do  Conde  era  rico  e  fidalgo.  Habitavam-o 
120  freiras,  a  maior  parte  d'ellas  de  famílias  nobres.  Possuíam 
a  povoação  de  Azurara  que  fica  na  margem  sul  do  rio,  dízimos  e 
outros  direitos  senhoriaes.  Eram  donatárias  de  Villa  do  Conde,  de 
outras  villas  de  Entre  Douro  e  Minho,  e  de  Alcoentre  no  Riba  Tejo. 


86  AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL 

A  abbadessa  sentenceava  as  apellações  das  sentenças  do  juiz.  Ti- 
nham finalmente  direitos  soberanos. 

D.  João  III  tirou-lhes  o  senhorio  e  jurisdição,  e  instituiu  por 
donatário  o  infante  D.  Duarte.  Azurara,  com  a  sua  bella  igreja  ma- 
noelina,  passou  a  pertencer  a  si  mesma.  Os  dizimos  foram  extin- . 
ctos.  De  sorte  que  as  freiras  empobreceram.  As  poucas  senhoras 
que  actuaLmente  assistem  no  mosteiro  fabricam  doce  e  vendem  a 
especial  gulodice  da  ordem  —  os  pasteis  de  Santa  Clara. 

A  igreja  matriz  é  do  tempo  de  D.  Manoel  e  no  stylo  manuel- 
lino  como  a  de  Azurara. 

A  ermida  de  Nossa  Senhora  do  Soccorro,  que  se  avista  da  pon- 
te e  fica  entre  ella  e  a  barra,  á  beira  do  rio,  é  redonda,  tem  a 
forma  de  uma  mesquita  ottomana,  a  que  só  falta  o  complemento  de 
uma  palmeira  e  o  appenso  de  um  camello  ou  de  um  cavallo  árabe. 

Além  de  algumas  famílias  muito  distinctas  e  especialmente 
hospitaleiras  e  amáveis,  a  população  de  Villa  do  Conde  é  compos- 
ta principalmente  de  pescadores  e  de  rendilheiras. 

Todo  o  trabalho  gera  uma  virtude  que  lhe  corresponde.  Do 
fabrico  da  renda,  delicadamente  construída  por  meio  de  uma  infi- 
nidade complicadíssima  de  bilros,  com  linha  branca  finíssima,  re- 
sultam os  hábitos  de  ordem,  de  aceio,  de  reflexão,  de  espirito  de 
systema. 

Não  é  possível  fazer  renda  e  ter  uma  casa  em  desordem; 
não  é  possível  fazer  renda  e  ter  as  mãos  sujas  ou  deitar  nódoas 
no  fato;  não  é  possível  fazer  renda  e  murmurar  ao  mesmo  tempo 
da  vida  alheia  ou  altercar  com  as  visinhas,  como  succede  a  quem 
doba,  a  quem  fia,  a  quem  faz  meia,  a  quem  se  occupa  de  traba- 
lhos de  machina  puramente  automáticos. 

O  fabrico  da  renda  é  profundamente  raoralisador.  D'elle  pro- 
cede o  caracter  e  o  ar  senhoril  das  mulheres  de  Yilla  do  Conde  e 
de  algumas  que  particularmente  me  impressionaram  em  Peniche 
pela  distincção  das  suas  maneiras,  pela  gravidade  das  suas  physio- 
nomias,  pela  delicadeza  das  suas  estaturas,  pela  elegância  aristo- 
crática das  suas  mãos. 

As  rendas  de  Villa  do  Conde,  como  as  de  Peniche,  são  do  gé- 
nero chamado  Honiton,  similhante  á  guipure  de  Chantilly.  Magoa, 
ao  considerar  os  trabalhos  d'estas  sympathicas  mulheres,  ver  tan- 
ta perfeição  de  acabamento,  tão  completa  posse  do  processo,  alha- 
da a  tão  profunda  ignorância  artistica ! 

Nem  em  Villa  do  Conde  nem  em  Peniche  encontramos  uma  só 
operaria  que  soubesse  desenhar.  A  creação  de  uma  escola  de  de- 
senho publica  e  gratuita  é  tão  necessária  em  qualquer  d'estas  lo- 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  87 

calidades  como  a  escola  das  primeiras  lettras,  A  essas  mulheres, 
que  tão  íiel  e  escrupulosamente  executam  os  riscos,  seria  facílimo 
ensinar  a  manejar  o  lápis. 

Se  em  cada  uma  das  escolas  de  desenho  a  que  nos  referimos 
existisse  uma  coUecção  de  bons  modelos  d'ornato  feitos  pelos  ar- 
tistas de  mais  talento  e  os  jornaes  especiaes  da  moda  franceza  com 
todos  os  novos  modelos,  talvez  d'essas  modestas  operarias  sahis- 
sem  algumas  artistas  cuja  aptidão  contribuiria  muito  para  dar  á  in- 
dustria das  rendas  portuguezas  a  grande  importância  económica  de 
que  ella  é  susceptível. 

O  campo  que  cerca  Villa  do  Conde,  atravessado  pela  arcaria 
do  extenso  aqueducto  do  convento,  o  qual  lhe  imprime  um  grandio- 
so ar  italiano,  é  ameno,  posto  que  um  pouco  triste.  As  margens  do 
rio  perto  da  graciosa  aldeia  da  Retorta  são  extremamente  pitto- 
rescas. 

O  único  defeito  de  Villa  do  Conde,  como  estação  de  banhos,  é 
a  distancia  que  medeia  entre  a  praia  e  as  casas  da  villa,  unidas 
todavia  por  uma  boa  estrada,  em  que  uma  companhia  edificadora 
estava  o  anno  passado  construindo  novas  casas. 

Ha  feira  semanal  e  feira  grande  a  que  concorre  muito  povo 
dos  subúrbios. 

A  villa  tem  dois  hotéis.  Estivemos  no  maior,  situado  na  praça, 
em  frente  da  antiga  ponte.  O  aceio  não  é  a  virtude  especial  que 
recommenda  esta  casa  ao  respeito  dos  viajantes.  O  proprietário  dis- 
trae  a  attenção  dos  forasteiros  da  infecção  de  capoeira  que  cara- 
cterisa  os  salões,  servindo-lhes  magnifico  vinho  verde,  admiráveis 
presuntos  de  Melgaço,  de  primeira  ordem,  e  os  melhores  pasteis  do 
convento. 


^'1 


ESPINHO 


É  de  todas  as  praias  a  mais  estimada  por  aquelles  que  a  fre- 
quentam. Os  banhistas  de  Espinho  tomam-se  todos  por  este  sitio  de 
uma  espécie  de  exaltação  patriótica,  exclusiva  e  intransigente.  Não 
admittem  o  parallelo  da  sua  praia  com  qualquer  outra,  e  conside- 
ram os  que  tomam  banho  n'outras  regiões  do  globo  como  adversá- 
rios, quasi  como  inimigos.  Por  mais  de  uma  vez  encontrei  no  ca- 
minho de  ferro  do  Porto,  dentro  do  mesmo  compartimento,  uma  fa- 
mília de  Espinho  e  uma  familia  da  Granja,  e  fiz  então  uma  ideia  do 
aspecto  que  deviam  ter,  postas  cara  a  cara,  a  familia  Cappuletti  e 
a  familia  Montecchi.  Os  homens  não  se  encaram.  As  senhoras  não  se 
examinara  senão  com  um  olhar  obliquo  e  debaixo  para  cima,  des- 
de o  bico  do  pé  até  o  contorno  do  hombro.  As  próprias  creanças 
de  Espinho  voltam  as  costas  às  creanças  da  Granja  e,  se  estas  lhes 
faliam,  mettem  o  dedo  no  nariz,  que  é  o  gesto  mais  expressivo 
com  que  as  creanças  sorumbáticas,  costumam  expressar  a  sua  per- 
tinácia na  incommunicabilidade  e  no  silencio. 


A  povoação  de  Espinho  divide-se  em  dois  bairros  diíferentes, 
separados  pelo  largo  do  mercado.  Para  o  nascente,  até  á  estação 
do  caminho  de  ferro,  fica  o  bairro  novo  e  caro;  para  o  poente,  até 
a  praia,  acha-se  o  antigo  bairro  pobre. 

Pequena  povoação  de  pescadores  do  concelho  da  Feira,  no  dis- 
tricto  de  Aveiro,  Espinho  deve  ao  caminho  de  ferro  o  seu  aspecto 
actual. 

As  antigas  barracas  de  madeira  dos  primitivos  habitantes  acham- 
se  mascaradas  para  o  lado  da  estrada  pelas  edificações  modernas 


90  AS   PRAIAS  DE   PORTUGAL 

que  se  alinham  com  uma  certa  grandeosidade  burgueza,  nas  duas 
principaes  ruas  novas,  a  da  Assembleia  e  a  do  Bandeira  de  Mello. 

No  velho  bairro,  as  ruas  estreitas  e  tortuosas,  os  antigos  ca- 
sebres esbeiçados  que  pendem  era  ruinas  esfarpadas,  as  saliências 
das  varandas  de  pau,  empenadas  e  barrigudas,  a  fogueira  de  pinho 
que  está  dentro  ardendo  no  lar,  as  creanpas  semi-núas  que  sabem 
á  rua,  as  mantas  ou  as  redes  de  pesca,  penduradas  das  janellas  ou 
estendidas  a  enxugar  em  duas  varas,  teem  um  cunho  muito  cara- 
cterístico, de  ura  pittoresco  oriental. 

Era  poucas  praias  é  tão  aniraada  corao  era  Espinho  a  vida  de 
club,  expressão  que  n'este  caso  não  tera  o  sentido  inglez  segundo 
o  qual  o  club,  creação  democrática  do  fim  do  século  passado,  era 
uma  reunião  exclusivamente  de  homens.  Em  Espinho  o  chib  é  o 
ponto  de  reunião  de  todos  os  banhistas  de  ambos  os  sexos. 

Pela  manhã,  desde  o  meio  dia  até  às  três  horas  reaUsa-se  a 
priraeira  reunião.  Leem-se  os  jornaes,  conversa-se,  faz-se  musica. 

Muitas  vezes  succede  que  uma  joven  tocadora,  viuva  saudosa 
do  seu  piano  de  estudo,  se  apodera  do  instrumento  do  club  para 
repassar  os  seus  exercícios.  Se  este  abuso  continuar  é  de  crer  que 
o  numero  dos  banhistas  diminua,  porque  todos  os  inconvenientes 
da  vida  de  Espinho,  —  a  pobreza  indígena,  o  amanho  da  sardinha, 
a  aridez  do  solo  —  são  menos  pungentes  que  as  estudiosas  pianis- 
tas que  vão  ás  manhãs  exercer  sobre  o  piano  do  club  a  sua  apren- 
dizagem feroz ! 

Debaixo  das  mãos  presistentes  e  accintosas  de  uma  celebrida- 
de que  desponta,  o  piano  converte-se  n'um  raonstro. 

O  tigre  ruge,  o  lobo  uiva,  o  raocho  pia,  a  serpente  assobia,  a 
rã  coacha,  o  juraento  zurra, — o  piano  serra! 

Ha  uma  calamidade  social  representada  por  ura  sujeito  ignóbil 
charaado  o  troca-tintas.  Ha  outra  calamidade  peor  representada  nas 
salas  pelo  troca-teclas. 

A  antiga  inquisição  era  o  boi  de  que  o  troca-teclas  é  o  extra- 
cto de  carne. 

Ao  contacto  dos  dedos  protervos  da  fera,  a  mais  innocente  pol- 
ka,  a  mais  inoífensiva  phantasia,  toma  o  caracter  sinistro  do  bem 
conhecido  supplicio  da  gota  d'agua,  e  começa  a  pingar  em  semi- 
colcheas  compassadas  no  cérebro  da  victima,  como  um  filtro  peço- 
nhento. 

O  troca-teclas  insinua-se  pela  mansidão  e  pela  modéstia,  como 
ura  fio  de  azeite  destinado  a  converter-se  n'um  fio  d'alfange.  O  tro- 
ca-teclas começa  por  declarar  com  os  olhos  baixos  que  pouco  ou 
nada  sabe.  Com  a  mesma  astúcia  porém  com  que  a  aranha  tem  a 


AS  PRAIAS   DE    PORTUGAL  91 

sua  teia,  o  troca-teclas  tem  a  sua  família,  e  é  do  seio  d'ella  que 
perante  a  modesta  aílirmação  do  troca-teclas  sae  uma  voz  que  re- 
plica : 

—  Não  é  tanto  assim. . .  A  menina  o  mais  que  tem  é  acanha- 
mento pela  falta  d'uso  de  tocar  diante  de  gente,  mas  estes  senho- 
res desculpam. . .  Toque  lá  aquelle  bocadinho  dos  Dois  Foscaris. . . 

A  menina  então  adianta-se  para  o  instrumento  do  crime,  me- 
neando a  cabeça  com  movimentos  de  cysne  que  voga  na  direcção 
do  comedoiro.  Offerece-lhe  o  braço  um  cavalheiro  que  a  anima  cora 
palavras  tónicas  e  lhe  desenrosca  a  coragem  e  o  pé  do  banco  até 
á  altura  conveniente. 

Ella  descalça  as  luvas,  que  coUoca  ao  lado  da  estante.  A  as- 
sembleia silenciosa  escuta.  Ella  principia.  Mas,  como  se  enganou, 
torna  a  principiar,  e  engana-se  outra  vez,  com  a  única  diíTerença 
de  que  se  engana  melhor,  —  com  mais  fogo !  Principia  pela  tercei- 
ra vez  e  consegue  finalmente  enganar-se  com  uma  perfeita  maes- 
tria e  bravura.  Depois  do  que,  prosegue  satisfeita  e  victoriosa, 
atropelando  as  notas  com  uma  justiça  de  moiro,  fazendo  pagar  as 
teclas  justas  pelas  teclas  peccadoras,  e  acabando  finalmente  por 
provar  que  confundiu  os  Dois  Foscaris,  de  Verdi,  com  os  Dois  re- 
negados, do  snr.  Mendes  Leal. 

E  assim  nasce  a  opinião  geral  de  que  são  quatro  as  prendas 
de  uma  menina:  bordar  cães  e  araras  de  veludo  com  olhos  de  con- 
tas, fazer  flores  de  papel  e  compota  de  pecegos,  marcar  lenços  com 
anagrammas  phantasistas,  e  —  não  tocar  piano. 

Além  do  alfobre  das  pianistas.  Espinho  costuma  ter  um  viveiro 
de  poetas,  bons  rapazes,  amantes  da  lua  e  da  arte  poética,  os  quaes 
não  podendo  escrever  os  Lvsiadas  por  os  acharem  já  escriptos,  en- 
treteem  a  musa  desoccupada  com  o  banho  de  mar,  com  a  recita- 
ção ao  piano  e  com  algumas  chávenas  de  chá  preto  com  leite,  acom- 
panhadas das  competentes  torradas. 


A  sociedade  que  concorre  a  Espinho  é  extremamente  numero- 
sa e  variegada.  Cem  senhoras  chegam  a  frequentar  o  club.  Com- 
prehende-se  que  estas  senhoras  não  são  todas  princezas.  lia  mes- 
mo algumas  que  são  apenas  as  honestas  esposas  de  algum  merca- 
dor de  Penafiel  ou  de  algum  cambista  do  Porto,  ao  passo  que  ou- 
tras são  mais  ou  menos  garantidamente  pessoas  nobres  e  titulares. 
E  todas  ellas  se  reúnem  ao  mesmo  tempo,  debaixo  do  mesmo  te- 
cto, sobre  o  mesmo  pavimento,  ao  som  dos  mesmos  Lanceiros. 


92  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

As  cathegorias  porém  reunem-se  mas  não  se  baralham,  a  não 
ser,  provisoriamente,  nas  figuras  das  quadrilhas.  Acabada  a  contra- 
dança os  grupos  delimitam  as  suas  fronteiras,  descentralisam-se,  e 
cada  circulo  fica  tendo  a  sua  existência  própria,  independente  e  au- 
tonomia. 

Nos  passeios  á  ponte  da  Canha  e  á  estrada  da  Granja,  nas  di- 
gressões a  Ovar,  á  Graciosa,  á  Borralha,  á  ria  de  Aveiro,  os  diflfe- 
rentes  círculos  concêntricos  do  club,  desgregam-se,  passeiam,  con- 
versam e  divertem-se  em  separado. 

Cada  uma  d'essas  tribus  tem  a  sua  organisação  especial,  com 
os  seus  competentes  personagens  em  rivalidade  com  os  das  tribus 
adjacentes  e  limitrophes.  Em  cada  tribu  ha  uma  pequena  socieda- 
de completa,  uma  roda,  com  o  respectivo  poeta,  o  pianista,  o  tro- 
ca-teclas,  os  parceiros  do  voltarete,  os  pares  dançantes,  a  menina 
bonita,  a  senhora  espirituosa  e  o  competente  homem  celebre.  Quan- 
do cada  um  dos  grupos  assim  divididos  toma  banho,  vai  ao  club, 
passeia,  viaja,  faz  pic-nics  ou  se  recolhe  a  sua  casa,  leva  comsigo 
todo  o  seu  pessoal.  De  sorte  que  as  impressões  de  cada  individuo 
variam  segundo  a  roda  a  que  elle  pertence  e  a  tribu  de  que  faz 
parte. 


As  casas  de  Espinho  alugam-se  mobiladas  e  com  louça  ou  sem 
louça  e  teem,  segundo  as  comraodidades  que  offerecem  uma  larga 
tarifa  de  preços,  desde  200  reis  até  4j$(500  por  dia.  Entre  os  prin- 
cipaes  prédios  novos  figuram  o  do  snr.  Fulgencio  Pereira, — meta- 
de do  qual  se  alugou  o  anno  passado  por  5^000  reis  por  dia  e  a 
outra  metade  por  800)5íOOO  reis  por  anno  —  os  dos  snrs.  Cardoso 
Valente,  conde  da  Graciosa  e  Pintos  Bastos. 

Ha  três  hotéis :  o  Hotel  Particular,  o  Bragança  e  a  Nova  Es- 
trella,  a  Is^íOOO  reis  por  dia,  e  jantar  de  meza  redonda  a  500  reis 
por  cabeça.  D'estes  boteis  o  mais  tranquillo  é  o  Hotel  Particular, 
da  snr.*  Maria  da  Gloria  Villas-Boas. 


A  ERICEIRA 


Fica  a  sete  léguas  de  Lisboa  e  tem  cerca  de  700  fogos. 

Se  exceptuarmos  Olhão,  no  Algarve,  é  esta  a  terra  mais  acea- 
da  de  Portugal. 

As  ruas  estão  escrupulosamente  varridas  como  as  de  um  jar- 
dim. As  mais  pequenas  casas  teem  as  vidraças  nitidamente  lava- 
das e  as  paredes  exteriores  caiadas  de  branco. 

Quasi  ao  meio  da  villa,  sobranceira  ao  mar,  fica  n'um  alto  a 
capella  de  Santo  António,  circumdada  de  bancos,  ponto  de  reunião 
dos  banhistas  á  hora  do  pôr  do  sol  e  á  do  despontar  da  lua. 

Para  o  norte  da  capella  ha  uma  praia  de  banho,  para  o  sul 
ha  outra.  A  cada  uma  d'estas  praias  corresponde  um  bairro.  A 
praia  do  sul,  perfeitamente  abrigada  por  uma  cortina  de  rocha  que 
a  rodeia  como  um  biombo,  é  a  mais  agradável,  e  o  seu  respectivo 
bairro  o  mais  importante.  Para  o  lado  do  norte  ficam  as  peque- 
nas casas  quasi  todas  de  um  só  pavimento,  abarracadas. 

A  vida  é  extremamente  comraoda  na  Ericeira.  As  casas  alugam- 
se  com  mobilia,  e  póde-se  ter  egualmente  de  aluguer  a  louça  e  a 
roupa  de  camas.  Uma  familia  de  quatro  pessoas  aloja-se  commoda- 
mente  por  seis  libras  por  raez.  O  preço  do  hotel  é  de  800  reis  por 
pessoa  com  cosinha  soCfrivel  e  serviço  regular,  fia  um  club  e  um 
pequeno  theatro. 

A  população  indígena,  composta  principalmente  de  marítimos, 
é  pacifica  e  abastada,  d'onde  resulta  que  o  banhista  não  padece  a 
exploração  de  que  é  objecto  nas  terras  em  que  o  habitante  é  in- 
dolente e  pobre. 

Estivemos  na  Ericeira  fora  da  temporada  dos  banhos.  O  aspe- 
cto da  população  só  differia  do  que  é  em  agosto  ou  setembro  pelo 
numero  das  pessoas.  De  resto,   o  mesmo  aceio,  as  mesmas  lo- 


94  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

jas  abertas;  ao  fim  da  tarde  algumas  famílias  passeavam  na  pra- 
ça do  Jogo  da  Bola.  A'  noite  accenderam-se  luzes  em  quasi  to- 
das as  casas.  Nos  pavimentos  do  rez  do  chão  via-se,  atravez  dos 
vidros,  os  cortinados  das  janellas,  a  gaiola  envernisada  ao  centro 
das  duas  cortinas;  um  candieiro  de  sala,  de  globo  fosco  ou  de 
abat-jour,  sobre  a  mesa  do  centro  confortavelmente  coberta  com 
um  tapete ;  o  cabide,  o  espelho,  o  vaso  com  flores,  todos  os  peque- 
nos característicos  da  vida  serena,  bem  administrada,  com  um  or- 
çamento regular,  com  hábitos  adquiridos,  com  costumes  de  famí- 
lia. Devemos  especificar  que  em  duas  casas  chegamos  a  avistar  al- 
guns livros :  caso  extraordinário  e  raríssimo  em  Portugal,  onde  nas 
pequenas  casas  da  província  o  livro  é  um  objecto  de  luxo  que  nin- 
guém se  permitte,  e  o  habito  tão  moralisador  da  leitura  aos  serões, 
curiosidade  que  ninguém  tem,  dignidade  que  ninguém  professa. 

A  existência  d'esta  inclinação  artística  que  nos  surprehendeu 
na  Ericeira  procede  talvez  da  educação  que  os  marítimos  adquirem 
nas  viagens,  reunida  á  natureza  especial  do  solo  que  pela  sua  ari- 
dez em  torno  da  villa  obriga  o  habitante  a  recolher-se  e  a  procu- 
rar no  interior  da  sua  casa  as  distracções  que  o  campo  e  a  paiza- 
gem  lhe  não  facultam. 


O  único  passeio  da  Ericeira  é  Mafra  que  fica  a  distancia  d'uma 
hora  ao  trote  de  uma  carroagem  ou  das  diligencias  que  durante  a 
estação  dos  banhos  fazem  esta  carreira  pelo  preço  de  300  reis. 

Mafra  é  dignissima  de  ver-se,  de  visitar-se  por  mais  de  uma 
vez,  pela  importante  hção  de  historia  que  ella  ministra. 

A  villa  é  pequena  e  pobre.  O  celebre  edificio  de  D.  João  v  os- 
tenta a  sua  enorme  corpolencia  quadrada  e  macissa  no  meio  de  uma 
vasta  nudez  fria  e  abatida.  Não  é  propriamente  um  monumento  archi- 
tectonico;  é  apenas  um  prédio,  mas  um  prédio  immenso,  incrível, 
phantastico,  pharaonico.  Occupa  uma  área  de  40:000  metros  qua- 
drados. Tem  quatro  mil  e  quinhentas  portas  e  janellas,  oitocentas  e 
oitenta  salas,  duas  torres  de  68  metros  de  altura,  um  zimbório, 
dois  torreões  tão  vastos  que  n'um  só  andar  de  qualquer  d'elies  se 
aloja  toda  a  família  real  quando  vae  caçar  a  Mafra.  Levou  treze  an- 
nos  a  fazer.  A  media  dos  operários  empregados  em  cada  dia  na 
construcção  da  obra  monta  a  vinte  mil.  Para  cortar  a  montanha 
que  fica  ao  sul  do  edificio  davam-se  quotidianamente  mil  tiros,  e 
consumiam-se  400  kílogrammas  de  pólvora.  Além  de  vinte  mil  ope- 
rários havia  em  Mafra  para  manter  a  policia  uma  força  militar  de 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  95 


sete  mil  homens  de  cavallaria  e  infanteria.  Nas  conducções  empre- 
gavam-se  1:270  bois  fora  os  que  os  lavradores  circumvisinhos 
eram  obrigados  a  ceder  em  dois  dias  da  semana.  Uma  só  pedra, 
de  que  se  fez  a  varanda  da  sala  principal,  levou  seis  dias  a  chegar 
de  Pêro  Pinlieiro  e  foi  puxada  por  200  bois.  Morreram  durante  a 
obra  1:338  operários.  O  numero  total  dos  sinos  é  de  114.  Os  dois 
carrilhões  custaram  na  Itaha  800  contos  de  reis.  O  castiçal  em  que  se 
mette  o  cirio  pascal,  e  que  está  na  sachristia  pesa  235  kilogrammas. 
O  apagador  respectivo  pôde  apagar  um  homem,  e  apagou  um  século. 
Os  paramentos  ainda  hoje  existentes  e  bordados  a  matiz  sobre  as  mais 
bellas  sedas  da  índia  ou  das  melhores  fabricas  da  Europa,  são  de  tal 
modo  sumptuosos  que  D.  João  v  dizia  haverem-lhe  custado  mais 
caro  do  que  todo  o  ediíicio !  A  tapada  contigua  ao  palácio  occupa 
um  circuito  de  3  léguas.  As  cosinhas  compoem-se  de  sete  grandes 
casas,  a  das  hortaliças  e  do  peixe,  a  da  pastelaria,  etc.  Na  cosi- 
Dha  grande,  forrada  de  azulejos,  cercada  de  torneiras  de  bronze, 
ha  duas  enormes  chaminés  com  os  dois  apparelhos  destinados  a 
mover  os  caldeirões,  em  cada  um  dos  quaes  se  podia  coser  um 
boi.  As  festas  da  sagração  duraram  oito  dias.  No  primeiro  dia  as 
solemnidades  religiosas  começaram  ás  8  horas  da  manhã  e  acaba- 
ram ás  5  da  manhã  do  dia  seguinte.  Assistiram  o  rei,  a  rainha, 
o  príncipe,  os  infantes,  a  comitiva  real,  o  patriarcha,  dois  car- 
deaes,  quatro  bispos  com  os  seus  secjuitos,  os  cónegos,  trezentos 
frades,  os  fidalgos,  os  regimentos  de  infanteria  e  cavallaria.  Além 
do  que  toda  esta  gente  comeu,  o  rei  mandou  dar  de  jantar  a  to- 
dos os  romeiros  que  se  apresentassem,  e  apresentaram-se  nove 
mil.  As  cosinhas  do  convento  prepararam  os  jantares  para  toda  es- 
ta multidão. 

Mafra,  em  que  D.  João  v,  Nero  de  sachristia,  Pharaó  freirati- 
co,  consumiu  tantos  milhares  de  centos,  tantos  mihiares  de  braços 
e  tantos  milhares  de  vidas,  representa  a  dupla  catastrophe  de  um 
monumental  triumpho  e  de  uma  monumental  derrota. 

Tudo  quanto  um  triumpho  pôde  ter  de  calamitoso  para  um  po- 
vo deu-a  a  edificação  de  Mafra:  —  a  perturbação  económica,  a  con- 
centração de  todas  as  forças  vivas  de  ura  paiz  sobre  um  único  suc- 
cesso,  a  embriaguez  do  êxito,  o  falso  orgulho,  a  petulância,  o  pe- 
dantismo, todos  os  vicios  das  heroicidades  pervertidas  e  desmora- 
lisadas. 

Tudo  quanto  uma  derrota  nacional  pôde  ter  de  deplorável 
deu-o  egualmente  Mafra:  —  o  enfraquecimento,  aruina,  a  prostração 
dos  temperamentos  e  dos  caracteres,  a  pobreza  geral. 


96  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

Por  outro  lado  a  edificação  de  Mafra  não  produziu  nenliuraa 
das  vantagens  que  os  grandes  triumplios  ou  as  grandes  derrotas 
podem  influir  na  educação  moral  de  ura  povo: — nem  a  afíirmação 
da  sua  força,  nem  a  imposição  da  sua  vontade  triumpliante,  nem 
o  modesto  recolliimento  du  seu  espirito  ensinado  pelo  revez  e  pro- 
curando retemperar-se  no  dever,  na  renovação  moral,  na  reconsti- 
tuição do  seu  ser  pela  condensação  interior  de  todas  as  forças  da 
intelligencia  e  da  vontade. 

Enorme  infortúnio ! 

Ha  apenas  século  e  meio  que  o  ediQcio  de  Mafra  foi  erigido 
era  consagração  de  uraa  ideia  religiosa  e  de  uraa  ideia  monarchi- 
ca.  Que  papel  tem  hoje  esse  colossal  montão  de  mármore,  de  cal- 
careo  e  de  bronze  no  serviço  de  qualquer  d'esses  dois  cultos  a  que 
o  destinaram: — o  culto  catholico  e  o  culto  monarchico?! 

Ha  quarenta  e  oito  horas  que  eu  estive  em  Mafra.  Era  meio 
dia  de  sexta-feira,  antes  de  domingo  de  Ramos  d'este  anno  de  1876. 
No  meio  da  igreja,  por  baixo  do  grande  zimbório,  cinco  padres  de 
sobrepeUiz  cantavam  automaticamente  um  responso  era  volta  de 
um  esquife.  Por  baixo  das  batinas  appareciam  as  grossas  botas  sa- 
loias dos  caminheiros  dos  campos.  As  mãos  que  seguravam  os  li- 
vros do  cantochão  eram  espessas  e  calosas  como  as  dos  cavadores; 
as  physionomias,  crestadas,  duramente  contorcidas  com  as  violên- 
cias vejetativas  dos  sobreiros. 

Quando  estes  cinco  padres  aldeões,  bons  homens  do  campo, 
vigorosos  e  boçaes,  suspendiam  o  cantochão  para  aspergirem  agua 
benta  ou  para  menearem  o  thuribulo,  ouvia-se  no  alto  da  torre 
os  sinos  do  carrilhão  telintarera  o  coro  do  primeiro  acto  da  Tra- 
viata.  Em  quanto  eu  me  dirigia  á  igreja,  dois  inglezes,  que  vira 
no  hotel  a  reforçarem-se  com  dois  alentados  bifes  e  duas  garrafas 
do  adstringente  vinho  de  Torres,  tinham  subido  ao  carrilhão  e  pu- 
nham em  movimento  o  cyhndro. 

E  era  tudo  o  que  sobrevivia  dos  antigos  esplendores  da  igre- 
ja e  da  curte  do  tempo  de  D.  João  v: — cinco  padres  que  tinham 
acudido  das  redondezas  á  espórtula  do  responso  trazendo  a  trouxa 
com  a  loba  e  a  sobrepeUiz  em  uma  mão  e  ura  varapau  na  outra, 
e  o  afamado  carrilhão  divertindo  com  a  mais  profana  e  mundanal 
das  partituras  dois  dilettanti  herejes,  dois  touristes  lutheranos  em 
peccado  mortal  de  um  kilo  de  carne  por  estômago  na  penúltima 
sexta-feira  da  paixão! 

No  Egypto  as  pyramides  são,  pelo  menos,  um  tumulo.  Mafra 
ê  uma  eça  vasia  levantada  á  ausência  de  ura  defuncto  rico  e  so- 


AS   PRAIAS   DE   PORTUGAL  97 


berbo,  para  cuja  memoria  uca  não  ha  uma  lagrima  de  saudade  ou 
de  respeito  na  lembrança  d'aquelles  a  quem  o  morto  não  testou 
senão  a  pobreza,  a  desorganisação  e  a  ignorância. 

O  mosteiro  dos  Jeronymos  e  a  Batalha,  inspiram  um  sentimen- 
to delicado,  commovente,  respeitoso,  porque  são  para  o  povo  a 
manifestação  de  uma  das  mais  bellas  das  suas  faculdades,  o  seu 
sentimento  artístico.  Como  verdadeiras  obras  d'arte,  como  pri- 
morosas eíllorescencias  do  génio  nacional,  esses  monumentos  não 
teem  a  feição  individualista  de  uma  ordem  regia,  são  a  obra  col- 
lectiva  de  um  povo,  prendem-se  profundamente  na  sua  tradição, 
na  historia  do  seu  passado,  nos  elementos  da  sua  vida  intellectual. 
Não  são,  como  Mafra,  o  cumprimento  de  um  voto  feito  aos  santos 
por  um  rei  enfermo  com  interferência  d'alguns  frades  arrabidos ; 
são  a  commemoração  das  grandes  epochas,  dos  gloriosos  feitos,  que 
aílirmaram  a  nacionalidade  e  a  raça,  —  a  independência  do  territó- 
rio e  a  descoberta  da  Índia. 

Não  é  o  lápis  nem  o  cinzel  assalariado  por  um  déspota  papar- 
rotão  o  que  risca  e  lavra  os  feixes  d'essas  airosas  columnas  que 
crescem  para  o  ceu  e  bracejam  como  palmeiras  nos  lavores  ren- 
dilhados das  ogivas  manuelinas;  é  o  espirito  popular — com  todas  as 
tradições,  com  as  impressões  do  caracter  e  do  temperamento,  com 
as  influencias  do  solo,  do  clima,  das  viagens,  dos  contactos  com  o 
mar,  das  recordações  de  paizagens  e  de  vegetações  longínquas,  — 
que  se  reflecte  e  condensa  na  alma  dos  artistas  e  lhes  guia  a  mão 
privilegiada  que  torna  visíveis  e  palpáveis  os  sentimentos  e  os  es- 
tados de  espirito. 

Mandando,  como  D.  João  v,  recrutar  e  prender  por  todo  o  paiz 
os  trabalhadores  e  os  artífices,  que  chegaram  a  constituir  uma  le- 
gião de  50  mil  operários,  pedindo  a  inspiração  a  um  collegio  de  va- 
ratojanos  ou  de  capuchos,  promettendo  aos  santos  da  sua  devoção 
não  as  suas  penitencias  mas  os  sacrifícios  dos  seus  súbditos,  em 
taes  condições,  dizemos,  fazem-se  igrejas,  fazem-se  torres,  fazem-se 
cadeias,  fazem-se  fortalezas,  fazem-se  forcas,  mas  não  se  fazem  mo- 
numentos nacionaes. 

Por  isso  Mafra,  apesar  de  todas  as  receitas  consumidas,  de 
todos  os  esforços  empregados,  de  todos  os  sacrificios  feitos,  é  ape- 
nas um  prédio,  enorme,  soberbo,  magestatico;  mas  simples  prédio. 

Como  prédio  é  magnifico ;  admiravelmente  situado,  descobrin- 
do uma  larga  paizagem;  perfeitamente  penetrado  de  ar,  de  luz  e 
de  sol ;  satisfazendo  cabalmente  todas  as  condições  da  hygiene  com 
relação  aos  grandes  agentes  physicos. 

A  insensatez  de  prodigalidade  com  que  tal  obra  foi  feita  só 

7 


98  AS  PRATAS  DE   PORTUGAL 

poderia  ser  compensada  com  a  insensatez  de  desperdicio  com  que 
ella  se  está  desfazendo.  O  edifício  de  Mafra  acha-se  inteiramente 
abandonado.  O  asphalto,  dos  torreões  despedapa-se  e  a  chuva  pe- 
netra nos  vigamentos.  Nos  magniíicos  pateos  interiores  a  lierva 
cresce  por  entre  a  murta  dos  antigos  arabescos  versalliezes.  A  bi- 
bliotheca,  bella  sala  com  excellente  obra  de  talha  feita  no  tempo 
em  que  o  convento  foi  occupado  pelos  cónegos  regrantes  de  S.  Vi- 
cente, está  inutilisada  com  os  seus  vinte  e  cinco  mil  volumes  de 
obras  clássicas  e  de  erudição.  O  collegio  militar,  que  estava  mui 
propriamente  instalado  n'este  edifício  foi  transferido  para  a  Luz, 
o  asylo  dos  filhos  dos  soldados,  que  ahi  esteve  algum  tempo,  foi 
egualmente  mudado.  A  casa  está  completamente  deserta.  As  três 
léguas  de  magnifico  solo  occupadas  pela  tapada  estão  incultas.  A 
pobre  villa  de  Mafra,  assoberbada  pelo  grande  edificio,  constrangi- 
da entre  o  mar  e  três  léguas  de  terreno  inútil  para  o  qual  ella  não 
pôde  estender  nem  a  sua  propriedade  nem  as  suas  explorações 
agrícolas,  fechada  n'esta  espécie  de  sitio,  decae  e  deperece  de  dia 
para  dia. 

No  emtanto  o  carrilhão  toca  o  repertório  dos  seus  menuetes 
em  todos  os  dias  de  gala;  de  dois  em  dois  annos  el-rei  e  a  real 
família  vão  por  um  dia  capar  as  gallinholas  que  abundam  na  tapa- 
da; de  quando  em  quando,  pelo  verão,  ,um  viajante  chega,  manda 
tocar  os  sinos,  manda  abrir  as  gavetas  da  sachristia,  fuma  um  cha- 
ruto nos  terraços,  e  apressa-se  a  voltar  para  Cintra  ou  para  a  Eri- 
ceira, ou  a  retomar  a  diligencia  do  Gato  ou  a  do  Simplício  que  fa- 
zem a  carreira  de  Lisboa  ao  preço  de  800  reis  por  passageiro. 

E  todavia  o  edificio  assim  abandonado  prestava-se  admiravel- 
mente ao  estabelecimento  de  uma  universidade,  de  uma  grande  es- 
cola modelo  de  instrucção  secundaria,  com  internato  a  miniraos 
preços,  reunindo  o  ensino  industrial,  o  ensino  agrícola,  a  lavoura 
e  as  artes  e  ofíicios,  fazendo  cidadãos  úteis  e  prestáveis  na  mesma 
machina  destinada  á  engorda  de  príncipes  parranas  e  de  frades  pou- 
seiros. 


A  NAZARETH 


Situada  a  breve  distancia  das  Caldas  da  Rainlia  a  praia  da  Na- 
zaretli,  assim  como  a  de  S.  Marlinlio  do  Porto,  convida  naturalmen- 
te as  pessoas  que  fazem  uso  das  aguas  sulphureas.  Assim  a  Naza- 
reth  é  principalmente  occupada  pelos  banhistas  das  Caldas  e  pes- 
soas d'aquella3  redondezas  da  Extremadura:  Pombal,  Leiria,  Torres 
Novas,  Santarém. 

A  praia  propriamente  dita,  o  logar  dos  banhos,  fica  entre  a 
antiga  villa  da  Pederneira,  situada  n'um  alto  e  o  sitio  da  Nazareth 
que  se  eleva  em  outro  alto. 

A  vida  na  Nazareth  é  tão  commoda  como  na  Ericeira.  As  ca- 
sas alugam-se  mobiladas,  com  louça,  com  roupas  de  cama.  O  ho- 
tel, muito  bem  situado,  perto  da  praia,  tem  o  preço  de  800  reis 
por  cada  hospede.  O  peixe  é  abundante  e  excellente. 

A  celebre  festa  da  Nazareth  realisa-se  no  mez  de  setembro  e 
dura  três  dias,  havendo  arraial,  tourada,  representação  no  theatri- 
nho  da  locaHdade,  etc. 


A  imagem  da  Senhora  da  Nazareth,  cuja  capella  foi  edificada 
em  1370  pelo  rei  D.  Fernando,  foi  tida  durante  muito  tempo  como 
uma  das  mais  milagrosas  de  toda  a  christandade.  E'  de  madeira 
pintada,  tem  palmo  e  meio  de  altura  e  dizem  que  foi  trazida  de 
Nazareth  para  Merida,  onde  esteve  algum  tempo,  e  de  Merida  para 
o  logar  em  que  actualmente  se  acha.  A  primeira  ermida  foi  cons- 
truída por  Fuás  Roupinho,  de  Porto  de  Moz,  no  tempo  de  Afl^onso 
Henriques.  A  imagem  estava  a  esse  tempo  collocada  entre  duas  ro- 
chas no  sitio  chamado  a  Memoria.  Sabem  certamente  a  historia  do 
milagre  que  originou  a  gratidão  piedosa  de  D.  Fuás. 


100  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

Elle  andava  caçando  no  dia  14  de  setembro  de  1182.  A  ma- 
nhã estava  enevoada  e  sombria.  Os  cães  levantam  um  veado,  que 
parte  á  desfilada  perseguido  pela  matilha  e  seguido  de  perto  por 
D.  Fuás.  De  repente  o  solo  desaparece  debaixo  das  mãos  do  cavai- 
lo  de  D.  Fuás,  que  havia  chegado  á  orla  do  grande  rochedo  cor- 
tado a  pique  na  altura  de  200  braças  sobre  o  mar.  D.  Fuás  grita 
pela  imagem  da  Senhora  que  elle  tinha  visto  na  Memoria.  O  cavallo 
empina-se  e  estaca,  tendo  o  cuidado  de  marcar  a  rocha  com  o  ves- 
tígio das  ferraduras.  D.  Fuás  apeia-se  e  vera  dar  graças  á  Virgem 
por  havel-o  livrado  de  se  despenhar  no  esbarradouro.  O  veado  pe- 
la sua  parte  desappareceu,  facto  de  que  se  deduziu  que  elle  não 
era  mais  nem  menos  do  que  o  vivo  demónio  disfarçado  em  caça. 

Desde  que  se  erigiu  a  capella  edificada  por  D.  Fuás,  os  mila- 
gres tornaram- se  consecutivos  e  extraordinários.  Doentes  sem  falia, 
sem  vista,  paralyticos  de  pernas  e  braços,  tendo  consultado  os  me^ 
dicos,  tendo  tomado  os  banhos  próximos  nas  Caldas  da  Rainha,  che- 
gavam em  piedosas  romagens  e  recuperavam  a  saúde  junto  do  al- 
tar da  Senhora. 

De  cada  milagre  se  fazia  registro  em  um  livro  devidamente 
escripturado,  onde  a  narrativa  era  aulhenticada  com  o  depoimento 
e  assignatura  de  muitas  testemunhas.  D'esse  livro  existente  no  car- 
tório da  Senhora  se  tirou  cópia  e  muitos  dos  termos  n'elle  exara- 
dos se  acham  incluídos  na  obra  publicada  em  1628,  sob  o  titulo 
Antiguidade  da  sagrada  imagem  de  Nossa  Senhora  da  Nazareth, 
por  Manoel  de  Brito  Alão. 

Muitos  dos  casos  alii  referidos  não  são  puras  mistificações  phan- 
tasiadas  por  escriptores  interessados  nem  meras  illusões  dos  senti- 
dos referidas  de  boa  fé  por  individues  allucinados.  N'essas  simples 
narrativas  acompanhadas  dos  pormenores  mais  característicos  trans- 
parece a  expressão  da  verdade.  Lemos  com  profundo  interesse  o  livro 
a  que  nos  referimos  e  lamentamos  que  o  caracter  ligeiro  d'este  Guia 
não  consagrado  á  attenção  dos  philosophos  mas  ao  recreio  dos  ba- 
nhistas nos  prive  de  demorar-nos  um  pouco  como  mero  diletante 
na  analyse  pathologica  dos  casos  referidos  no  tomo  dos  milagres 
operados  por  interferência  da  imagem  de  Nossa  Senhora  da  Naza- 
retii.  Não  podemos  porém  furtar-nos  á  transcripção  de  um  d'esses 
casos,  — um  só  pelo  menos  —  como  amostra  da  natureza  da  maté- 
ria que  o  registro  a  que  nos  referimos  oíTerece  á  observação  e  ao 
estudo. 


AS  PRAIAS    DE   PORTUGAL  101 


«  A  vinte  e  sete  de  setembro  á  terça-feira  da  era  de  seiscen- 
tos e  onze  annos  veio  a  esta  santa  casa  o  commendador-mór  com 
Dona  Maria  de  Távora  sua  molher,  trazendo  em  sua  companhia  a 
Dona  Isabel  de  Moura  filha  de  Dom  Francisco  de  Moura  freira  pro- 
fessa do  Mosteiro  de  Santos,  a  qual  vinlia  aleijada  de  uma  perna, 
e  braço  direito,  e  da  mão  direita  tendo-a  mais  de  meia  fechada,  e 
o  braço  encolhido  com  os  nervos  tomados,  e  pegados,  que  lhe  fa- 
ziam no  sangradouro  tamanho  de  uma  noz  grande  ao  comprido,  e 
o  braço  pegado  de  maneira  que  para  nenhuma  parte  o  podia  go- 
vernar nem  menear,  e  a  perna  aleijada  tinha  mais  curta  quatro  de- 
dos, e  andava  muito  poucos  passos  sobre  um  bordcão  que  avia  dias 
tinha,  e  o  dia  que  partio  para  aqui  das  Caldas,  quebrou,  sobre  que 
andava  arrimada  quando  dava  algum  passo,  e  apeando-se  á  porta 
da  igreja  da  senhora,  ao  ir  para  casa  e  tornar  outra  vez  para  a 
egreja,  era  em  uma  cadeira,  e  ordinariamente  andava  em  braços  de 
molheres,  e  quando  veio  do  seu  mosteiro  a  curar-se  ás  Caldas,  e 
d'ahi  a  esta  santa  casa  (onde  havia  muito  tempo  que  esta  religiosa 
desejava  vir  em  romaria)  uma  porteira  ao  sahir  do  Mosteiro,  por 
nome  Dona  Briolanja,  lhe  disse  que  sonhara  que  a  ditta  D.  Isabel 
de  Moura  lhe  disia  que  no  dia  de  S.  Miguel  avia  de  ter  saúde,  e  a 
dita  religiosa  o  sonhou  nas  Caldas  aonde  se  estava  curando,  que 
a  Virgem  Senhora  Nossa  lhe  dava  saúde  dia  de  São  Miguel,  e  assi 
o  contou  a  Dona  Maria  de  Távora  molher  do  commendador  mór,  a 
quem  esta  rehgiosa  tinha  pedido  que  a  quizesse  trazer  em  romaria 
a  Casa  de  Nossa  Senhora  porque  não  linha  outro  meyo  para  puder 
comprir  este  desejo,  e  vindo  elles  para  estarem  a  véspera  de  São 
Miguel,  e  se  partirem  ao  outro  dia,  estiveram  bua  novena  por  acon- 
tecer o  milagre  na  forma  seguinte.  Aos  vinte  e  outo  de  setembro 
da  dita  era,  que  foi  véspera  de  S.  Miguel,  veyo  esta  Religiosa  em 
hua  cadeira  era  braços  d'homens  ouvir  missa  e  assentando-se  assi- 
ma  dos  degraos  no  taboleiro  junto  ao  Altar  da  Senhora  da  parte 
esquerda  em  geolhos,  depois  de  fazer  oração  á  Senhora,  lhe  deu 
um  accidente  dos  que  lhe  costumavam  a  dar,  e  passado  elle  lhe 
deram  no  braço  direito,  que  era  o  aleijado,  tão  intrínsecas  dores 
dos  nervos  da  mão  e  braço,  que  estando  banhada  em  lagrimas,  di- 
zia que  nunca  em  sua  vida  taes  dores  padecera,  trás  eha  lhe  deu 
um  somno  tão  profundo,  que  lhe  durou  mais  de  uma  grande  hora, 
de  maneira  que  por  duas  vezes  lhe  tomou  o  pulso  Dona  Maria  de 
Távora,  que  assistia  junto  d'ella,  porque  lhe  pareceu  que  estava 
como  passada,  e  morta  com  o  pesado  somno  que  tinha,  e  vendo-a 
n'este  estado  tirou  um  lenço  da  manga  e  o  deu  ao  Irmitão  dizendo 
qne  lh'o  molhasse  no  azeite  da  alampada  da  Senhora,  o  que  logo 


102  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

fez,  e  com  elle  lhe  começou  a  fazer  a  ditta  senhora  o  signal  da 
cruz,  no  meio  da  costa  da  mão  junto  aos  dedos,  e  entre  o  polegar 
e  o  grande  pela  banda  de  fora  por  não  poder  ser  na  palma  por 
respeito  da  aleijão.  Estando  n'isto  deu  a  ditta  religiosa  um  arran- 
co com  o  braço  e  o  estendeu  com  toda  a  mão,  e  isto  tudo  estando 
fora  do  seu  sentido,  no  somno  que  assima  apontei.  Levantou  então 
a  voz  Dona  Maria  de  Távora  dando  a  Senhora  as  graças  de  tão 
grande  maravilha  e  milagre :  n'isto  despertou  a  dita  religiosa  dizen- 
do: que  é  isto,  prima?  E  no  mesmo  instante  correu  com  as  mãos 
levantadas  sãa,  sem  aleijão  algua,  avendo  perto  de  dois  annos  que 
estava  na  forma  que  acima  se  diz,  do  ar  que  lhe  deu  duas  vezes, 
do  qual  tinha  já  vindo  ás  Caldas  por  outras  duas,  e  estando  encos- 
tada no  altar  da  Senhora  cahiu  uma  rosa  á  Senhora  que  tinha  no 
peito  dependurada  n'uma  cadeia,  e  deu  na  cabeça  d'esta  religiosa 
que  lhe  estava  dando  as  graças  pela  mercê  recebida,  a  qual  rosa 
(com  aver  hoje  nove  dias  que  foi  colhida)  está  fresca  e  as  outras 
que  vieram  ontem  que  a  Senhora  tem  estão  murchas,  e  seccas:  e 
acabando  a  dita  religiosa  de  dar  graças  à  Senhora  começou  a  pas- 
sear pelo  taboleiro  do  altar  da  Senhora  á  vista  de  todo  o  povo,  do 
qual  a  Igreja  estava  cheia,  vendo-a  toda  a  romagem,  que  seriam 
perto  de  quatrocentas  pessoas  vir  dantes  em  uma  cadeira  em  que 
a  traziam,  e  confessa  a  dita  religiosa  que  andando  algum  tanto  al- 
catruzada  sendo  sãa,  anda  hoje  mais  direita  depois  que  recebeu  a 
saúde  per  meyo  da  Virgem  Senhora  da  Nazareth.  As  pessoas  que 
estavam  presentes  ao  ditto  milagre  foi  o  commendador-mór  e  Do- 
na Maria  de  Távora  sua  molher :  Francisca  Cardosa  e  Maria  da  Assem- 
ção  creadas  do  ditto  commendador  mór  e  Maria  de  Andrade  crea- 
da  da  ditta  religiosa:  Pedro  Fernandes  Irmitão  da  ditta  casa  e  ou- 
tras muitas  pessoas  que  entraram  na  Igreja  quando  a  Senhora  fez 
o  ditto  milagre,  que  a  conheceram  e  viram  vir  aleijada  na  forma 
que  arriba  se  faz  menção.  E  eu  o  Licenceado  Manoel  de  Brito  Alão 
Abbade  simples  de  S.  João  de  Campos  e  administrador  dos  bens, 
obras,  e  culto  divino  da  Casa  de  Nossa  Senhora  de  Nazareth  por 
Sua  magestade,  de  cuja  immediata  protecção  é  a  dita  casa,  pre- 
guntei  ás  dittas  testemunhas  que  aqui  comigo  assignaram  e  á  ditta 
religiosa,  e  escrevi  este  milagre  n'este  livro  das  maravilhas,  e  mi- 
lagres da  Senhora,  até  o  Arcebispo  de  Lisboa  mandar  tomar  conhe- 
cimento para  se  verificar  o  ditto  milagre  tão  notório,  e  por  tudo 
passar  na  verdade  fiz,  e  assignei  este  termo  oje  dia  de  S.  Francis- 
co, a  quatro  de  outubro  de  611.»  (Seguem  as  assignaturas). 


AS   PRAIAS  DE  PORTUGAL  103 


Graças  aos  pormenores  com  que  o  milagre  se  acha  ingenua- 
mente descripto  não  ha  medico,  mediocremente  iiistruido,  que  da 
narrativa  exposta  não  extraia  hoje  o  diagnostico  preciso  da  enfermi- 
dade de  D.  Isabel  de  Moura,  religiosa,  o  que  quer  dizer  solteira, 
sujeita  a  incidentes  que  lhe  costumavam  dai',  imaginativa,  sonhan- 
do que  sararia  no  Dia  de  S.  Miguel  e  procurando  para  a  romaria 
o  dia  annunciado  no  sonho,  atacada  finalmente  de  um  mal  que  por 
duas  vezes  lhe  dera  e  a  deixara  paralytica.  Um  medico  actual  pôde 
não  somente  precisar  a  natureza  da  moléstia  —  o  hysterismo  —  mas 
ainda  assignalar  com  a  mais  perfeita  segurança  os  "tramites  psycho- 
logicos  pelos  quaes  se  realisou  a  cura  por  via  de  um  poderoso 
agente  therapeutico,  que  faz  cobrir  o  rosto  de  lagrimas  e  declarar 
o  doente  que  nunca  em  sua  vida  taes  dores  padecera.  Esse  mara- 
vilhoso modificador  das  enfermidades  é  o  synergismo  ou  a  acção 
da  energia  e  do  poder  da  vontade  do  enfermo  sobre  a  perturba- 
ção da  saúde.  E'  depois  d'esses  violentos  e  decisivos  exforços  de 
todo  o  systema  nervoso  sobre  o  systema  muscular  que  sobrevoem 
os  somnos  profundos  do  género  do  que  levou  D.  Maria  de  Távora 
a  molhar  o  lenço  no  azeite  da  lâmpada  para  fazer  o  signal  da  cruz 
em  D.  Izabel  por  a  julgar  passada. 

Os  antigos  milagres  de  Nossa  Senhora  da  Nazareth  podem  já 
hoje  ser  aíToitamente  analysados  e  ratificados  pela  critica  sem  re- 
ceio de  que  as  interpretações  da  sciencia  fechem  á  cura:  ou  ao  ali- 
vio das  pessoas  religiosas  as  portas  d'essa  grande  pharmacia  sym- 
pathica  e  veneranda  que  se  chama  a  Fé. 

Infehzmente  a  Senhora  da  Nazareth  ha  muitos  annos  que  não 
faz  curas.  No  dia  do  milagre  de  D.  Isabel  de  Moura  quatrocentos  en- 
fermos compunham  a  romagem  que  implorava  a  intervenção  thera- 
peutica  da  Virgem.  Hoje  em  dia  a  não  ser  á  hora  matutina  da  mis- 
sa conventual,  o  templo  está  deserto.  O  ermitão  desappareceu.  O 
administrador  do  culto  deixou  de  existir  e  o  tomo  dos  milagres  e 
maravilhas  em  que  o  abbade  Manoel  de  Brito  Alão  registava  em  ca- 
da dia  um  successo  novo  passou  da  banqueta  da  igreja  para  a  col- 
lecção  das  curiosidades  bibliographicas. 

Novas  imagens  modernas  e  extrangeiras  vieram  tirar  a  virtu- 
de ás  velhas  imagens  portuguezas.  Passou  o  tempo  da  Senhora  de 
iNazareth  na  antiga  villa  da  Pederneira;  passou  o  tempo  de  Santa 
Iria  em  Santarém ;  passou  o  tempo  de  S.  Torquato  em  Guima- 
rães. 

A'  data  d'este  livro  é  Nossa  Senhora  de  Lourdes  que  está  fa- 
zendo os  milagres,  principalmente  entre  a  sociedade  culta,  que  sa- 


104  AS  PRAUS  DE  PORTUGAL 

be  ser  devota  em  francez  ou  que  segue  eruditamente  as  traducções 
mais  recentes  das  bibliothecas  românticas.  Que  os  interessados  apro- 
veitem, em  quanto  é  tempo,  a  efficacia  d'este  novo  elemento  ma- 
ravilhoso !  Os  milagres  são  como  os  medicamentos  da  moda  acerca 
de  um  dos  quaes  dizia  um  medico  citado  por  Littré  a  uma  senhora 
que  o  consultava: 

— Sim,  pôde  tomal-o,  mas  tome-o  já  —  emquanto  elle  cura! 


A  FIGUEIRA 


O  viajante  sente  ao  entrar  na  Figueira,  no  tempo  dos  banhos, 
uma  impressão  similhante  á  que  se  experimenta  penetrando  nos 
geraes  da  Universidade  em  dia  lectivo.  É  a  impressão  do  lente, 
do  pedagogo,  da  aula.  Tera-se  uma  espécie  de  terror  mesclado  de 
tédio.  Ha  uma  atmosphera  especial  de  pedanteria,  de  rigor  e  de 
troça.  Aspira-se  vagamente  o  cheiro  dos  sapatos  e  das  velhas  ba- 
tinas gordurosas  na  aula  quente  e  fechada.  As  physionomias  dos 
doutores,  de  uma  grave  expressão  emphatica,  guindada  e  ôcca,  as 
cabelleiras  dos  estudantes  apparatosamente  penteadas,  os  ares  do- 
gmáticos de  uns,  misturados  com  os  ares  patuscos  d'outros,  um 
tom  geral  de  prelecção  ou  de  desfructe,  uma  tonalidade  especial- 
mente affeclada  na  pronunciação,  um  desgarre  pecuhar  de  gestos 
8  de  maneiras:  taes  são  as  principaes  notas  que  caracterisam  a 
população  de  Coimbra. 

Além  d'isto  a  cidade  tem  um  argot  que  se  não  usa  em  ne- 
nhuma outra  parte. 

Um  dia  passávamos  na  Sophia  dentro  de  uma  das  carroagens 
americanas  que  fazem  o  serviço  da  estação  do  caminho  de  ferro. 
No  banco  que  ficava  adiante  do  nosso  sentava-se  uma  senhora  de 
dezoito  a  vinte  annos,  com  o  aspecto  de  uma  pessoa  bem  educada, 
a  qual  tinha  ido  esperar  á  gare  um  sujeito  idoso,  de  óculos,  que 
se  sentava  junto  d'ella.  A  referida  senhora  soltou  estas  textuaes 
palavras : 

«Ah!  papá,  que  cohcas  que  rapou  o  Barreira!  O  guarda-mór 
disse-lhe  que  tinha  ficado  bem,  mas  o  Augusto  foi  saber  á  secre- 
taria, e  quando  voltou  vinha  tão  torto  de  cara  que  eu  logo  disse 
ao  Barreira :  ou  você  levou  um  r  ou  Augusto  embaçou  com  algu- 
ma chalaça  nossa.» 


106  AS   PRAIAS  DE    PORTUGAL 


Era  preciso  estar  effectivamente  na  Sophia  para  ouvir  esta  es- 
pécie de  enunciado  na  boca  de  uma  senhora. 

Coimbra  inteira  exprime-se  d'es5e  modo.  Faliam  assim  os  es- 
tudantes, as  serventes,  os  creados  das  hospedarias  e  dos  cafés,  os 
negociantes,  as  estaoqueiras  e  os  professores. 

Sente  a  gente  o  seu  espirito  asphyxiado  em  tão  estreita  cora- 
prehensão  de  interesses  e  de  curiosidades,  em  tão  perfeita  confor-  ■ 
midade  de  stylo  chinfrim  e  de  maneiras  esbandalhadas.  l 

Antigos  estudantes  reprovados,  velhos  cabulas  incorrigíveis, 
de  cabellos  cheios  de  caspa,  a  barba  por  fazer,  o  rosto  macilento  e 
sombrio,  as  unhas  e  os  dentes  sujos,  os  sapatos  acalcanhados,  pas- 
sam chupando  o  cigarro  e  arrastando  no  macadam  coberto  de  pa- 
peis rasgados  a  ponta  da  capa  enodoada  e  rota.  Os  professores, 
habituados  pela  antiga  organisação  da  Universidade  a  exercerem 
sobre  o  alumno  um  poder  quasi  illimitado,  afeitos  á  bajulação,  á 
pusillaniraidade,  á  subserviência  dos  escolares,  caminham  magesta- 
ticamente  com  a  determinação  imperiosa  de  quem  mandará  cortar 
.a  cabeça  dos  extrangeiros  que  se  não  ajoelhem  na  passagem  d'el- 
les  e  das  suas  famílias. 

Tal  é  sobre  o  aspecto  de  uma  população  inteira  o  effeito  de 
um  dogmatismo  exagerado  e  pedantesco,  da  confusão  do  ensino  e 
da  educação  htteraria  baseada  na  hypocrisia  antiga  e  na  indisci- 
plina moderna! 

Os  admiráveis  subúrbios  de  Coimbra,  de  uma  paizagem  tão 
doce  e  tão  saudosa,  os  bellos  monumentos  da  cidade,  a  archite- 
ctura  árabe  da  Sé  Velha,  as  ruinas  tão  pittorescas  e  de  tradições 
tão  dramáticas  dos  paços  de  Subripas,  a  linda  varanda  do  Paço 
Episcopal,  a  Igreja  de  Santa  Cruz,  a  bibliotheca  da  Universidade, 
todas  essas  jóias  encantadoras  são  sufíicientes  para  fazer  esquecer 
aos  viajantes  a  impressão  triste  da  convivência  conimbricense. 


A  Figueira  participa  do  caracter  que  tem  Coimbra,  um  pouco 
para  peor,  porque  os  estudantes  que  frequentam  a  Figueira  são 
ordinariamente  os  peores,  os  mais  broncos,  os  que  não  saem  de 
Coimbra,  aquelles  em  quem  os  effeitos  do  vicio  universitário  se 
desenham  mais  profundamente.  Estes  senhores  com  o  seu  aíTectado 
desdém,  com  o  seu  mau  ar  de  críticos,  com  o  seu  espirito  de  tro- 
ça, e  os  snrs.  professores  com  a  sua  sobranceria  cathedratica,  con- 
stituem o  grande  senão  da  sociedade  da  Figueira,  sobre  a  qual 
destingem  a  sua  côr  especial. 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  107 

E,  Dão  obstante,  nenhuma  outra  praia  em  Portugal  possue  as 
condições  d 'esta  para  tornar  agradável  a  estação  dos  banhos. 

Batida  do  grande  mar,  tendo  á  direita  a  bonançosa  bahia  de 
Buarcos  e  á  esquerda  os  rochedos  em  que  assenta  o  castclio  de 
Santa  Catharina,  que  defende  a  foz  do  Mondego,  a  villa  da  Figuei- 
ra oíTerece  aos  l3anhistas  incomparáveis  condições. 

A  povoação  é  rica  pelo  commercio  do  sal  e  pela  exportação 
dos  vinhos  da  Bairrada. 

Uma  companhia  edificadora  tem  construído  casas  agradáveis, 
em  um  bairro  novo  junto  á  foz  do  Mondego,  em  sitio  elevado  e 
sadio.  N'este  bairro  ha  um  hotel,  Foz  do  Mondego,  onde  se  rece- 
bem hospedes  a  1^000  reis  por  dia. 

A  villa  tem  ainda  mais  dois  boteis,  o  Figueirense  e  o  da  Pra- 
ça Novaj  um  pequeno  theatro,  uma  praça  de  touros  e  dois  clubs : 
'a  Assembleia  Recreativa,  no  bairro  novo,  onde  se  dança  ás  terças 
e  sextas-feiras,  e  a  Assembleia  Figueirense,  no  antigo  palácio  dos 
condes  da  Figueira,  onde  se  dança  á  quinta-feira  e  ao  domingo. 

Além  das  soirées  nos  dois  clubs,  as  senhoras  costumam  orga- 
nisar  concertos  e  bailes.  A  soirée  é  uma  das  grandes  preocupações 
d'esta  praia,  e  não  será  por  falta  de  contradanças  que  os  banhis- 
tas deixarão  de  se  regosijar  n'este  sitio. 

As  burricadas  e  os  pic-nics  a  Buarcos,  ao  farol  da  Guia,  ao 
palácio  de  Tavarede,  vão-se  tornando  cada  vez  mais  raros. 

Por  uma  disposição  superior,  cujo  alcance  debalde  nos  exfor- 
çamos  por  attingir,  é  prohibido  o  ingresso  dos  burros  no  interior 
da  villa,  o  que  não  obsta  a  que  lá  entrem  muitos  —  disfarçados. 

O  passeio  predilecto  dos  banhistas  é  a  Palheiros,  pequena  po- 
voação de  pescadores,  a  meio  caminho  de  Buarcos,  onde  se  colhem 
as  redes  da  sardinha. 

•  A  população  dos  banhistas  na  Figueira  consta  de  duas  cama- 
das diíferentes.  No  fim  de  setembro  retiram-se  as  famílias  de  Coim- 
bra e  algumas  de  Lisboa,  e  succedem-se  as  dos  lavradores  da  Bei- 
ra, que  vêem  para  esta  praia  depois  das  colheitas  repousar  dos 
trabalhos  do  campo. 

As  primeiras  d'estas  duas  camadas  não  parece  serem  mui  par- 
ticularmente sympathicas  á  população  indígena. 

A  Figueira  tem  pelos  seus  hospedes  sentimentos  similhantes 
aos  que  por  muito  tempo  animaram  a  população  futrica  de  Coim- 
bra com  relação  aos  estudantes:  suporta-os,  mas  não  os  estima. 
O  caminho  de  ferro,  a  convivência  cada  vez  mais  estreita  com  os 
viajantes  tem  sanado  em  Coimbra  os  antigos  conílictos  tão  frequen- 
tes entre  os  burguezes  e  os  académicos. 


108  AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL 

Na  Figueira,  entre  a  população  fixa,  que  habita  a  antiga  villa 
e  frequenta  a  Assembleia  Figueirense,  e  a  povoapão  fluctuante,  que 
habita  principalmente  o  bairro  novo  e  frequenta  a  Assembleia  Re- 
creativa, não  ha  hostilidades,  mas  existe  uma  forte  emulação  pro 
vinciana,  que  se  descarrega  muitas  vezes  em  pequenos  episódios 
dignos  de  Dickens  ou  de  Balzac. 


I 


A  viagem  da  Figueira  é  bastante  pittoresca,  mas  não  isempta 
de  incommodidades.  Quer  o  viajante  chegue  a  Coimbra  ás  3  Ya 
horas  da  tarde,  quer  chegue  ás  4  horas  da  manhã,  tem  de  espe- 
rar até  ás  6  horas  da  manhã  ou  até  ás  2  Ya  da  tarde  para  poder 
seguir  para  a  Figueira  na  diligencia,  que  gasta  seis  horas  n'este 
caminho  e  pede  Ij^OOO  reis  por  cada  logar. 

Na  imperial  da  dihgencia,  como  artista,  em  companhia  ale- 
gre; ou  em  carroagera  descoberta,  que  se  pôde  alugar  em  Coim- 
bra, o  caminho  não  parece  longo,  porque  a  estrada  é  boa  e  a  pai- 
zagem  lindíssima. 

Entra-se  na  villa  por  uma  estreita  garganta  que  se  alonga  pa- 
ra o  viajante  como  o  bico  de  um  funil.  Se  não  é  fácil  a  entrada 
pela  foz  do  Mondego  a  bordo  de  uma  das  escunas  ou  dos  hia- 
tos que  frequentam  o  porto  e  aos  quaes  o  rumo  da  barra  é  indi- 
cado de  terra  por  meio  de  um  signal  no  alto  de  um  mastro,  a 
entrada  em  diligencia  pelo  funil  acima  referido  não  é  menos  pe- 
rigosa. Somente,  pela  via  de  terra  é  permittido  ao  viajante  ura 
expediente,  que  se  não  usa  na  superfície  hquida,  e  vem  a  ser: 
desembarcar  a  distancia  respeitosa  e  entrar  cada  um  na  villa  pelo 
seu  pé. 


SETÚBAL 


Comquanto  não  seja  propriamente  uma  lerra  de  banhos,  mas 
uma  cidade  muito  industriosa  e  muito  commercial,  a  praia  de  Se- 
túbal é  actualmente  bastante  frequentada  pelos  banhistas  da  pro- 
víncia do  Alemtejo  e  da  Extremadura  hispanhola. 

A  exposipão  de  Setúbal,  na  foz  do  Sado,  cercada  de  magnífi- 
cos pomares  e  dos  celebres  vinhedos  de  Moscatel,  que  se  esten- 
dem ao  longo  de  graciosas  colinas,  é  extremamente  risonha  e  pit- 
toresca.  A  população,  quasi  toda  empregada  no  commercio  do  sal, 
na  exportação  da  laranja,  no  fabrico  dos  vinhos,  é  activa  e  traba- 
lhadora. 

A  cidade  tem  um  bonito  passeio  publico,  um  soffrivel  hotel 
—  o  do  Escoveiro— ,  um  theatro,  um  club  e  uma  estatua  —  a  do 
sympathico  poeta  Bocage,  o  representante  da  escola  revolucionaria 
na  litteratura  portugueza  do  fira  do  século  xviii,  um  dos  poucos 
Utteratos  do  seu  tempo  em  cuja  obra  se  presente  a  passagem  do 
grande  fôlego  de  1789. 

A  praia  é  uma  das  mais  vastas  e  das  melhores  do  paiz. 

Os  subúrbios  são  dos  mais  interessantes  que  pôde  appetecer 
o  touriste,  o  archeologo,  o  naturalista. 

As  ruínas  de  Tróia,  ultimamente  exploradas  por  uma  compa- 
nhia franceza,  estão  dando  logar  ás  escavações  mais  úteis  para  a 
historia  da  civilisação  romana  em  Portugal.  Tróia  fica  a  um  pe- 
queno passeio  da  praia. 

A  serra  da  Arrábida,  occupando  uma  superficie  de  cinco  lé- 
guas, offerece  aos  botânicos  e  aos  paizagistas  as  digressões  mais 
agradáveis  e  mais  profícuas. 

No  Espelho  de  Penitentes  e  Chronica  da  província  de  Santa 
Maria  da  Arrábida,  da  regular  e  mais  estreita  observância  da 


110  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

ordem  do  seráfico  'padre  S.  Francisco  no  Instituto  Capucho,  en- 
contrarão os  curiosos  a  mais  minuciosa  descripção  do  convento, 
cujas  ruinas  ali  se  conservam;  da  lenda  da  sua  edificação;  das 
hervas  medicinaes  que  cobrem  a  serra ;  da  ermida  de  Nossa  Se- 
nhora do  Gabo  de  Espichel  e  dos  cirios  do  Alemtejo  e  do  termo  de 
Lisboa  que  festejam  aquella  milagrosa  imagem;  da  lapa  de  Santa 
Margarida;  e  finalmente  do  penedo  chamado  do  Duque,  em  que 
D.  Álvaro  de  Lencastre  se  sentava  para  pescar  á  cana,  á  beira  do 
mar,  e  a  ninguém  mais  era  permittido  sentar-se  no  dito  penedo. 
Tudo  isto  repintado  no  estylo  pretencioso,  rhetorico,  de  frei  Antó- 
nio da  Piedade,  leitor  de  theologia  e  quahficador  do  Santo  OíRcio, 
o  qual  ofFereceu  d  sempre  augusta  magestade  d'el-rei  D.  João  V 
nosso  senhor  o  peso  da  sua  chronica  e  a  incontinência  sacharina 
do  seu  stylo  archaico. 

Setúbal  fica  a  sete  léguas  de  Lisboa.  A  viagem  faz-se  com 
grande  commodidade  entre  as  duas  cidades  atravessando  o  Tejo  e 
tomando  o  caminho  de  ferro  de  sueste.  Póde-se  fazer  a  ida  e  vol- 
ta no  mesmo  dia. 


AS  PRAIAS  OBSCURAS 


Além  das  praias  a  que  nos  temos  referido,  Portugal,  que  é 
todo  elle  uma  praia,  —  a  occidental  praia  lusitana  —  tem  natural- 
mente muitos  outros  pontos  adequados  á  installapão  de  uma  famí- 
lia em  uso  de  banhos. 

Entre  as  pequenas  praias  são  particularmente  dignas  de  men- 
ção as  seguintes: 


A7icora,  pequena  povoação  situada  entre  Vianna  e  Caminha. 
É  um  dos  mais  hndos  sitios  do  Minho.  Fica  á  beira  da  mais  bella 
estrada  de  Portugal,  a  hora  e  meia  ^la  cidade  de  Vianna  e  do  Rio 
Lima,  e  a  egual  distancia  do  rio  Minho  e  da  fronteira  da  Galliza, 
nma  das  mais  interessantes  provindas  hispanholas.  Nas  proximi- 
dades de  Ancora  acha-se  a  pittorcsca  povoação  de  Aflfe,  de  onde 
são  oriundos  os  melhores  estucadores  portuguezes.  Afife,  sobre- 
sae  de  todo  o  Minho  pelo  gosto  artístico  dos  seus  habitantes  pela 
graça  e  pelo  asseio  das  suas  edificações.  Parece  provado  que  Afife 
foi  fundado  por  duas  ou  três  famiUas  italianas  que  ali  se  estabele- 
ceram em  época  que  não  podemos  precisar. 


A  Apúlia,  junto  de  Fão  e  de  Espozende,  habitada  principal- 
mente por  algumas  ricas  famílias  de  Braga  e  de  Barcellos. 


112  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

Lavadores,  perto  do  Porto,  defronte  de  S.  João  da  Foz.  A  po- 
voação consta  de  um  pequeno  grupo  de  casas. 


O  Furadouro  e  a  Costa  Nova  frequentadas  por  algumas  fa- 
mílias de  Aveiro  e  seus  subúrbios. 


I 


S.  Martinho  do^  Porto,  na  Extremadura,  entre  as  Caldas  da 
Rainha  e  Alcobaça.  É  uma  povoação  de  pescadores.  Aluga  por  mó- 
dicos preços  vinte  ou  trinta  casas  mobiladas.  Está  ligada  á  Mari- 
nha Grande  por  um  caminho  de  ferro  americano,  e  communica  com 
as  Caldas  da  Rainha,  com  Alcobaça  e  com  a  Batalha  por  uma  boa 
estrada.  A  temporada  em  S.  Martinho  do  Porto  presta-se  ás  mais 
interessantes  excursões  artísticas  que  se  podem  fazer  commoda- 
mente  em  Portugal.  S.  Martinho  do  Porto  é  principalmente  habita- 
do nos  mezes  de  verão  por  famihas  hispanholas.  As  pessoas  de 
Leiria,  de  Alcobaça,  da  Marinha  Grande  preferem  a  Nazareth.  A 
viagem  de  Lisboa  a  S.  Martinho  faz-se  por  Chão  de  Maçãs  e  Leiria 
ou  pelo  Carregado  e  Caldas,  e  custa  pouco  mais  ou  menos  de  uma 
libra  por  passageiro  tomando  logar  de  primeira  classe  no  cami- 
nho de  ferro  e  proseguindo  na  diligencia  do  Carregado  ou  de  Lei- 
ria. Em  setembro  do  anno  passado  encontramos  em  Merida  uma 
estimável  família  híspanhola  que  chegava  de  S.  Martinho  do  Porto. 
Traziam  enormes  cabazes  cheios  de  excellente  fructa  de  Alcobaça. 
Tínham-se  provido  para  o  seu  inverno  de  uma  barrica  de  magní- 
ficos badejos,  pescados  em  S.  Martinho  e  conservados  em  salmou- 
ra. Disseram-nos  maravilhas  da  commoda  e  tranquilla  vida  passa- 
da durante  dois  mezes  no  agradável  retiro  que  tinham  tido  a  lem- 
brança de  escolher. 


A  Assenta,  a  duas  léguas  de  Torres  Vedras,  perto  da  foz  do 
Sizandro.  Meia  dúzia  de  casas,  e  cerca  de  quatro  famílias.  Preços 
das  casas:  de  100  a  300  reis  por  dia. 


Santa  Cruz,  meia  legoa  ao  norte  do  Sizandro,  a  duas  léguas 
de  Torres.  Bello  ponto  de  vista  das  ruínas  do  convento  de  Pena- 


AS  PRAIAS   DE   PORTUGAL  1  1 3 


firme.  Pouco  mais  casas  que  a  Assenta.  Quatro  ou  cinco  pessoas 
mais  na  população  dos  banhistas. 


S.  Pedro  de  Moei,  na  orla  do  Pinhal  de  Leiria.  Pequena  po- 
voação exclusivamente  de  banhistas,  abandonada  no  inverno,  ha- 
bitada durante  a  estação  de  banhos  por  pessoas  da  Marinha  Gran- 
de ou  de  Leiria.  Yisinhança  magnifica :  o  pinhal,  que  é  a  primeira 
floresta  portugueza. 


Junto  de  Lisboa,  na  margem  esquerda  do  Tejo,  encontram-se 
ainda  alguns  legares  de  banhos  onde  a  vida  é  mais  barata  que  na 
margem  de  cá.  Taes  são: 

Porto  Brandão,  em  frente  de  Belém.  Magnifica  vista  para  a 
margem  opposía  do  Tejo.  Arvores  —  coisa  rara  —  nas  visinhanças. 
Soflriveis  casas  a  preços  módicos.  Um  bello  passeio  de  cerca  de 
três  léguas  pela  charneca  até  á  Lagoa  de  El-Rei,  o  retiro  predile- 
cto de  D.  Pedro  v.  O  pequeno  e  modesto  prédio  da  casa  real,  de 
um  só  pavimento  ao  rez  do  chão,  fica  á  beira  do  lago,  na  solidão 
da  charneca.  A  paizagem  é  de  uma  grande  melancholia  sympathica, 
de  um  encanto  profundamente  penetrante.  A  agua  tranquilia  da 
grande  lagoa,  o  áspero  aspecto  da  charneca,  a  grande  solidão,  a 
planice,  o  profundo  silencio,  infundem  uma  pacificação  e  um  sen- 
timento de  serenidade  ineííavel.  A  lagua  é  muito  povoada,  mas  a 
pesca  é  prohibida  sem  licença  expressa  do  individuo  que  a  arre- 
mata em  cada  anno.  Não  obstante,  o  auctor  d'estas  linhas  na  ulti- 
ma vez  que  ali  foi  apoderou-se  de  um  polvo,  fisgando-o  contra 
uma  rocha  com  uma  navalha  americana  que  o  seu  amigo  Eça  de 
Queiroz  lhe  mandou  de  presente  das  margens  do  Niagara.  Funda- 
mos o  nosso  direito  a  este  polvo  na  circumstancia  de  que  a  rocha 
não  é  agua  mas  sim  terra  firme.  Em  todo  o  caso  aproveitamos  esta 
occasião  para  desencarregarmos  a  consciência  pedindo  humilde- 
mente perdão  a  sua  excellencia  o  arrematante  da  lagua  e  a  sua 
magestade  o  proprietário  d'ella.  Estamos  prontos  a  dar  outro  pol- 
vo, se  a  coroa  assim  o  exigir.  Os  contornos  do  lago  são  habitados 
por  óptimos  coelhos,  magros,  mas  de  um  especial  sabor  salgado 
e  bravio.  O  snr.  D.  Pedro  v  matava-os  na  carreira,  á  bala,  com 
notável  pericia.  A  caça  não  tem  arrematante  e  é  permittida  ao  pu- 
blico. Além  dos  coelhos,  que  são  abundantes,  ha  massaricos,  pa- 
tos e  outras  aves  marinhas. 

8 


114  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

O  Alfeite,  perto  da  quinta  real  do  mesmo  nome,  junto  de  Ca- 
cilhas e  da  Cova  da  Piedade.  É  o  mais  pittoresco  sílio  da  margem 
do  sul  do  Tejo. 


A  Fonte  da  Pipa.  Logar  árido,  abafado,  triste.  Poucas  casas 
sem  mobilia.  Pequenos  preços. 


BÂimOS  DA  BARCA 


o  TRATAMENTO  MARÍTIMO 


Segundo  os  auctores  do  excellente  diccionario  francez  de  Hy- 
drologia  medica,  o  tratamento  marítimo  que  os  doentes  vão  pro- 
curar nas  praias,  consta  de  três  elementos  distinctos :  a  atmosphe- 
ra  marítima,  a  agua  do  mar  para  uso  interno,  e  o  banho  de 
mar. 


A  atmosphera  marítima,  ou  ar  do  mar,  actua  sobre  o  orga- 
nismo pela  sua  densidade,  pela  sua  constituição  chimiea  e  pelas 
condições  physicas  a  que  pôde  achar-se  sujeito. 

Os  professores  Durand-Fardel  e  Le  Bret,  auctores  do  livro  a 
que  acima  nos  referimos,  dizem : 

Pelo  simples  facto  da  residência  á  beira-mar,  como  n'uma  lo- 
calidade muito  elevada,  o  appetite  augmenta,  a  digestão  opera-se 
mais  regularmente  e  mais  rapidamente,  a  respiração  exerce-se  com 
mais  actividade,  o  systema  nervoso  sobrexcita-se :  taes  são,  pelo 
menos,  os  phenomenos  mais  manifestos  e  mais  geraes  que  se  ob- 
servam, e  fazem  com  que  o  ar  do  mar  seja  tão  salutar  ás  pessoas 
fracas,  molles,  apathicas,  de  constituição  lymphatica,  como  difficil- 
mente  suportado  quando  a  circulação  sanguínea  se  exerce  com  uma 
grande  actividade,  finalmente  quando  a  constituição  do  individuo 
apresenta  uma  disposição  nervopatliica  ou  inílammatoria  domi- 
nante. 

É  na  infância  que  o  ar  do  mar  se  torna  mais  particularmente 
salutar,  quando  a  evolução  do  organismo  se  acha  demorada,  quer 
pela  insufficiencia  das  forças,  quer  por  uma  convalescença  difficil, 
quer  pela  existência  de  algumas  das  diatheses  familiares  a  esta 
edade.  As  creanças  possuem  uma  tolerância  particular  para  o  ar  do 


il6  AS  PKAIAS  DE   PORTUGAL 

mar.  Todavia,  segundo  o  dr.  Gaudet,  algumas  ha  que  nos  primei- 
ros dias  sobretudo,  apresentam  muitas  vezes  plienomenos  de  ex- 
citação que  indicam  a  influencia  por  que  passou  o  organismo.  As 
manifestações  lymphaticas  e  escrofulosas  apparecem  em  alguns  in- 
dividues, e  não  é  raro  ver  alguns  accidentes  febris,  quer  passa- 
geiros, quer  tomando  o  typo  intermittente,  ou  ainda  erupções  anó- 
malas. Doenças  agudas  —  eminentes  já  sem  duvida  —  manifestam- 
se  algumas  vezes  de  repente  sob  esta  influencia. 

Para  os  tisicos  do  pulmão  ou  da  larynge  o  ar  do  mar,  segun- 
do a  opinião  dos  médicos  mais  distinctos,  é  sempre  nocivo. 


A  agua  do  mar,  como  bebida,  tem  sido,  infelizmente,  pouco 
explorada  até  hoje  pelos  clínicos  portuguezes.  O  mar  é  no  en- 
tanto considerado  como  constituindo  o  primeiro  typo  das  aguas  mi- 
neraes.  Nenhuma  outra  possue  a  mineralisação  mais  forte  nem  é 
mais  rica  em  chlorureto  de  soda. 

Eis  a  com.posição  chimica  da  agua  do  Atlântico,  segundo  a  ana- 
lyse  feita  na  bacia  de  Arcaclion  pelos  chimicos  francezes : 

AGUA  1  LITRO 

Chlorureto  de  soda 27,965  gram. 

»  de  magnesia 3,785      » 

»  de  calcium 0,325      » 

Odureto  e  bromureto indeterminados. 

Sulfato  de  magnesia 5,575  gram. 

»       de  cal 0,225      » 

))       de  soda 0,485      » 

Carbonato  de  cal  1  n  otc 

))  de  magnesia/  ' 

Matéria  orgânica  animalisada 0,052      » 


38,727      » 

As  aguas  do  mar  porém  não  teem  sempre  composição  idên- 
tica e  as  variantes  são  tanto  mais  sensíveis  quanto  mais  perto  da 
costa,  em  resultado  das  aguas  doces  dos  rios,  da  evaporação  in- 
cessante, das  correntes  que  se  estabelecem  no  fundo  do  mar  e 
dos  animaes  e  dos  vegetaes  que  o  habitam. 

A  agua  do  mar  para  uso  interno  pôde  applicar-se  como  me- 
dicamento alterante  e  como  medicamento  purgativo.  A  doze  laxan- 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  117 

te  é  de  dois  a  quatro  copos.  A  doze  alterante  é  muito  mais  fraca 
e  proporcionada  á  tolerância  do  estômago. 

Todos  os  grandes  médicos  allemães  insistem  nas  propriedades 
medicinaes  da  agua  do  mar  em  bebida  para  os  individuos  lymplia- 
ticos  e  escrofulosos.  Os  médicos  inglezes  applicam-a  principalmen- 
te como  laxante.  Vários  médicos  francezes,  entre  os  quaes  os  snrs. 
Gardet  e  Rocca  reconhecem  e  recommendam  as  propriedades  al- 
terantes  e  laxativas  da  agua  do  mar.  É  utilíssima  ás  creanças  ata- 
cadas de  vermes.  Os  auctores,  da  Ilj/drulogia  ineiUca,  d'oQde  cx- 
trahimos  alguns  d'estes  dados,  expõem  a  vantagem  de  introduzir  o 
acido  carbónico  na  agua  do  mar  com  o  fim  de  facilitar  o  seu  uso 
interno. 

A  agua  do  mar  pôde  ser  ainda  empregada  com  grande  utili- 
dade therapeutica  nos  usos  da  toilette  feminina  nas  enfermidades 
uterinas  e  em  outras  applicações. 


O  banho  pôde  ser  considerado  sob  dois  pontos  de  visla  diffe- 
rentes  como  agente  hydrotcrapico  e  como  banho  medicamentoso. 
A  acção  hydroterapica  domina  quando  a  duração  do  banho  é  mais 
curta  e  a  temperatura  mais  fria.  Produz-se  a  acção  medicamentosa 
quando  a  temperatura  é  mais  elevada  e  a  durarão  do  banho  mais 
longa  (três  quartos  d'hora).  Assim  o  banho  de  mar  apresenta  o  duplo 
caracter  hygienico  e  therapeutico. 

Pelo  lado  hygienico,  como  agente  hydroterapico,  o  banho  de 
mar  opera  como  qualquer  banho  frio,  e  é  indiíferente  para  o  que 
se  tem  em  vista  conseguir  banharrao-nos  no  mar,  no  rio,  ou  n'uma 
simples  banheira  com  agua  doce  no  nosso  quarto. 

Nas  doenças  em  que  é  contra-indicado  o  banho  frio,  nas  pes- 
soas atacadas  de  aíTecções  orgânicas  do  coração,  dispostas  a  con- 
gestões, a  rheumatismos  e  a  gotta,  o  banho  do  mar  com  as  con- 
dições physicas  e  chimicas  que  lhe  são  próprias  é  ainda  mais  noci- 
vo do  que  o  puro  bapho  frio. 

A  constituição  lymphatica,  a  infância,  o  sexo  feminino,  todos 
os  estados  pathologicos  que  se  ligam  ao  enfraquecimento  geral  do 
organismo,  á  insuíTiciencia  do  sangue,  á  depressão  do  systema  ner- 
voso, constituem  o  dominio  especial  do  banho  do  mar. 

Os  escrofulosos  e  os  nevrálgicos,  ordinariamente  mandados 
para  os  banhos  de  mar  como  para  um  curativo  supremo,  encontram 
n'elle  um  coadjuvante  precioso,  mas  não  um  remédio  decisivo. 


118  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 

N'estes  casos  um  tratamento  thermal  bem  dirigido  é  muito  mais 
profícuo,  principalmente  se  os  eífeitos  dos  banlios  sulpliureos  fo- 
rem fixados  em  seguida  cora  os  banhos  de  mar. 


Além  d'estas  principaes  applicapões  do  tratamento  marítimo, 
—  o  ar,  a  bebida,  o  banho  —  figuram  ainda  na  therapeutica  o  ba- 
nho de  areia,  utilissimo  às  creanpas,  o  banho  d' ar,  a  alimentação 
com  mariscos,  etc. 

Qualquer  que  seja  a  natureza  do  tratamento  adoptado,  é  pre- 
ciso não  esquecer  que  elle  será  sempre  poderosamente  auxiliado 
com  o  regimen  hygienico  seguido  na  escolha  dos  alimentos,  no 
exercício,  no  theor  de  vida,  na  regularidade  dos  hábitos,  etc. 

A  excitação  do  appetite  produzida  pelos  primeiros  banhes  è» 
pelo  ar  puro,  fresco  e  penetrante  do  mar,  junta  a  uma  certa  sonl- 
nolencia  e  fadiga,  que  acompanha  o  principio  do  tratamento,  pro- 
duzem quasi  invariavelmente  algum  incommodo  intestinal,  que  pôde 
comprometter  ou  retardar  a  cura  se  não  intervier  a  dieta.  Da  aU- 
mentação  do  banhista  devem  excluir-se  os  pratos  irritantes,  as  sub- 
stancias diíficeis  de  dirigir,  o  abuso  da  mostarda,  da  pimenta,  do 
café,  das  bebidas  alcoohcas. 

Os  almoços,  tão  usados  em  Portugal,  de  café  com  leite  e  pão 
com  manteiga,  são  uma  das  massas  mais  indigestas  e  mais  aff'ron- 
tantes  que  se  podem  ingerir  nos  estômagos.  Nada  torna  o  estô- 
mago mais  abarrotado,  o  cérebro  mais  espesso,  a  intelligencia  mais 
bronca,  a  actividade  mais  dormente.  O  bife  de  vitella  ou  a  cos- 
telleta  de  carneiro  grelhada,  os  ovos  quentes  e  uma  pequena  chá- 
vena de  chá  preto,  ou  simplesmente  o  bom  leite  fresco  constituem 
uma  alimentação  incomparavelmente  superior  à  do  café  com  leite 
e  do  pão  com  manteiga,  quatro  coisas  que  reunidas  constituem  uma 
broa,  que  pesa  muito  mais  do  que  alimenta. 

Ao  jantar  convém  um  regimen  pouco  animahsado.  De  carne 
de  boi  nunca  deve  haver  mais  de  um  prato.  São  preferíveis  as  car- 
nes brancas,  a  vitella,  a  gallinha,  o  perii,  a  sopa  d'hervas,  o  peixe 
fresco  com  manteiga  fresca  ou.  com  o  simples  molho  de  manteiga 
derretida  em  vinho  da  Madeira,  bons  legumes,  um  vinho  leve,  agua 
nevada,  ura  sorvete,  e  uma  laranja,  uma  bua  pêra,  ou  ura  cacho 
d'uvas. 

É  rauito  salutar  o  levantar  cedo,  passear  á  frescura  da  ma- 
nhã, beber  em  jejum  meio  copo  d'agua  fria. 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  119 


Se  apparece  alguma  perturbação  nas  funcções  do  organismo, 
deve  suspender-se  o  uso  do  banho  até  que  o  estado  normal  se  res- 
tabeleça. 

Se  fur  preciso  estimular  o  intestino,  a  melhor  medicina  será 
a  agua  do  mar  destemperada  com  egual  quantidade  de  agua  doce. 

Cumpre  advertir  que  para  todos  os  usos  internos  a  agua  do 
mar  não  deve  ser  colhida  senão  á  maior  distancia  da  costa,  quan- 
to seja  possível  ao  mar  largo. 


O  programma  domestico  da  vida  á  beira  mar  é  também  um 
ponto  essencial.  O  bom  Michelet  consagrou  a  este  assumpto  as  se- 
guintes linhas : 

«Temos  uma  senhora  nova,  doente,  ou  quasi  doente.  Atraves- 
sou difficultosamente  o  inverno,  a  primavera.  >'o  entanto  nenhu- 
ma lezão  grave.  Fraqueza,  anemia :  a  diíTiculdade  de  viver.  iMan- 
dam-a  para  o  mar  passar  o  verão.  Enorme  despeza  para  um  or- 
çamento medíocre.  Penoso  desarranjo  para  uma  dona  de  casa.  Du- 
ra separação  para  cônjuges  amigos.  Parlamenta-se.  Procura-se  sua- 
visar  a  sentença.  Não  bastaria  um  mez  ?  Mas  um  medico  sábio  in- 
siste, porque  entende  que  uma  temporada  extremamente  breve  é 
muitas  vezes  mais  nociva  que  proveitosa.  A  súbita  impressão  vio- 
lenta dos  banhos  sem  preparação  abala  as  saúdes  mais  robustas. 
Toda  a  pessoa  sensata  deve  aclimatar-se  primeiro,  respirar ;  o  mez 
de  junho  é  para  isso  excellente;  julho  e  agosto  para  os  banhos; 
setembro  e  algumas  vezes  outubro  descançam  dos  grandes  calo- 
res, suavisam  a  excitação  que  produziu  a  aspereza  salina,  conso- 
lidam os  resultados  e  preparam  pelos  seus  ventos  frescos  para  os 
frios  do  inverno.  Poucos  homens  estão  livres  todo  o  verão.  O  ma- 
rido poderá  quando  muito  ir  reunir-se  com  sua  mulher  durante 
um  mez  ou  dois,  em  agosto,  em  setembro.  Por  mais  disposto  que 
esteja  a  sacrificar-lhe  lodosos  interesses  secundários, — embeneíicio 
d'ella  mesma,  o  marido  deve  ficar.  Na  vida  do  homem  de  trabalho 
ha  cadeias  que  se  não  partem  sem  detrimento  da  família.  Portanto 
que  ella  parta  só.  Não  sabe  o  que  isso  é,  nunca  se  viu  sósinha. 
Iria  mais  confiada  se  acompanhasse  alguma  d'essas  faraihas  ricas 
que  vão  completas  e  reunidas,  marido,  mulher,  filhos,  creados. 
Se  ousasse  dar  a  minha  opinião,  eu  diria:  «Não!  que  parta  só.» 
A  companhia,  no  principio  alegre  e  agradável,  tem  muitas  vezes 
consequências  muito  differentes.  Incommodam-se  uns  aos  outros, 
malquistam-se,  voltam  inimigos,  ou  — o  que  ainda  é  peor  — voltam 


120  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 


amigos  de  mais.  A  desoccupação  do  tempo  dos  banhos  tem  immen- 
sas  vezes  resultados  imprevistos  que  se  deploram  por  toda  a  vida. 
O  menor  dos  inconvenientes,  não  pequeno  para  mim,  é  pessoas 
que,  separadas,  teriam  tido  mais  perfeitamente  o  sentimento  do 
mar  e  conservariam  d'elle  uma  boa  e  grande  impressão,  irem,  por 
ter  de  viver  juntas,  continuar  a  vida  de  cidade  (frivolidade,  vul- 
garidade, fingida  alegria,  etc.)  Quem  está  só  occupa-se  e  pensa. 
O  ajuntamento  murmura  e  maldiz.  As  amigas  ricas  e  mundanas 
arrastal-a-hão  aos  seus  divertimentos.  Terá  toda  a  agitação  de  uma 
existência  mais  turva  e  mais  anti-medical  que  a  que  passava  em 
Pariz.  Errará  completamente  o  alvo.  Reflicta  n'isto,  minha  senhora. 
Seja  corajosa  e  prudente.  É  n'uma  solidão  séria,  na  pequena  vida 
innocente  com  o  seu  filho,  vida  infantil,  se  assim  for  preciso,  mas 
pura,  nobre  e  poética,  é  em  tal  vida,  digo  eu,  que  se  dará  a  re- 
novação que  deseja.  Creia,  minha  senhora,  que  lhe  será  tomada 
em  conta  a  justiça  delicada  e  terna  que  a  faz  recear  o  prazer 
quando  outro,  ausente,  que  ficou  em  casa,  trabalha  ao  seu  canto 
para  a  família.  O  mar  amal-a-ha  mais,  se  fòr  o  seu  único  amigo,  e 
n'esse  repouso  lhe  prodigalisarà  o  seu  thesouro  de  vida  e  de  mo- 
cidade. O  filho  crescerá  como  umabella  arvore.  A  mãe  reflorirá  na 
graça  e  voltará  mais  nova  e  mais  adorada.» 

Para  prehencher  com  dignidade  e  com  sensatez  a  nobre  soli- 
dão aconselhada  por  .Michelet,  quantas  occupações  úteis,  elevadas, 
profundamente  moralisadoras !  Em  primeiro  logar  a  leitura,  não  a 
leitura  de  pobres  romances  enervantes,  que  dão  ao  espirito  a  triste 
nostalgia  da  commoção  sentimental  e  do  drama  burguez,  mas  a  lei- 
tura dos  bons  e  fortes  hvros  que  educam,  que  retemperam  o  co- 
ração e  o  caracter,  que  fortificam  o  espirito.  Os  do  próprio  Miche- 
let,  primeiro  que  todos :  as  suas  vulgarisações  dos  estudos  da  na- 
tureza e  os  seus  incomparáveis  trabalhos  de  historia,  de  uma  tão 
perfeita  execução  artística  que  basta  um  só  volume  da  Historia  de 
França  para  suscitar  no  leitor  todas  as  commoções  mais  nobres 
de  que  é  capaz  a  alma  humana.  Depois,  as  narrações  das  traba- 
lhosas viagens  aos  paizes  longínquos:  os  livros  do  barão  Hubner  e 
do  conde  Beauvoir.  Os  estudos  d'arte  de  Taine  e  de  Lady  Morgan. 
Além  das  leituras,  o  doce  trabalho  da  educação  dos  filhos  minis- 
trada nos  seus  jogos,  nos  seus  passatempos,  segundo  o  systema 
de  Froebel.  Finalmente  a  applicação  ao  desenho,  a  aquarella,  o  es- 
tudo das  conchas,  das  algas,  dos  peixes,  a  confecção  de  um  diário 
em  que  se  escreva  uma  pagina  por  noite,  não  com  a  narração  es- 
téril dos  actos  de  cada  hora,  mas  com  a  nota  predominante  e  sin- 
cera do  pensamento  em  cada  dia. 


AS  PRAIAS   DE  PORTUGAL  121 


A  primeira  obrigação  de  uma  pessoa  bem  educada,  antes  ainda 
de  saber  distrahir  os  outros,  é  saber  distrabir-se  a  si  mesma.  O 
espirito  do  uma  mulher  digna  e  sensata  deve  achar-se  na  sua  casa 
como  o  bom  amigo  Robinson  na  sua  ilha  deserta :  pronto  para  lu- 
ctar  com  o  immenso  inimigo  —  o  tédio;  e  preparado  para  prover 
cora  a  sua  invenção  e  com  a  sua  industria  a  satisfação  de  todas 
as  suas  necessidades.  Que  grande  prazer  triamphal  o  de  nos  poder- 
mos comparar  ao  valoroso  Robinson ! 

Nas  grandes  cidades,  as  relações  sociaes,  as  visitas,  os  cum- 
primentos, os  convites,  os  espectáculos,  os  bailes  collocam  frequen- 
temente o  nosso  espirito  como  fora  de  nós.  Á  força  de  nos  repar- 
tirmos pelos  outros,  dispersamo-nos  na  multidão,  perdemos  a  pos- 
se de  nós  mesmos.  Sentimo-nos  na  dissipação  dos  sentimentos  e 
das  ideias.  Faltanos  o  centro  moral.  Queremos  reconstituir  na  di- 
gnidade a  nossa  boa  e  feliz  vida  domestica,  e  aborrecemo-nos  na 
casa  de  que  nos  divorciamos.  Invade-nos  então  o  cançasso,  o  abor- 
recimento, o  splecn.  Não  se  sabe  o  que  se  ha  de  fazer !  Quem  não 
sabe  o  que  ha  de  fazer  adoece,  e,  se  com  a  doença  não  aprende 
mais  alguma  coisa,  morre,  porque  na  sabia  natureza  o  destino  de 
toda  a  coisa  inútil  é  desapparecer.  É  n'esta  crise  moral,  de  que 
procede  um  determinado  estado  pathologico,  que  os  médicos  re- 
ceitam o  mar,  como  um  tónico,  como  um  revulsivo,  como  um  se- 
dante,  como  um  reconstituinte.  Falta-lhes  dizer:  como  um  metho- 
do,  como  uma  disciplina,  como  uma  renovação  moral. 

Desgraçados  de  nós  se  na  praia,  na  pequena  casa  isolada  e 
tranquilla,  frente  a  frente  com  o  austero  oceano,  não  comprehen- 
demos  de  um  modo  novo,  por  algum  tempo  ao  menos,  o  dever, 
a  felicidade,  a  familia,  a  responsabiUdade  dos  nossos  actos,  o  nos- 
so grave  destino  de  creaturas  humanas! 

Desgraçados,  se  á  beira  do  mar,  onde  vamos  reconstituir  tanto 
o  organismo  como  o  systema  moral,  nós  prolongamos  os  hábitos 
frívolos  da  vida  sem  rumo,  de  ostentação,  de  leviandade  e  desor- 
dem, que  passamos  n'um  inverno  patusco,  ôco  e  despresivel,  sem 
a  moralisação  do  trabalho,  de  que  depende  a  posse  e  a  conside- 
ração de  nós  mesmos,  o  nosso  contentamento  intimo,  a  forte  e  fe- 
cunda alegria  moral,  a  saúde  no  corpo  e  a  fortaleza  na  alma,  os 
dois  phenomenos  correlativos  e  solidários  no  equihbrio  da  vida ! 


Tu,  pobre  mulher  do  povo,  perdòa-me  se  nas  prescripções 
que  tenho  exposto  acerca  do  tratamento  pelo  mar— precauções  de 


122  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

conforto,  alimentação,  viagens,  mudança  de  meio,  reorganisação 
da  vida  domestica,  etc. —  eu  me  esqueci  de  ti ! 

A  verdade  é  que  as  tuas  enfermidades  dispensam  melhor  os 
conselhos  que  as  das  senhoras  da  sociedade,  mais  débeis,  mais 
fracas,  mais  doentes,  e  no  fim  de  contas,  sob  o  ponto  de  vista  phy- 
siologico,  mais  desgraçadas  do  que  tu. 

Na  convenção  franceza,  quando  se  discutiu  a  creação  dos  mé- 
dicos especiaes  do  campo,  menos  habilitados  que  os  das  cidades, 
—  o  serviço  dos  officiaes  de  saúde — ,  objectou-se  que  similhante 
instituição,  distinguindo  as  habihtações  dos  que  tinham  de  curar 
os  pobres  e  de  curar  os  ricos,  era  anti-democratica  e  deshumana. 
Então  porém  uma  voz  illustre  expoz  este  profundo  principií) :  Que 
onde  a  vida  é  mais  simples  as  doenças  são  menos  complicadas. 

É  certo  que  cada  um  se  trata  segundo  os  seus  meios,  e  não 
segundo  os  seus  inales. 

Á  joven  tisica,  filha  do  abastado  capitalista  que  habita  um  pa- 
lácio, o  medico  aconselha  a  Madeira,  o  Cairo,  o  valle  de  Lima  no 
Peru,  a  dieta  de  gallinholas  e  de  vinho  velho  da  Bourgogne,  os 
passeios  sem  fadiga,  no  agasalho  das  pelles  de  marta  ou  de  raposa 
azul,  no  fundo  de  um  coupé  de  Binder,  suavemente  balançado  era 
flecha  e  oito  molas. 

Aqui  assim  á  visinha  do  meu  terceiro  andar,  filha  de  um  em- 
pregado com  oito  centos  mil  reis  de  ordenado,  o  mesmo  medico 
prescreve  unicamente  um  pouco  de  óleo  de  figados  de  bacalhau, 
o  bife  na  grelha,  o  vinho  de  Coitares,  a  mudança  d'ares  para 
Bemfica  e  um  ou  outro  passeio  ao  sol  com  um  chaile  nos  joelhos 
em  cima  de  um  jumento  manso. 

Subindo  mais  alguns  degraus,  chamado  para  ver  a  engomma- 
deira  de  camisas  ou  a  brochadora  de  livros  que  habita  nos  sótãos, 
sempre  o  mesmo  medico  aconselha  simplesmente  uma  camisola  de 
flanella,  um  copo^de  leite  e  mais  duas  horas  de  descanço  por  dia. 

O  resultado  de  todas  estas  differenças  na  cura  é  que  todas  as 
três  doentes,  a  do  primeiro  andar,  a  do  terceiro,  a  do-  sótão,  mor- 
rem aproximadamente  no  mesmo  praso  de  tempo. 

Assim  nos  banhos  de  mar,  emquanto  as  pessoas  ricas  plani- 
sam  uma  temporada  de  três  mezes,  tu,  se  habitas  o  campo,  che- 
gas á  Foz  ou  á  Povoa  de  Varzim  na  véspera  de  S.  Barlholoraeu, 
e  tomas  os  teus  trinta  banhos  em  três  dias. 

Bem  sei  que  não  podes  demorar-te  mais  tempo.  Tens  muito 
que  fazer  e  tens  muito  pouco  que  gastar.  A  única  coisa  que  eu  te 
aconselharia,  se  estas  linhas  te  podessem  alcançar,  a  ti  ou  ao  ci- 
rurgião da  tua  freguezia,  seria  que  nem  esse  pouco  tempo  nem 


AS  PIUIAS  DE  PORTUGAL  123 

esse  pouco  dinheiro  sacrificasses,  e  que,  em  vez  de  ir  banhar-te 
no  mar,  que  fica  longe,  íe  banhasses  simplesmente  no  rio  que  te 
passa  á  porta  de  casa. 

Tão  salutares,  Ião  hygienicos,  tão  pouco  usados  mfelizmcnte 
em  Portugal,  os  banhos  de  rio  podem  em  grande  numero  de  ca- 
sos substituir  vantajosamente  os  dispendiosos  banhos  do  mar. 

Se  a  nossa  humilde  voz  podesse  chegar  aos  ouvidos  das  ca- 
marás municipaes  dos  nossos  conselhos  ruraes,  pedir-lhes-hiamos 
que  consultassem  sobre  esta  questão  hydrotherapica  o  seu  cirur- 
gião de  partido  ou  o  seu  delegado  de  saúde,  e  que  em  beneficio 
dos  seus  munícipes  mandassem  construir  no  seu  rio  uma  pequena 
barraca  de  madeira  onde  podessem  gratuitamente  banhar-se  aquel- 
les  a  quem  o  facultativo  o  ordenasse. 

Aos  que  nem  rio  teem  resta-lhes  ainda  um  expediente  exces- 
sivamente bínefico  :  coUocarem-se  n'uma  pequena  banheira,  n'uma 
dorna,  n'um  simples  alguidar,  e  fazerem-se  despejar  pela  cabeça 
ou  sobre  o  dorso  alguns  litros  de  agua  fria.  Em  ultimo  recurso 
podem  ainda  percorrer  toda  a  superfície  da  pelle,  a  principiar  pela 
cabeça  com  uma  esponja  embebida  em  agua  fria,  ou  envolverem- 
se  por  um  momento  em  um  lençol  molhado  em  agua  doce  ou  em 
agua  salgada  com  uma  mão  cheia  do  sal  da  cosinha. 


PRECAUÇÕES  HYGIENICAS 


Com  relação  ao  banho  propriamente  dito,  as  principaes  pre- 
cauções aconseltiadas  pela  hygiene  referem-se  ao  que  importa  fa- 
zer—  antes  do  banho,  no  banho  e  dejjois  do  banho. 


Ao  ir  para  o  banho  deve-se  ter  em  vista  que  tenham  cessado 
completamente  os  trabalhos  da  digestão. 

A  escolha  da  hora  do  banho  depende  da  constituição  do  ba- 
nhista e  do  fim  physiologico  ou  therapeutico  que  se  deseja  conse- 
guir. 

Se  o  banhista  é  robusto  e  procura  apenas  no  banho  a  toni- 
ficação  da  agua  Ma  e  a  espécie  de  massagem  produzida  pelo  em- 
bate da  vaga,  a  sua  hora  mais  opportuna  é  de  manhã.  Para  as  pes- 
soas débeis  que  procuram  no  banho  os  eíTeitos  da  composição  chi- 
mica  da  agua  salgada  sobre  os  tecidos,  a  hora  mais  conveniente  é 
das  duas  horas  às  cinco  da  tarde,  quando  por  effeito  do  calor  a 
temperatura  do  mar  sobe  cinco  ou  seis  graus. 

O  uso  geralmente  seguido  de  ir  directamente  da  cama  para 
o  mar  esperando  na  praia  que  o  corpo  arrefeça,  é  essencialmente 
anti-hygienico. 

Como  já  dissemos,  baseados  na  auctoridade  dos  mais  abalisa- 
dos  especialistas,  a  pelle  deve  estar  quente  ao  entrar  na  agua,  e 
a  mesma  transpiração  não  só  não  é  nociva  mas  é  salutar. 

Um  certo  exercício  moderado,  um  pequeno  passeio  a  pé,  ao 
sol,  é  muito  útil.  O  que  mais  convém  evitar  não  é  o  contacto  da 
agua  com  o  corpo  quente,  é  o  contacto  do  ar.  As  constipações  con- 
traem-se  na  barraca  ao  despir,  ou  á  beira  da  agua  ao  esperar. 


126  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

Convirá  esperar,  quando  o  corpo  está  suado,  que  o  suor  se 
dissipe  para  entrar  na  agua? 

Os  auctores  da  Encyclopedia  das  Sciencias  medicas  respon- 
dem a  esta  pergunta  citando  o  exemplo  dos  gregos  e  dos  romanos 
que  costumavam  banhar-se  ainda  cobertos  de  suor  e  de  poeira, 
ao  sahirem  dos  gyranasios  em  que  se  formava  a  robusta  mocidade 
dos  dominadores  do  mundo,  acrescentam : 

«  O  uso  tão  frequente  dos  banlios  russos  e  dos  banhos  orien- 
taes,  as  praticas  da  liydroterapia  empirica  e  da  hydrotherapia  ra- 
cional demonstram  até  á  evidencia  que  a  immersão  em  agua  fria 
do  corpo  suado  não  tem  os  perigos  nem  os  inconvenientes  que  a 
rotina  tenaz  lhe  attribue.  Reduzindo  a  alguns  minutos  a  duração 
da  immersão  não  ha  inconvenientes  que  recear.  Não  succede  o 
mesmo  quando,  em  vez  de  proceder  em  conformidade  com  a  ver- 
dadeira hygiene,  se  segue  o  uso  deplorável  de  esperar  à  beira  do 
mar  que  o  suor  se  evapore.» 

É  importante  que  o  banhista  ao  chegar  á  barraca,  se  dispa 
com  a  máxima  rapidez,  enfie  um  calção  de  malha  de  lã,  se  envol- 
va n'uma  capa  ou  n'um  plaid  e  corra  immediatamente  para  a  agua, 
desembuçando-se  no  momento  da  immersão. 

As  senhoras  devem  usar  a  touca  de  gutta-percha  para  não 
molharem  o  cabello,  e  quando  não  tenham  a  touca  não  lhes  con- 
vém mergulhar  a  cabeça.  Basta-lhes  refrescar  repetidamente  a  fron- 
te e  o  alto  do  craneo  com  a  mão  molhada  durante  o  tempo  que 
estiverem  na  agua.  Os  longos  cabellos  molhados  com  agua  salgada 
produzem  mais  males  do  que  aquelles  que  o  banho  é  destinado  a 
combater.  iMolhados  os  cabellos  no  mar  por  qualquer  incidente, 
convirá  às  senhoras  laval-os  em  seguida  em  agua  doce  com  um 
bom  sabonete  até  restabelecer  o  aceio  indispensável  á  hygiene  da 
pelle. 


No  banho  a  immersão  deve  ser  súbita  e  não  entrando  na 
agua  progressivamente,  o  que  faz  refluir  o  sangue  das  extremida- 
des inferiores  para  o  peito  e  para  a  cabeça. 

É  prejudiciahssima  durante  o  banho  a  immobilidade  do  corpo. 
Todos  os  membros  devem  estar  em  movimento  durante  a  immer- 
são. A  natação  é  n'este  caso  um  exercido  da  maior  vantagem. 
Esta  espécie  de  gymnastica  é  particularmente  útil  às  creanças  af- 
fectadas  de  rachitismo,  de  enfraquecimento  de  espinha.  Nenhum 
outro  exercício  contribuo  mais  eíficazmente  do  que  a  natação  feita 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  I27 


de  bruços  para  robustecer  os  músculos  do  pescoço  e  a  columna 
vertebral. 

A  duração  do  banho  depende  da  temperatura  da  agua,  da 
força  da  onda,  e  da  constituição  do  banhista. 

Com  o  mar  chão  e  a  agua  aquecida  pelo  sol  da  tarde  o  ba- 
nho pode  prolongar-se  muito  mais  do  que  na  maré  enchente  e  du- 
rante o  frio  da  manhã.  Dez  minutos  bastam  ás  pessoas  fracas  cuja 
reacção  se  estabelece  lentamente.  As  pessoas  fortemente  constituí- 
das e  as  creanças  que  sabem  nadar  podem  demorar-se  na  agua 
vinte  ou  trinta  minutos. 

Ao  penetrar  na  agua  sente-se  um  estremecimento,  um  calafrio 
geral.  Depois  d'isso  a  circulação  restabelece-se  rapidamente  e  pro- 
duz-se  uma  sensação  agradável.  Se  o  banho  se  prolonga  demasia- 
damente o  primeiro  calafrio  repete-se.  É  o  signal  intimativo  para 
sahir  immediatamente.  A  approximação  d'este  calafrio  presente-se 
perfeitamente  n'um  principio  de  perturbação  no  estado  geral.  Con- 
vém não  esperar  que  o  estremecimento  se  de. 

Aos  que  se  demoram  demasiadamente  na  agua,  a  despeito  do 
aviso  acima  indicado,  o  rosto  cobre-se  d'uma  pallidez  livida,  o 
corpo  arrefece,  as  veias  desvanecem-se,  os  pés  e  as  mãos  tornam- 
se  dormentes ;  sente-se  peso  de  cabeça  e  mal  estar.  Algumas  ve- 
zes apparecem  na  pelle  manchas  roxas  symptomaticas  da  insuífi- 
ciencia  da  circulação  capillar.  Do  refluxo  do  sangue  ao  peito  e  ao 
cérebro  pôde  n'este  caso  resultar  a  congestão.  Os  soccorros  para 
esse  estado  são  as  fricções  immediatas  e  o  banho  aos  pés  em  agua 
quente. 


Depois  do  banho  deve  ser  o  corpo  rapidamente  friccionado 
com  um  lençol  áspero  até  dar  á  pelle  uma  cur  rosada. 

Comer  immediatamente  depois  do  banho,  no  periodo  da  reac- 
ção, é  inconveniente.  O  mais  salutar  depois  do  banho  é  um  exer- 
cio  moderado,  um  passeio  a  pé,  de  meia  hora,  na  praia  debaixo  de 
um  chapéu  de  sol,  com  o  cabello  solto  como  usam  as  senhoras  nas 
praias  da  Allemanha. 


SOCCORROS  AOS  AFOGADOS 


Era  todas  as  praias  de  l)anhos  os  soccorros  a  ministrar  aos 
afogados  deveriam  ser  conhecidos  de  toda  a  gente:  banhistas,  ba- 
nheiros, curiosos,  touristes,  etc.  A  eíTicacia  dos  meios  empregados 
para  chamar  á  vida  os  asphpiados  por  submersão  depende  muitas 
vezes  da  rapidez  da  apphcação.  É  um  dever  de  humanidade  achar- 
se  cada  um  habilitado  para  poder  n'esses  casos  acudir  de  pronto 
ao  seu  similhante. 

A  morte  por  submersão  ataca  um  ou  outro  dos  seguintes  ór- 
gãos: o  cérebro,  o  coração,  ou  o  jnilmão. 


Quando  a  asphyxia  actua  no  cérebro,  os  sjTuptomas  que  o  afo- 
gado apresenta  são  os  seguintes:  a  face  injectada;  hvidos  os  con- 
tornos dos  olhos  e  da  boca;  os  beiços  inchados;  as  pupillas  dila- 
tadas ;  a  pelle  da  testa  e  os  lábios  roxos.  Não  apparece  espuma  na 
boca. 

N'este  caso  dá-se  a  apoplexia  cerebral.  É  a  consequência  mais 
grave  da  asphyxia.  Dois  ou  três  minutos  bastam  para  converter  a 
morte  apparente  em  morte  real.  O  único  remédio  immediato  é  ope- 
rar a  sangria  em  ambos  os  braços  ou  nas  veias  jugulares. 


Quando  o  coração  é  o  órgão  lesado,  como  ordinariamente  suc- 
cede,  principalmente  ás  pessoas  nervosas  no  momento  da  submer- 
são, os  signaes  característicos  d'esta  espécie  de  lesão  são  os  se- 
guintes :  a  face  pallida ;  o  nariz  aífdado ;  os  olhos  desmaiados ;  as 

9 


130  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

pálpebras  cerradas ;  os  lábios  descorados.  As  feições  estão  perfei- 
tamente tranquillas,  o  individuo  parece  dormir.  Os  primeiros  soc- 
corros  n'este  caso,  o  menos  grave  que  pôde  apresentar  a  asphyxia, 
consistem  no  seguinte: 

Deitar  o  afogado  sobre  a  areia,  ao  sol,  ou  n'um  quarto  bem 
quente,  collocando-o  estendido  e  com  a  cabeça  mais  alta  que  a  li- 
nha do  corpo;  abrir-lhe  a  boca  e  ingerir-lhe  algumas  colheres  de 
vinho  do  Porto  ou  d'outro  qualquer  licor  espirituoso;  friccionar-lhe 
o  peito  e  o  epigastro  e  fazer-lhe  respirar  ammoniaco ;  escaldar  ou 
queimar  a  pelle  sobre  a  região  do  coração  por  meio  de  um  ferro 
de  engommar,  de  compressas  de  ammoniaco  concentrado,  ou  em 
uma  boneca  de  estopa  ou  de  algodão  em  chamma.  Quando  a  colo- 
riflcação  se  não  estabelece  por  estes  meios  submelte-se  o  afogado 
a  um  banho  quente,  cuja  temperatura  se  pôde  elevar  até  38  graus 
centígrados. 


ti 


Quando  é  nos  órgãos  respiratórios  que  a  lezão  apparece,  eis 
os  indicies  d'ella: 

Faces  injectadas;  entumescencia  dos  lábios;  ecchymoses  no 
peito,  no  pescoço  e  nos  braços ;  olhos  fechados ;  a  pupilla  envidra- 
çada; mucosidades  espumosas  na  boca  e  na  larynge. 

Applicações:  Além  da  sangria  abundante,  que  é  o  mais  es- 
sencial dos  soccorros,  fricções  em  todo  o  corpo;  insuíílação  d'ar 
pela  boca;  provocação  do  espirro  ou  do  vomito  por  meio  da  rama 
de  uma  penna;  um  clister  irritante;  um  frasco  de  ammoniaco  ao 
nariz. 


Seria  extremamente  útil  que  estas,  ou  outras  indicações  da 
sciencia  tendentes  ao  mesmo  fim,  succinta  e  claramente  formula- 
das de  modo  que  podessem  ser  facilmente  comprehendidas  e  de- 
coradas por  toda  a  gente,  fossem  expostas  ao  publico  em  cartaz, 
ensinadas  nas  escolas  e  lidas  pelos  padres  á  hora  da  missa,  em 
todas  as  povoações  de  pesca  e  de  banhos.  Innumeros  casos  de 
asphyxia  por  submersão  produzem  a  morte  unicamente  pela  igno- 
rância dos  meios  com  que  se  combatem  as  primeiras  perturbações 
manifestadas  no  organismo  dos  que  permaneceram  por  algum  tem- 
po debaixo  d'agua. 


RECONSTITUIÇÃO 

DOS  TEMPERAMENTOS  E  DOS   CARACTERES 

PELO  BANHO  FRIO 

(CONSELHOS  ÁS  MÃES) 


Não  terminarei  este  livro,  simples  applicapao  aos  elegantes  de- 
senhos do  snr.  Emilio  Pimentel,  de  algumas  das  minhas  mais  ale- 
gres recordações  de  viagem  no  litoral  portuguez,  sem  cumprir  um 
dever  de  consciência  para  todo  o  escriptor  honrado  —  pôr  na  sua 
obra  uma  pagina  útil. 

A  successiva  degradação  da  nossa  espécie  é  um  facto  notado 
em  Portugal  por  todos  os  physiologistas,  por  todos  os  pedagogos, 
por  todos  os  mestres  de  creanças. 

As  gerações  que  frequentam  as  escolas  deperecem  de  anno 
para  anno.  Os  alumnos  são  cada  vez  mais  débeis,  mais  fracos,  com 
menos  força  de  musculo  e  de  cérebro. 

As  condições  profundamente  insalubres  da  vida  moderna  tor- 
nam cada  vez  mais  necessária  a  forte  resistência  pela  hygiene. 

A  anemia  e  o  lymphatismo  converteram-se  n'um  mal  quasi 
geral  nas  creanças  portuguezas,  e  especialmente  nas  creanças  de 
Lisboa,  onde  a  agglomeração  dos  habitantes,  a  construcção  infecta 
da  maior  parte  dos  prédios,  a  alimentação  insuíTiciente  ou  mal  es- 
colhida, a  ignorância  quasi  absoluta  das  mais  rudimentares  noções 
de  hygiene,  determinam  uma  prodigiosa  quantidade  de  doenças, 
que  mudam  de  nomes  mas  não  mudam  de  intensidade  em  cada 
estação  do  anno. 

Carecemos  quasi  completamente  de  hygiene  publica:  os  canos 
não  téem  agua,  os  theatros  não  téem  ventilação,  as  casas  não  téem 
water-closet;  não  ha  lavadouros,  não  ha  banhos  públicos  de  rio, 
gratuitos  ou  quasi  gratuitos. 

Mas  falta-nos  ainda  mais  a  hygiene  particular  do  que  a  hy- 
giene publica.  E  é  da  hygiene  particular  que  é  preciso  partir  a 
iniciativa  da  grande  renovação. 


132  AS  PRAIAS  DE   PORTUGAL 


As  mães  de  família  podem  n'este  caso  prestar  á  humanidade, 
á  civilisação,  ao  futuro,  o  mais  relevante  serviço.  Este  serviço  con- 
siste em  robustecerem  os  seus  filhos. 

O  banho  de  mar  é  de  certo  para  esse  flm  um  poderoso  agente. 
Michelet  esperava  do  mar  a  revivescência,  a  regeneração  humana. 
Em  Portugal  todos  os  médicos  aconselham  sabiamente  o  mar  a  to- 
das as  pobres  creanças  portuguezas,  tão  descoradas,  tão  abatidas, 
tão  debihtadas. 

O  mar  porém  frequentado  por  dois  ou  três  mezes  no  anno 
não  constitue  senão  uma  medicação  passageira,  quando  o  que  se 
deve  ter  em  vista  é  o  emprego  de  um  modificador  permanente  do 
organismo. 

Esse  modificador  é  o  banho  frio  quotidiano,  em  todas  as  esta- 
ções do  anno,  desde  o  primeiro  dia  da  primavera  até  o  ultimo  dia 
do  inverno. 

Se  para  principiar  o  regime  do  banho  frio  fosse  precisa  algu- 
ma preparação,  aliás  inútil,  o  banho  de  mar  teria  prehenchido  esse 
fim.  Ao  ultimo  banho  de  mar  deve  pois  seguir-se  o  banho  duce  de 
agua  fria  em  cada  dia  e  para  todo  sempre. 

Os  que  se  reportam  á  experiência  dos  antigos  para  combate- 
rem o  uso  dos  banhos  frios,  ignoram  a  historia  da  hygiene,  e  fun- 
dam-se  apenas  no  exemplo  de  algum  dos  seus  avós,  mais  illustre 
pelas  virtudes  domesticas  do  que  pelo  aceio  pessoal.  Na  antigui- 
dade instruída  o  banho  frio  foi  sempre  considerado  como  um  dos 
principaes  elementos  da  saúde.  Phnio  diz :  «Tão  bem  se  deram  em 
Roma  com  o  uso  dos  banhos,  que  não  houve  outra  medicina  du- 
rante seiscentos  annos.» 

O  banho  chamado  tépido,  tão  geralmente  usado,  é  extrema- 
mente perigoso  e  anti-hygienico.  O  professor  Lacassagne,  um  dos 
mais  distinctos  hygienisías,  diz  a  este  respeito:  «Se  o  banho  té- 
pido alcança  um  alivio  passageiro  e  um  instante  de  pausa,  aug- 
menta  por  outro  lado  a  excitação  do  systema  nervoso  produzindo 
uma  diminuição  progressiva  das  funcções  da  pelle  e  o  enfraque- 
cimento do  systema  muscular.  As  pessoas  com  saúde  devem  abso- 
lutamiCnte  evitar  a  acção  iminentemente  excitante  e  debilitante  do 
banho  quente,  o  qual  pôde  além  d'isso  provocar  as  congestões  e 
as  hemorrhagias.» 

O  grande  medico  Fleury,  cuja  competência  n'esta  especialida- 
de é  considerada  como  indiscutível  por  todos  os  homens  da  scien- 
cia,  diz  o  seguinte : 

«  As  aíTusÕes,  as  immersões,  os  douches,  os  banhos  frios  (de 
mar,  de  rio,  de  tina)  podem  ser  empregados  sem  o  menor  perigo 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  133 


com  tanto  que  a  duração  d'elles  não  exceda  a  reacção  expontâ- 
nea e  que  o  corpo  esteja  suado,  quer  o  suor  se  ache  no  principio, 
quer  tenha  alguma  duração  e  uma  grande  abundância,  quer  haja 
sido  provocado  pelo  exercido  muscular,  quer  por  outro  meio  arti- 
ficial como  o  abafo^  o  vapor,  etc.  N'estas  condipões,  não  somente 
as  applicações  Mas  não  são  em  caso  algum  seguidas  do  mais  leve 
incidente,  mas  apresentam  vantagens  preciosas.  Terminam  brus- 
camente a  transpiração  e  livram  os  indivíduos  do  calor  incommo- 
do,  fazendo-lhes  experimentar  uma  sensação  extremamente  agra- 
dável; põem  ao  abrigo  dos  accidentes  resultantes  do  contacto  de 
um  ar  frio  com  o  corpo  suado ;  exercem  finalmente  na  pelle  e  em 
toda  a  economia  uma  acção  tónica  utilíssima. » 

No  magnifico  Diccionario  Encyclopedico  das  sciencias  medi- 
cas, publicado  em  Paris  em  1871,  sob  a  direcção  do  snr.  Decham- 
bre,  com  a  coUaboração  dos  primeiros  médicos,  Ic-se  a  respeito 
do  banho  frio : 

«  O  uso  habitual  e  quotidiano  do  banho  frio  exerce  na  saúde 
a  mais  feliz  influencia.  A  pelle  tonifica-se,  aviva-se,  conserva  a 
sua  frescura  e  a  sua  agilidade  ou  recupera-as  quando  perdidas, 
Cilam-se  mulheres  que  devem  em  parte  ao  habito  dos  banhos  frios 
a  conservação  até  uma  idade  avançada  dos  attributos  da  mocida- 
de e  da  belleza.  O  tegumento  externo  torna-se  egualmente  menos 
impressionavel  ao  calor  e  ao  frio.  No  verão  o  banho  frio  modera 
a  transpiração,  previne  a  debilitação  que  se  segue  á  secreção  abun- 
dante do  suor.  No  inverno  corrige  a  disposição  que  teem  algumas 
pessoas  para  contrair  anginas  e  bronchites.  O  systema  muscu- 
lar ganha  força  e  energia,  sustenta  sem  fadiga  ao  cabo  de  um 
certo  tempo  exercidos  de  que  anteriormente  não  era  capaz.  O  ap- 
petite  torna-se  mais  vivo  e  as  digestões  mais  fáceis ;  as  funcções 
intestinaes  regularisam-se,  a  assimilação,  a  nutricção,  a  absorção 
intertiscial  activam-se  de  modo  que  as  pessoas  obesas  perdem  o 
excesso  da  gordura  e  os  magros  engordam.  A  innervação  geral 
modifica-se  do  modo  mais  feliz,  o  somno  torna-se  mais  profundo  e 
mais  reparador.  A  actividade  do  corpo  e  do  espirito  redobra :  sen- 
timo-nos  com  mais  aptidão  para  o  trabalho;  experimentamos  final- 
mente um  sentimento  geral  de  força  e  de  bem-estar  physico,  in- 
tellectual  e  moral,  que  resulta  do  equilíbrio  dos  órgãos  c  da  har- 
monia das  funcções.  Gollocando-nos  unicamente  no  ponto  de  vista 
da  pura  hygiene,  podemos  dizer  que  o  banho  frio,  cuja  tempera- 
tura e  duração  forem  proporcionadas  á  sensibilidade  nervosa  e  á 
força  da  reacção  dos  indivíduos,  convém  geralmente  ás  pessoas  de 
qualquer  sexo,  de  qualquer  temperamento,  de  qualquer  constitui- 


134  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

ção.  Os  auctores  que,  a  exemplo  de  Galiano,  quizeram  proscrever 
o  banho  frio  nas  duas  edades  extremas  da  vida,  na  infância  e  na 
veiliice,  emmitiram  opiniões  demasiadamente  absolutas.  Quando  se 
sabe  proporcionar  a  temperatura  do  liquido  e  a  duração  da  appli- 
cayão  à  faculdade  de  calorificação  do  individuo,  as  applicações  da 
agua  fria,  longe  de  serem  nocivas  ás  creanças  e  aos  velhos,  são 
pelo  contrario  extremamente  vantajosas  É  então  sobretudo  que  é 
preciso  ter  em  vista  o  preceito  que  consagra  a  necessidade  das 
applicações  frias  de  curta  duração  e  o  ar  quente.  A  experiência 
prova  que  n'estas  condições  as  creanças  e  os  velhos,  preparados 
por  applicações  graduadas  e  calculadas  de  agua  fria,  podem,  tanto 
como  os  novos  e  como  os  adultos,  aproveitar  os  excedentes  effei- 
tos  do  banho  frio.  Tem-se  dito  que  o  uso  dos  banhos  frios  endure- 
cia a  pelle  das  creanças,  o  que  tornava  diílicil  a  erupção  dos  exan- 
themas  tão  frequentes  n'essa  edade  da  vida.  Egualmente  se  tem 
dito  que  as  depurações  cutâneas  a  que  são  sujeitos  os  meninos  e 
os  velhos  podiam  ser  impedidas  pelo  banho  frio,  d'onde  a  possi- 
bilidade de  retrocessòes  ou  de  repercussões  perigosas  nos  órgãos 
internos.  Tem-se  dito  finalmente  que  a  agua  fria  tem  por  elTeito 
supprimir  certas  secreções  da  pelle,  taes  como  o  suor  fétido,  e  tem- 
se  visto  n'essa  suppressão  um  perigo  para  o  organismo.  Esses  re- 
ceios, reflexos  de  doutrinas  humoraes  antigas,  nunca  se  nos  figu- 
raram baseados  em  factos  bem  observados,  ou,  pelos  menos,  os 
factos  citados  soffrem  interpretaçõ:"!S  diíTerentes.  É  mais  o  racioci- 
nio  do  que  a  experiência,  que  dá  curso  a  essas  opiniões.  Em  pri- 
meiro logar  a  agua  fria  não  endurece  a  pelle,  pelo  contrario  raan- 
tem-lhe  a  elasticidade  e  a  permeabilidade.  Nada  prova  que  o  seu 
uso  habitual  crie  um  obstáculo  serio  á  erupção  dos  exanthemas 
próprios  da  infância.  Se  o  banho  frio,  graças  á  alternativa  das  ac- 
ções e  reações  de  que  a  pelle  é  a  sede,  tem  por  eíTeito  regulari- 
sar  e  facilitar  as  funcções  d'este  órgão,  não  vemos  como  empeça 
as  depurações  cutâneas  das  creanças  e  dos  velhos.  Finalmente,  em 
quanto  ao  suor  fétido,  muitas  vezes  devido  à  falta  de  aceio,  o  úni- 
co mal  que  o  banho  frio  poderia  n'este  caso  produzir  seria  sup- 
primir o  mau  cheiro. . .  com  grande  vantagem  dos  que  padecem 
essa  secreção  viciosa  e  dos  que  vivem  com  elles.  Os  mesmos  pre- 
conceitos que  teem  feito  prohibir  os  banhos  frios  ás  creanças  e  aos 
velhos  levaram  egualmente  a  prohibil-os  ás  mulheres  durante  os 
seus  prasos  críticos  e  durante  a  gravidez.  Temeu-se  no  primeiro 
caso  a  suspensão  do  fluxo,  e  no  segundo  o  aborto.  A  hydrothera- 
pia  moderna  mostrou  a  falta  de  fundamento  d'esses  receios.  Tem- 
se  visto  mulheres  em  ambos  esses  casos  supportarem  o  banho  frio 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  135 


sem  o  minimo  inconveniente.  Em  quanto  á  gravidez  o  banho  frio 
é,  pelo  contrario,  o  melhor  meio  de  curar  a  maior  parte  das  doen- 
ças produzidas  pelo  estado  de  gestação,  taes  como  a  dyspepsia, 
os  vómitos,  a  chloro-anemia,  o  nervosismo,  etc,  e  de  levar  a  bom 
termo  a  obra  tão  laboriosa  e  tão  accidentada  da  natureza.» 

O  mesmo  Fleury  no  seu  magnifico  Tratado  Therapeutico  e 
Clinico  depois  de  descrever  vários  casos  de  creanças  cujos  tem- 
peramentos lymphaticos  foram  convertidos  em  temperamentos  san- 
guineos  pelo  uso  systematico  do  banho  frio,  acrescenta: 

«  Poderiamos  produzir  cincoenta  observações  d'este  género ; 
basta-nos  dizer  que  a  hydrotherapia  (tratamento  pela  agua  fria) 
opera  nas  creanças  uma  verdadeira  transformação.  Se  agora  con- 
siderarm.os,  por  um  lado,  quanto  importa  na  medicina  da  infância 
modlQcar  o  temperamento  lymphatico  quer  cm  vista  do  presente, 
quer  sobretudo  em  vista  do  futuro,  e  por  outro  lado  attentarmos 
em  quanto  são  insufficientes,  incertos,  ineíficazes,  de  uma  appli- 
cação  tão  longa  e  difficil,  os  meios  de  que  o  medico  dispõe  para 
obter  esse  resultado,  reconheceremos  que  as  observações  prece- 
dentes offerecem  um  grande  interesse  e  attestam  em  favor  dos  ba- 
nhos frios  um  poder  que  em  vão  se  procuraria  em  qualquer  ou- 
tro modificador.  Qual  é  o  agente  hygienico  e  pharmaceutico  com 
cujo  auxilio  seja  possível  modificar  profundamente  o  temperamento 
lymphatico  dentro  d'alguns  mezes,  fazendo  desapparecer  todos  os 
seus  caracteres  dentro  de  um  ou  dois  annos?  Desenvolver,  crear 
n'uma  creança  o  temperamento  sanguíneo,  é  prevenir  as  aíTecções 
escrofulosas,  favorecer  o  desenvolvimento  physico  e  intellectual, 
faciUtar  o  estabelecimento  da  puberdade,  aíTastar  as  causas  mais 
numerosas  e  mais  frequentes  das  moléstias  nervosas,  hysterismo, 
epilepsia,  chorêa,  nevralgia,  etc,  a  chlorose  finalmente  e  o  aborto. 
É  regenerar  a  espécie  humana.  » 

Referindo-se  em  outro  ponto  á  instituição  das  applicações  frias 
na  hygiene  das  mulheres,  o  mesmo  professor  diz: 

"«A  enorme  frequência  da  chlorose,  da  anemia,  do  hysterismo, 
das  nevroses,  das  nevralgias,  das  gastralgias,  das  enfermidades  ner- 
vosas de  toda  a  espécie,  das  palpitações,  dos  abortos  da  febre  puer- 
peral,  as  deslocações  e  os  engorgitamentos  do  útero,  é  unicamente 
devida  ao  esquecimento  de  todas  as  regras  de  uma  boa  hygiene. 
Encerradas  em  quartos  hermeticamente  fechados,  sobrecarregados 
de  moveis,  de  tapetes,  de  cortinas,  de  quadros,  de  reposteiros, 
n'uma  atmosphera  secca  e  viciada,  fazendo  do  dia  noite  e  da  noite 
dia ;  debihtando-se  nas  vigílias,  nos  bailes,  nos  espectáculos,  onde 
permanecem  por  muitas  horas  expostas  á  acção  deletéria  de  um 


136  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 


ar  confinado,  alterado  pelos  candieiros,  pela  respiração,  pelas  ema- 
nações de  um  numero  d'homens  vinte  vezes  mais  considerável  do 
que  comporta  o  espaço  que  os  encerra;  expostas  ás  influencias  de 
mil  causas  debilitantes,  que  fazem  as  mulheres  da  sociedade  para 
contrabalançar  a  acção  de  um  tão  grande  numero  de  agentes  mor- 
bigenas?  Condemnam  o  seu  systema  muscular  a  uma  inércia  quasi 
absoluta;  não  se  permittem  mais  que  uma  alimentação  insuffi- 
ciente  e  mal  escolhida;  abusam  até  o  extremo  excesso  dos  ba- 
nhos mornos,  de  todas  as  apphcações  da  agua  morna  á  toilette, 
dos  emolientes,  dos  debilitantes.  Parece  terem-se  finalmente  encar- 
regado de  favorecer  as  causas  de  todas  as  doenças  que  as  amea- 
çam. Estou  intimamente  convencido  que  a  agua  fria  substituída  á 
agua  morna  daria  vantagens  consideráveis  e  traria  uma  mudança 
feliz  a  ura  estado  de  coisas  que  compromette  não  só  a  saúde  das 
mulheres  e  a  sua  felicidade  domestica  mas  ainda  a  sorte  das  ge- 
rações futuras.  Em  resumo:  muito  é  para  desejar  que,  conforme 
ao  uso  estabelecido  na  Inglaterra,  na  Allemanha  e  na  America,  as 
abluções  de  agua  fria  se  introduzam  em  França  nos  hábitos  quoti- 
dianos da  hygiene  privada.  -» 

De  uma  informação  oíTicial  acerca  do  estado  da  educação  na 
Grã-Bretanha,  publicada  em  1861,  deduz-se  que  os  alumnos  cue 
passam  apenas  algumas  horas  nas  classes. e  empregam  uma  egual 
parte  de  tempo  em  exercidos  gymnasticos  fundados  nas  escolas  fazem 
mais  rápidos  progressos  do  que  aquelles  que  passam  todo  o  dia 
amadorrados  sobre  o  livro.  O  snr.  Esquiros,  em  um  artigo  pu- 
blicado na  Revista  dos  Dois  Mundos  calcula  que  as  forças  produ- 
zidas por  esse  .systema  de  diversão  equivalem  pela  producção  de 
trabalho  ao  augraento  de  um  quinto  na  população  britânica.  Em 
1864  um  professor  belga,  Van  Esschen,  em  um  relatório  dirigido 
ao  ministro  da  guerra  em  Bruxellas,  analysando  os  factos  relativos 
á  introducção  da  gymnastica  nas  escolas  inglezas  diz : 

«  Os  exercícios  gymnasticos  são  voluntários,  exigem  uma  certa 
força  physica,  absorvem  um  tempo  extremamente  considerável  e 
apresentam  mais  de  um  perigo.  Quaes  são  as  creanças  que  mais  im- 
porta fortificar?  São  essas  creaturinhas  enfesadas,  friorentas,  de  faces 
pallidas  e  descoradas,  de  membros  frágeis,  de  inteUigencia  precoce 
e  ardente,  em  que  as  faculdades  do  entendimento  parece  absorve- 
rem todas  as  forças  do  organismo.  Ora  esses  meninos  odeiam  os 
exercícios  corpóreos,  são  demasiado  fracos  para  se  entregarem  a 
elles.  Teriam  de  ser  violentados,  e  o  único  fructo  d 'essa  violência 
seria  uma  fadiga  excessiva;  os  gostos  das  creanças  débeis  cha- 
mam-as  para  as  recreações  menos  violentas;  preferem  a  conversa- 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  137 


ção,  a  leitura,  chegam  algumas  vezes  a  divertirem-se  instruindo-se; 
finalmente,  como  lêem  o  sentimento  da  sua  fragilidade,  receiam  o 
exforço  e  o  grande  movimento.  A  gymnastica  é  pois  insuíRciente 
para  alcançar  o  fim  proposto.  Precisa-se  de  um  agente  de  applica- 
ção  geral  e  fácil  que  fortifique  todas  as  constituições  mas  princi- 
palmente as  que  são  débeis  e  anemicas,  cujo  uso  possa  ser  pres- 
cripto  regulamentarmente,  que  não  oífereça  nem  perigo  nem  in- 
conveniente e  cuja  efficacia  ninguém  possa  contestar.  Esse  agente 
é  a  agua  fria  administrada  de  modo  que  não  preste  senão  os  seus 
eíTeitos  estimulantes;  esse  agente  é  o  douche  geral  de  agua  fria. 
Sob  a  influencia  d'essa  ablução  quotidiana  vé-se  a  pelle  animar-se 
rapidamente,  colorir-se  pelo  impulso  notável  da  circulação  capil- 
lar.  Um  sangue  vivo  e  vermelho  vem  vivificar  essa  vasta  superfí- 
cie em  que  se  produzem  phenomenos  tão  importantes  da  vida  ve- 
getativa. A  actividade  funccional  do  invólucro  cutâneo  e  a  regula- 
risação  da  circulação  arrastam,  como  consequências  infalliveis,  uma 
assimilação  mais  complecta,  uma  melhor  nutrição,  e  por  conse- 
guinte, uma  digestão  mais  perfeita  e  um  appetite  mais  pronun- 
ciado. )) 

O  fim  do  professor  Van  Esschen  era  estabelecer  douches  e  tor- 
nar o  banho  frio  obrigatório  para  todos  os  alumnos  da  escola  mi- 
litar de  Alost.  Os  argumentos  poderosos  do  extenso  relatório  do  il- 
lustre  professor  levaram  o  governo  belga  a  decretar  o  banho  frio. 
O  serviço  das  abluções  em  Alost  foi  montado  sob  a  direcção  do  es- 
pecialista francez  Fleury  chamado  pelo  governo  de  Bruxellas  para 
esse  fim. 

Jules  Simon,  o  grande  erudito,  o  profundo  reformador,  um 
sábio,  um  velho,  sendo  ministro  da  instrucção  pubhca  em  França 
depois  da  guerra  da  Prússia,  fazendo  um  livro  sobre  a  reforma  do 
ensino  e  da  educação,  achando-se  rodeado  das  instrucções  e  dos 
conselhos  dos  primeiros  médicos  e  dos  primeiros  hygienistas  mo- 
dernos, escrevia  a  respeito  do  banho  frio  a  seguinte  pagina : 

«As  abluções  quotidianas  por  todo  o  corpo,  com  agua  fria  e 
uma  esponja  são  um  habito  inglez  que  do  coUegio  deveria  passar 
ao  uso  de  cada  dia,  porque,  se  é  um  pouco  desagradável  no  pri- 
meiro mez  torna-se  no  segundo  um  prazer  e  uma  necessidade.  Po- 
der-se-hia  também  depois  de  meia  hora  de  gymnastica  tomar  um 
bom  douche  de  agua  fria  e  uma  massagem.  Finalmente  recommen- 
do  a  natação  desde  que  chegar  o  verão.  Uma  lei  do  30  prairial 
do  anno  xii  determina  que  a  arte  da  natação  faça  parte  da  edu- 
cação da  mocidade  nos  lyceus  e  nas  escolas  secundarias.  Agua, 
agua  e  mais  agua.  Agua  fria,  agua  fria  e  mais  agua  fria.  Não  ha 


138  AS  PRAIAS  DE    PORTUGAL 

comparação  na  saúde  do  corpo,  na  saúde  do  espirito,  no  bom  hu- 
mor, entre  uma  creança  suja  e  friorenta  e  uma  creança  que  o  con- 
ctacto  quotidiano  da  agua  fria  habitua  ao  aceio,  endurece  contra 
as  apprehensões  do  movimento,  do  calor  ou  do  frio,  apprehensões 
apenas  desculpáveis  nos  velhos  e  nas  mulheres.  Dm  philosopho  en- 
tendia que  o  aceio  é  uma  virtude.  Eu  sou  da  opinião  d'este  phi- 
losopho: é  uma  virtude  e.é  a  origem  d'outras  virtudes,  como  a 
franqueza,  a  firmeza  e  o  sentimento  da  dignidade  pessoal.  A  alma 
estiola-se  e  rebaixa-se  dentro  de  um  invólucro  insalubre  e  frioren- 
to. Os  gregos  começaram  a  degenerar  quando  começaram  a  ves- 
tir-se.  Li  com  espanto  ha  alguns  annos  em  um  jornal  religioso  que 
os  povos  menos  aceados  são  os  mais  intelhgentes  e  os  mais  valo- 
rosos. Não  será  esta  jamais  nem  a  opinião  de  um  medico  nem  a 
de  um  pedagogo.  O  escriptor  de  que  fallo  referia-se  talvez  aos  cos- 
méticos e  aos  insensatos  requintes  imitados  das  certezas  por  alguns 
jovens  devassos.  Eu  fallo  apenas  da  agua,  da  agua  viva-  e  pura,  ver- 
dadeira fonte  de  Juvencius,  que  dá  á  mocidade  toda  a  força,  toda 
a  graça,  e  alarga  os  limites  da  vida.  O  meu  alumno,  graças  ás 
suas  immersões  salutares,  não  receará  o  vento  nem  a  chuva  nem 
o  frio.  Não  caminhará  envolto  n'um  duplo  ou  tríplice  vestuário. 
Não  conhecerá  o  vergonhoso  e  ridículo  uso  do  cache-nez.  Não  terá 
a  janella  fechada  e  o  quarto  calafetado,  conservando  o  mau  ar  co- 
mo se  conserva  uma  coisa  preciosa.  Não  passará  horas  acocorado 
ao  lume.  Toda  a  minha  vida  admirei  a  historia  do  charlatão  que 
enriqueceu  vendendo  agua  da  fonte  por  agua  maravilhosa.  Esse 
ladrão  tinha  talvez  descoberto,  procurando  outra  cousa,  o  grande 
segredo  da  medicina.  Beber  bòa  agua  e  inundar-se  com  ella  todos 
os  dias  é  a  melhor  receita  contra  as  enfermidades.  As  mães  vivem 
em  cuidados  constantes.  O  menino  terá  frio ;  não  estará  bastante 
agasalhado ;  irá  molhar  os  pés ;  apanhar  um  defluxo,  um  resfria- 
mento, um  catharro!  Tome  o  menino  em  cada  manhã  um  bom  dou- 
che,  com  uma  massagem,  ou  façam-o  friccionar  com  agua  fria,  e 
todas  essas  desgraças  desapparecerão  juntamente  com  o  acanha- 
mento, com  a  timidez,  com  a  pusilanimidade  que  as  precauções 
arrastam  sempre  comsigo.  As  doenças  são  como  os  cães  que  ros- 
nam: se  a  gente  corre  para  elles,  deitam  a  fugir;  se  a  gente  lhes 
foge,  perseguem  e  mordem.  Façam-me  um  rapaz  forte,  com  uma 
boa  hygiene  e  com  hábitos  viris,  e  riam-se-me  dos  accidentes  e 
das  variações  atraosphericas.)) 


AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL  139 

Eu  disse  que  vinha  aconselhar.  A  mim  porém  falta-me  a  com- 
petência para  dar  conselhos.  Eu  venho  simplesmente  pedir  ás  mães, 
que  dêem  banhos  aos  seus  filhos.  Peço-o  para  a  fehcidade  d'elles, 
para  a  sua  regeneração  physica  e  moral,  para  o  aceio  do  seu  cor- 
po, para  a  preservação  das  suas  enfermidades,  para  a  alegria  do 
seu  espirito,  para  a  firmeza  da  sua  vontade.  Peço-o  como  escriptor, 
responsável  deante  da  minha  consciência  e  deante  dos  meus  si- 
milhantes  pelas  ideias  que  divulgo;  peço-o  como  critico  e  como 
homem  de  estudo;  peço-o  finalmente  como  pac,  se  me  permittem 
invocar  este  sagrado  titulo. 

Uma  das  minhas  filhas  era  na  sua  primeira  infância  uma  creança 
Lxtremamente  débil,  iymphatica,  atacada  de  rachitismo.  Fiz-lhe  um 
longo  tratamento  fortificante.  Principiou  a  andar  aos  três  annos  e 
meio  com  penosa  diíficuldade,  com  muita  fadiga,  com  dor.  Alguns 
médicos,  que  me  aconselharam  no  primeiro  curativo,  preparam-me 
para  o  desgosto  de  a  perder  aos  dez  annos.  Deliberei  então  sujei- 
t;il-a  a  um  tratamento  hydrotherapico.  Tenho  três  filhos.  Obriguei 
os  outros  dois  a  acom.panharem  a  doente  no  regime  prescripto. 
nhriguei-os,  digo?  Não,  convenci-os  todos  três,  um  em  nome  da 
iherapeutica,  os  outros  dois  em  nome  da  dignidade  e  do  aceio.  Fiz 
collocar  pela  manhã  junto  da  cama  de  cada  um  uma  banheira  chata, 
icdonda,  de  um  metro  de  diâmetro,  com  um  palmo  de  altura  no 
bordo,  meia  de  agua  fria.  Forneci  a  cada  um  a  sua  provisão  de 
sabão  e  uma  grande  esponja.  A  mãe  encarregou-se  de  dirigir  a 
operação  balnearia,  prevenindo  que  nenhum  d'elles  se  constipasse 
ao  contacto  do  ar,  e  passasse  immediatamente  do  calor  da  cama  pa- 
ra a  agua  fria,  applicando  com  a  esponja  três  ou  quatro  douches 
successivos  na  cabeça  e  na  columna  vertebral  junto  do  pescoço. 
Uma  boa  creada  compungiu-se  de  tal  modo  perante  o  bárbaro,  es- 
pectáculo matinal  de  que  eram  theatro  os  quartos  dos  meus  filhos, 
que  pretendeu  retirar-se  do  meu  domicilio.  Havia  lagrimas.  Eu, 
que  preconisava  o  banho  frio  em  theoria,  mas  que  o  não  acceitava 
para  mim  na  prática,  tinha  no  meio  d'esta  crise  domestica  um  pa- 
pel bastante  parecido  com  o  de  um  Herodes  de  agua  doce.  Envergo- 
nhei-me  das  abusões  picantemente  maliciosas  feitas  pelas  victimas 
ao  apparente  desaccordo  das  minhas  opiniões  e  dos  meus  actos  pes- 
soaes,  e,  apesar  de  ter  a  esse  tempo  a  apprehensão  de  uma  lesão 
cardíaca  e  uma  dòr  rheumatica  n'um  joelho,  lancei-me  intrepida- 
mente no  banho  frio  de  cada  dia.  Os  resultados  de  cinco  annos 
d'agua  fria  foram  os  seguintes: 

1."  A  minha  antiga  doente,  que  nenhum  outro  remédio  tomou 
desde  então  até  ao  presente  dia,  tem  hoje  treze  annos.  E'  uma  pe- 


140  AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

quena  pessoa  desempenada  como  o  cabo  da  sua  vassoura.  Activa, 
madrugadora.  Deixou  de  ser  lymphatica. 

2.°  Durante  cinco  annos  nenhum  dos  meus  filhos  adoeceu,  ne- 
nlium  se  constipou,  nenhum  teve  tosse,  nenhum  teve  defluxo. 

3.°  Passaram  os  meus  symptomas  de  perturbação  na  região  pe- 
ricordial.  Desappareceu-me  a  dur  do  joelho.  Trabalho  ordinária-  i 
mente  da  meia  noite  ás  quatro  horas  da  manhã,  defronte  da  mi- 
nha janella,  invariavelmente  aberta  de  verão  e  d'inverno.  Não  uso 
camisola.  Não  me  constipo  nunca,  e  apesar  da  minha  vida  seden- 
tária, supporto,  com  tolerância  rara  n'um  plumitivo,  o  trabalho  mus- 
cular, a  fadiga,  as  chuvas,  as  insolações. 

Desculpem,  minhas  senhoras,  ter-me  citado  a  mim  próprio, 
—  o  que  não  é  de  bom  gosto,  mas  é  de  boa  moral.  Seria  mes- 
mo esta  uma  prova  a  que  seria  útil  sujeitar  todos  os  escriptores : 
obrigal-os  a  saborearem  elles  mesmos,  de  quando  em  quando,  as 
tisanas  que  ministram  aos  outros.  Talvez  que  por  este  modo  se 
conseguisse  escrevermos  menos  e  acreditarem-nos  mais. 


FIM 


A  PRIMEIRA  PESCA 


índice 


o  mar.  O  aspecto  da  praia.  O  fundo  do  oceano.  Os  habitantes 
das  aguas.  O  polvo,  a  alforreca,  o  polypo,  a  estrella  do 
mar,  o  caranguejo,  o  tubarão,  o  carapau,  a  truta,  a  hypo- 
caml3a,  a  raia,  etc.  Os  fosfatos,  o  iodo,  o  bromureto.  A  cu- 
riosidade feminil.  O  nosso  instincto  marítimo.  Os  Lusíadas. 
A  Historia  tragico-maritima.  A  xacara  da  Nau  Catlirineta. 


II 


A  Foz.  O  tempo  antigo.  O  Damião  e  a  Rosa  das  Burras.  A  fa- 
mília do  Douro.  A  vida  em  minha  casa.  O  carroção  e  sua 
historia.  Meu  tio  e  o  carropão  de  via  estreita.  O  tempo  mo- 
derno. A  sociedade  na  Foz.  Os  bailes.  As  senhoras  portuen- 
ses  23 


III 

Leça  e  Mathozinhos.  Viagem  a  Lepa  pelo  Castello  do  Queijo. 
Quem  vimos,  além  de  um  papagaio.  A  do  veu  verde.  A  vi- 
da vegetativa  de  Leça.  A  estatua  de  Passos  Manoel.  As  ca- 
sas   3^ 


142  IXDICE 


IV 


Pedrouços.  A  villagiatura  official  e  o  seu  respectivo  lixo.  A  som- 
bra em  Ped roucos.  Os  pianos.  A  praia.  O  banbo.  Os  Jero- 
nymos.  A  feira  de  Belém.  O  xarope  de  groseilles.  As  mu- 
lheres gordas.  Os  gigantes.  A  praia  do  Rastéllo  .     .     .     .     41 


A  Povoa  de  Varzim.  A  rua  da  Junqueira.  Physionomias  de  ba- 
nhistas. O  jogo.  O  pescador  poveiro.  O  bairro  dos  pescado- 
res. As  pescas.  O  recenseamento  da  armada.  O  imposto.  Os 
naufrágios.  Os  subúrbios.  A  concorrência.  S.  Félix  de  Lanu- 
dos 50 


Vi 


A  Granja.  Praia  de  algibeira.  Os  chalets  e  os  coítages.  A  convi- 
vência. Theoria  da  amabilidade.  A  toilette.  O  croquct.  O  club. 
O  pinhal.  O  que  esta  praia  tem  de  bom,  ou  o  que  é  que 
não  tem G3 


VII 


De  Pedrouços  a  Cascaes.  O  Tejo.  O  Aterro.  O  vaporzinho  da 
Outra  Banda.  Almada.  A  praia  da  Torre.  A  torre  de  Belém. 
Algés.  Dá-fundo.  S.  José  de  Ribamar.  Caxias.  Paço  d'Arcos. 
Oeiras.  A  torre  de  S.  Julião.  Carcavellos.  Cascaes.  A  histo- 
ria da  villa.  As  casas  novas.  O  ckib.  A  sociedade.  Cintra. 
Distrações 71 


VIII 


Villa  do  Conde.  A  paizagem.  O  convento.  Historia.  Azurara. 
Aspecto  da  villa.  As  rendilheiras.  Guipures  de  Chantilly. 
A  estalagem 85 


índice  1 43 


IX 


1"AU  . 

Espinho.  A  povoação.  A  sociedade.  A  assembleia.  Typos  e  ca- 
racteres. O  piano  e  sua  peçonha.  O  troca-teclas.  O  poeta. 
A  menina  bonita.  Os  pic-nics.  As  tribus.  As  casas.  Os  lioteis.     89 


A  Ericeira.  A  população  indígena.  O  convento  de  Mafra.  O  car- 
rilhão. O  edifício.  A  tapada.  D.  João  v.  Decadência  monar- 
chica  e  decadência  religiosa.  Os  menuetes  e  os  touristes   .     93 


XI 

A  Nazareth.  A  praia.  O  sitio.  A  Senhora.  Um  dos  milagres.  Cri- 
tica pathologica.  Como  se  curou  D.  Isabel  de  Moura.  Acaba- 
ram os  milagres  da  Nazareth.  Theoria  dos  milagres  e  dos 
remédios  da  moda 99 

XII 

A  Figueira.  Influencias  de  Coimbra.  A  rua  da  Sophia.  Os  ge- 
raes.  O  lente.  As  assembleias  da  Figueira.  O  bairro  novo  e  o 
bairro  velho.  Os  subúrbios.  As  duas  camadas  dos  banhistas.   105 

xin 

Setúbal.  A  cidade.  O  aspecto  das  quintas.  Tróia.  A  Arrábida  .   109 

XIV 

As  praias  obscuras.  Ancora.  A  Apúlia.  Lavadores.  O  Furadou- 
ro. A  Costa  Nova.  S.  Martinho  do  Porto.  A  Assenta.  Santa 
Cruz.  S.  Pedro  de  Moei.  Porto  Brandão.  O  Alfeite.  A  Fonte 
da  Pipa 111 


1 44  índice 


XV 


O  tratamento  maritimo.  A  atmosphera.  A  agua  do  mar  em  be- 
bida. O  banho.  A  dieta.  O  programma  domestico.  Opinião 
de  Michelet.  A  solidão.  Os  divertimentos.  As  occupações. 
As  leituras.  A  reconstituição  moral.  O  banho  do  rio.  Os  ma- 
les 6  os  meios 115 


XVI 


Precauções  hygienicas.  Antes  do  banho.  No  banho.  Depois  do 
banho 125 


XVII 


Soccorros  aos  afogados.  As  três  espécies  de  asphyxia:  pelo 
pulmão,  pelo  coração,  pelo  cérebro.  Symptomas.  Applica- 
ções 129 


XVIII 

Reconstituição  dos  temperamentos  e  dos  caracteres  pelo  banho 
frio.  Conselhos  ás  mães.  A  rotina.  O  banho  quente.  Os  gran- 
des hygienistas.  O  deperecimento  da  infância.  O  lymphatis- 
mo.  A  anemia.  Agua  fria!  agua  fria!  agua  fria!  .     ,     .     .131 


í 


HORÁRIOS 


CAMINHOS  DE  FERRO 


CAMINHO  DE  FERRO  DE  LESTE  E  NORTE 


De  Lisboa  a  Badajoz  e  Porlo 


Preços  por  classes 


(5120 

^140 

#200 

^360 

^440 

^020 

^620 

^740 

^940 

1^100 

1^220 

l3490 

10670 

1;A870 

2^050 

2i$130 

2^210 
2Ã370 

2^580 
2^680 
20920 
30260 
30660 
30970 
4Ó310 
40Õ1O 
40890 
5^260 
50370 

20410 
20Ó8O 
20780 
20980 
35220 
30380 
3^700 
4i5O10 
4^210 
40330 
40470 
40710 
40870 
5^030 
50420 
5^W20 
55980 
65200 
65320 
65380 
60510 
60610 


^100 

5110 

0160 

5280 

0340 

0410 

5480 

0580 

5730 

5850 

0950 

15160 

10300 

1546U 

15590 

10660 

15720 
15840 
25010 
25090 
25270 
25540 
25850 
35090 
30350 
35010 
3  5800 
45100 
40170 

15870 
25010 
25170 
25320 
25ÕIO 
20630 
2588O 
3^120 
3528O 
35370 
35480 
30660 
35790 
35910 
45220 
45450 
40650 
40820 
45910 
45960 
55070 
55140 


5070 
50SO 
0120 
5200 
0250 
0290 
0350 
0410 
0Õ2O 
0610 
0680 
5830 
0930 
10040 
10140 

15 180 

10230 
15320 
15440 
15490 
10630 
158IO 
25030 
25210 
25400 
25510 
25720 
25930 
20980 

15340 
10440 
155ÕO 
1566O 
15790 
15880 
2^060 
25230 
20340 
25410 
25490 
25620 
20710 
25790 
35010 
3  5 180 
35320 
35440 
35510 
35540 
35620 
3568O 


10 
18 
22 
26 
31 
37 
47 
55 
61 
75 
84 
94 
103 

107 

111 

119 
130 
13õ 
147 
164 
184 
20U 
217 
227 
240 
265 
28:.' 

121 
13  I 
14-1 
lõi 
162 
170 
18J 
202 
212 
218 
225 
237 
245 
25  5 
273 
288 
301 
312 
I  318 
321 
i  328 
I  333 


De  Lisboa 
ás  seguintes  estações 


B 

Poço  do  Bispo  .... 

Olivaes 

SacaTem i  . 

Povoa 

Alverca 

Alhandra 

Villa  Franca 

Carregado B 

Azambuja 

Reguengo 

6ant'Anna 

Santarém B 

Valle  da  Figueira.  .  . 
Matto  de  Miranda.  .  . 
Torres  Novas 

1Q 
p' 

Barquinha 

Praia 

Tramagal 

Abrantes 

Bemposta 

Ponte  de  Sor 

Chança 

Crato 

Portalegre B 

Assumar 

áanta  Eulália  ..... 

Elvas B 

Badajoz B 

Entroncamento.  .  .  .B 
Thomar  i,Payalvo).  .  . 

Chão  de  Maçãs 

Caxarias 

Albergaria 

VermoU 

Pombal 

Soure 

Formoselha 

Taveiro 

Coimbra B 

Souzellas 

Mealhada 

Mogofores 

Oliveira  do  Bairro.  .  . 

Aveiro 

Estarreja 

Ovar 

Esmoriz 

Espinho 

Granja 

Valladares 

Gaya  (Porto).   .   .  (eh.' 


Todas  as  classes 

Corr." 

Misto 

T   8 

M.8 

MIO 

T   6 



— 

8.12 

10.28 

6-22 

— 

— 

8.21 

10.42 

S.35 

— 

8.23 

8.30 

11 

6-50 

— 

8.38 

8.44 

11.24 

7.12 

— 

— 

6.54 

11.40 

7.27 

— 

8.56 

9.05 

T  12.4 

7.50 

— 

9.07 

9.1Õ 

12.23 

8.7 

— 

9.29 

9.31 

12.49 

8.30 

— 

9.48 

9.49 

1.22 

8.55 

— 

— 

10.03 

1.43 

9.15 

— 

10.11 

10.14 

2.8 

9.31 



10.44 

10.46 

3.9 

10.5 



— 

11.06 

3.45 

_ 

— 

— 

11.23 

4.17 



— 

11.36 

11.41 

4.56 

— 

— 

T  11.45 

11.50 

5.10 

— 

— 

M   1.28 

12.30 





— 

1.38 

1252 





— 

1.53 

T    119 





— 

2.10 

1-50 





— 

2.20. 

2.24 







2.42 

3.02 







3.18 

4.06 





— 

3.52 

3.10 





— 

4.29 

6.13 







5.09 

7.22 



__ 



5.31 

8.04 





6.01 

8.49 





— 

6.54 

lO.Ol 





— 

7.20 

10.40 





— 

12.15 

M12.20 



— 

— 

12.45 

12.54 



— 

— 

1.10 

T    1-23 





— 

1.34 

1.51 

_ 



— 

— 

2.25 



— 

— 

— 

2.45 



— 

— 

2.33 

3.06 





— 

2.56 

3.31 





— 

3.23 

3.59 

_. 

— 

— 



4.16 





— 

4.02 

4.46 





M  5.45 



4.59 





6.9 

4.40 

5.27 





7 

4.56 

5.44 





7.41 



5.59 



. 

8.10 

5.47 

6.39 



9.45 

6.09 

7.07 



10.31 

6.34 

7.41 



11.29 



8.02 



_ 

12.5 

7.03 

8.21 





12.28 

7.13 

8.34 





12.48 



8.57 





1.21 

7.45 

T   9.18 



— 

1.45 

CAMINHO  DE  FERRO  DO  NORTE  E  LESTE 


Do  Porto  e  Badajoz  a  Lisboa 


Preços  por  classes 
1.»         2.»         3." 


6^510 
6y>380 
6^320 

6^200 
5^980 
5^720 
5^420 
5jiU30 
4,j870 
4^710 
4^470 
4^330 
4^210 
4Ó010 
3Ó700 
3  0380 
3^220 
2,5980 
2íJ780 
2tfõ80 
2^410 


6Ó370 

5^260 
4^890 
4^510 
4^310 

3^970 

3!>tJt;o 

3^260 
2^920 
2^680 
2^580 
2^370 
20210 

2^130 

2,5050 

1^8/0 

1^670 

1^490 

1^220 

1^100 

^940 

^740 

,$620 

(5520 

^440 

^360 

^200 

3 140 

^120 


ã(jl40 
5^070 
4^960 
4^910 
4^820 
40650 
4Ô450 
4^220 
3i»910 
3ij790 
3^660 
3Õ480 
3^370 
3Ó280 
3Ó120 
2Á880 
2^630 
2^510 
2Ó320 
2Õ170 
2^010 
lp70 


45170 

4Ó100 
3^800 
30510 
3Ã3Õ0 
3Ó090 
20.850 
2Í540 
2^270 
2^090 
2.^010 
4^S840 
1^720 

1^660 

1^590 
lp60 

ipoo 

1^160 

^50 
^850 
^730 
,5580 
^480 
Í410 
^340 
^280 
^160 

(5110 
(5 100 


3^680 
3^620 
3^540 
3^510 
3^440 
3^320 
3^180 
35010 
25790 
25710 
25620 
25490 
25410 
25340 
25230 
25060 
1588O 
15790 
1566O 
15550 
15440 
15340 


25980 
25930 
25720 
25510 
25400 
25210 
25030 
15810 
15630 
15490 
15440 
15320 
15230 

15I8O 

15140 
15040 
5930 
5830 
5680 
5610 

5520 

5410 

53ÕO 
5290 
5250 

5200 

5120 

5080 

5070 


Das  seguintes  estações] 
a  Lisboa 


Corr. 


Todas   as   classes 


Mixto 


Jaya  (Porto) 
Vailadares    . . 

Granja 

Espinho   .... 


Entroncamento,  B 


Esmoriz 

Ovar 

Estarreja 

Aveiro 

Oliveira  do  Bairro 

Mogofores 

Mealhada 

Souzellas 

Coimbra   B 

Taveiro. . . . 
Formoselha 

Soure 

Pombal    . . , 

Vermoil 

Albergaria 

C:\xarias   

Chão  de  Maçãs 

Thomar  (Payalvo). . . . 

C. 

P. 

Badajoz B 

Elvas B 

Santa  Eulália 

Assumar 

Portalegre B 

Crato 

Chança  

Ponte  de  Sor 

Bemposta 

Abrantes ... 

Tramagal 

Praia 

Harquinha 

p' 

Torres  Novas • 

Matto  de  Miranda 

Valle  de  Figueira 

.Santarém 

.Sant'Anna •  ■ 

Ponte  de  Reguengo... 

Azambuja 

Carregado B 

Villa  Franca. 
Alhandra  . . .  • 

Alverca 

Povoa  

.Sacavém 

Olivaes 

Poço  do  Bispo 

Lisboa C 


5.54 
6.07 


6.38 

7 
7.26 


8.16 
8.35 


9.51 
10.22 
10.56 


M  12.04 

12.27 

12.43 

1.08 

T  5.45 
6.39 
7.18 
7.58 
8.19 
8.59 

9.57 

10.49 

11.16 

11.36 

11.45 

M  1.38 

1.50 


2.49 
3.14 

3.38 
4.06 
4.21 
4.34 

4.53 
5.10 


5.35 


M  7.15  ! 
7.28  ! 
7.42 
7. 55  I 
8.07 
8.32  I 
8.55  1 
9.24  I 
10.02 
10.22 
10.42 
11.04 
11.37 
11.50 
12.11 
T  12.43 
1.02 
1.45 
2.27 
2.51 
3.17 
3.36 
4.02 

M  6 
7.15 
8.16 
9.19 
9.58 
10.51 
11.34 

T  12.32 
1.20 
2.04 
2.26 
2.59 
3.32 
3.45 
4.32 
4.43 
5 

5.24 
5.50 
6.15 
6.27 
6.42 
7.07 
7.22 
7.40 
7.51 
8.04 
8.21 
8.32 
845 
9 


[  5.30 
5.58 
6.28 
7.07 
8 

8.47 
9.07 
9.57 

10.33 

11 

11.54 
'  12.12 

12.37 
1.06 
1.23 
1.48 
2.05 


5. '10 

6.09 

6.22 

6.40 

7.06 

7.21 

7.47 

8 

8.13 

8.32 

8.4S 

9 

9.15 


M  o.on 
9  17 

y.4<i 
10 
111.21 

11  04 
11  43 
T  12.32 
1.32 
2.10 
2..Õ0 
3.27 
3.50 


CAMINHO  DE  FERRO  DO  SUESTE 

SERVIÇO  A  GOMKCAR  KO  DIA  15  DE  ABRIL  DE  187  6 


DE  LISBOA 

A  BEJA 

DE  BEJA  A  LISBOA 

é 

PREÇOS 

ESTAQUES 

Partida 

E                   PREÇOS 

ESTAÇÕES 

Partida 

i< 

l.'' 

|2.a 

3.- 

manhã 

^ 

1  " 

2.« 

3.* 

manhã 



1     

— 

Lisboa  [rap). 

6,30 

— 

— 

— 

Beja . 

7,15 

1.50 

150 

100 

Barreiro.  .  . 

7,35 

17 

430 

330 

220 

Cuba  .  .  .  .  • 

7,51 

2 

320 

290 

210 

Lavradio.  .  . 

7,43 

29 

730 

550 

370 

Ahilo  . . .  • 

8,25 

5 

320 

290 

210 

Alhos  Vedros 

7,51 

38 

960 

720 

480 

Villa  Nora.  • 

8,54 

8 

400 

350 

240 

Moita 

7,59 

44 

1110 

840 

560 

\ianna.  ,  .  • 

9,10 

16 

600 

500 

350 

Piubl  Noto. 

8,29 

52 

1310 

990 

660 

Alcáçovas  .  • 

9,28 

31 

980 

780 

530 

Poceirão. .  . 

8,57 

64 

1620 

1210 

810 

Casa  Branca- 

10,16 

42 

1250 

990 

670 

Pegões. .  .  . 

9,21 

79 

1990 

1500 

1000 

Uonte  Slór.  • 

10,56 

57 

1630 

1270 

860 

V.  Noras.  B. 

10,7 

97 

2450 

1840 

1230 

V.  NoTas.  B- 

11,38 

75 

2080 

1610 

1090 

Monie  ílór. . 

11,1 

112 

2830 

2120 

1420 

Pegões.  .  .  . 

12,6 

90 

2460 

1900 

1280 

Casa  Branca. 

11,47 

124 

3130 

2350 

1570 

Poceirão. .  • 

12,29 

102 

2760 

2120 

1430 

UcacoTas  .  . 

12,11 

139 

3510 

2630 

1760 

Pinbal  Noto. 

1,6 

110 

2970 

2270 

1530 

Vianna. .  .  . 

12,  28 

146 

3680 

2760 

1840 

lloila 

1,21 

117 

3140 

2480 

1620 

Villa  NoTa  . 

12,49 

149 

S760 

2820 

1880 

Allios  Vedros. 

1,29 

125 

3340 

2560 

172U 

Alvito  

1,8 

152 

3830 

2880 

1920 

Lavradio  .  .  . 

1,37 

187 

3650 

2780 

1870 

Cuba 

1,43 

154 

3920 

2950 

1980 

Barreiro.  . . 

2,12 

154 

4070  3100| 

2080 

Beja .  .  (eh.) 

2,17 

4070 

3100,  2080( Lisboa  (eh.) 

2,47 

LISBOA  A  EXTREMOZ 


EXTREMOZ  A  LISBOA        manhã 


2 

5 

8 

16 

31 

42 

57 

75 

90 

116 

136 

141 

149 

157 

168 


150 

320 

320 

400 

600 

980 

1250 

1630 

2080 

2460 

3120 

3620 

3750 

3950 

4110 

4430 1 


150 

290 

290 

350 

500 

780 

990 

1270 

1610 

1900 

2390 

2760 

2860 

3010 

3160 

33(0 


100 

21U 

210 

240 

350 

530 

670 

860 

1090 

1280 

1610 

1860 

1920 

2020 

2120 

2260 


Lisboa  (vap.j 
Barreiro  .  .  . 
Lavradio . .  , 
Alhos  Vedros 

Moita 

Pinhal  .Noto. 
Poceirão.  .  . 
Pegões .... 
V.  Novas  B. 
Monte  Mór.  . 
Casa  Branca. 
Évora  .... 
Azaruja. . .  . 
V.  de  Pereiro 
V.  do  Duque 
Évora  Monte. 
E\tremoz  eh. 


6.30 
7,35 
7,43 
7,51 
7,59 
8,29 
8,57 
9,21 
10,7 
11,1 
11,41 
12,51 
1,39 
1,52 
2,16 
2,38 
3,8 


11 

20 

28 

33 

53 

78 

93 

112 

127 

138 

153 

161 

163 

166 

168 


310 
510 
710 
840 
1340 


230: 
380  j 
530 
630 
1010 


1970  1480 


160 
260 
360 
420 
670 
990 


2350 
2830 
3200 
3480 
3860 
4060 
4110 


1760  1180 
2120  1420 


2400 
2610 
2900 
3050 
3080 


4190  3140 
4280  3220 
4430  3370 


1600 
1740 
1930 
2030 
2060 
2100 
2160 
2260 


titremoz. .  . 

6,30 

Eiora  Monte 

6,58 

V.  do  Duque. 
V.  do  Pereiro 

7,23 
7,46 

Azaruja. .  . . 
Évora 

8,6 
9,4 

Casa  Branca. 
Monle  Mór. . 
V.  Novas.  B. 
Pegões.  .  .  . 
Poceirão.  . . 
Pinhal  Novo  . 

10,16 
10,56 
11,38 
12,6 
12,29 
1,6 

Hoila 

1,21 

ilhos  Vedros 

1,29 

.avradifl . .  . 

1,37 

[iarreiro .  . . 

2,12 

-isboa  (vap.) 

2,47 

BEJA  A  CASEVEL 






17 

430 

330 

24 

610 

460 

38 

960 

720 

47 

1190 

890 

-  ( lí^j.' 

220  Outeiro  .  .  . 
310  Figueirinha . 
480  Carregueiro . 
600  r.asevel  fá.) 


2,42 
3,18 
3,40 
4,13 
4,  .35 


CASEVEL  A  BEJA 


9 

23 

30 
47 


230 

580 

760 

1190 


170 

440 
570 

890 


120 
290 
380 
600 


Casevel. .  . 
Carregueiro 
Figueirinha 
Outeiro. .  . 
Brja.  .  (fb. 


4,50 
5,16 
5,50 
6,13 
6,53 


BEJA  A  QUINTOS  tarde 

SABBADO^   DOMINGOS,  TKRÇAS  E  QUINTAS 


330 
510 


250 

380 


170  Balcisão. 
260  Quintos  . 


2,47 

3,9 

3,25 


QUINTOS  A  BEJA 

DOMINGOS,  SEULNDAS,    QCAKTAS    E 


manhã 

SEXTAS 


8 
20 


—  I  —  I  —  I  Quintos  .  ,  .1  5,  50 
210  160  100  Baleisão.  ..  6,12 
510    380    260  Beja 6,42 


CAMINHO  DE  FERRO  DO  SUESTE 


EXTREMOZ  A  BEJA 


20 

28 

33 

53 

78 

90 

98 

105 

113 

i25 

142 


PREÇOS 


310 

510 

710 

840 

1340 

1970 

2270 

2470 

2650 

2850 

3150; 

3580, 


230 

380 

530 

G30 

1010 

4480 

1710 

1860 

1990 

2140 

2370 

2690 


3.= 


160 
260 
360 
440, 
670 
990' 

1140: 

1240 ; 

1330 
2430' 
1580 
1790 


ESTAÇÕES 


Exlrenioz  .  .  . 
Évora  Slonte  . 
V.  do  Duque. 
V.  de  Pereiro. 
Azaruja  .... 

Évora  

Casa  Branca.. 
Mcaçovas  .  . . 

\ianna 

Villa  JÍDTa.    . 

Alvito  

Ciiha 

Beja (cli, 


Partida 


6,30 

6,58 

7,23 

7,46 

8,6 

9,4 

11,47 

12,11 

12,  28 

12,  49 

1,8 

1,43 

2,17 


SETÚBAL  A  BEJA  E   EXTREMOZ 








6 

160 

120 

80 

13 

330 

250 

170 

28 

710 

530 

360 

40 

1110 

760 

510 

55 

1390 

1040 

700 

73 

1840 

1380 

920 

88 

2220 

1670 

1110 

1G6 

41'.iU 

3140 

2100 

100 

2520 

1890 

1260 

108 

2730 

2050 

1360 

114 

2880 

2160 

1440 

123 

3100 

2330 

1550 

135 

3410  2560 

1710 

152 

3^30 

2880 

1920 

Selulinl 

Palniilla. .  .  . 
Pinhal  \ovo. . 
Poceirão. .  .  . 

Pegões 

V.  Novas...  . 
Monte  Hór.  .  . 
Casa  Branca.  . 
Eitremoz  .  . . 
Alcáçovas  .  .  . 

\  ianna 

Villa  Nova.  .  . 

Alvito  

IJiba  

.  .  .  (eh. 


man  hã 


6,  35 

6,51 

8,29 

8,57 

9,21 

10,7 

11,1 

11,41 

3,8 

12,11 

12,28 

12,  49 

1,8 

1,43 

2.17 


BEJA  A  EXTREMOZ 


17 

29 

38 

44 

52 

64 

90 

109 

114 

122 

131 


PKEÇOS 


430 
730 
960 
1110 
1310 
1620 
2270 
2750 
2880 
3080 
3310 


142  3580 


2."     3.a 


ESTAÇÕES 


—       —   |Beja 

330     220  Cuba 

550    370  Alvito 

720    480|  Villa  !\ova.... 

840    560iVianna 

990    GGOAlcaçous 

1210    810  Casa  Branca  .  . 

1710  1140'Evofa 

2060, 1380]  Azaruja 

2160,1440  V.  de  Pereiro. 
2310  1540|V.  do  Duque.. 
2480  1650;  Évora  «ante  . 
2690tl790,Eilremoz    (eh.) 


Parlidâ 
manhã 


7,15 
7,51 
8,25 
8,54 
9,10 
9,28 
11,41 
12,51 
1,39 
1,52 
2,  16 
2,38 
3,8 


BEJA  E  EXTREMOZ  A  SETT7BAL 


64 

70 1 


430 
730 
960 
1110 
1310 
3580 
1620 
í)  11990 
97  2450 
112  2830' 
124'3130 
139  3510 
146  3680 1 
152  3830 


330 
550 
720 
840 
990 


22C 
37(' 

48(i 
56(! 
660 


26901790 
1210!  810 
1500  1000 
1840  1230 
2120  1420 
2350  1570 
2630,1760; 
2760  1840, 
2880 '  1920 


Reja..  . . 
Cuba  .  .  . 
Alvito  .  . 
Villa  Nova 
Vianna.  . 
dcaçovas 
Eitremoz 
Casa  Branca 
llonte  Mor 
V.  Novas 
Pegões. 
Poceirão. 
Pinhal  Noto 
Palmella 
Setúbal- 


7, 15 

7,  51 

8,25 

8,54 

9,10 

9,28 

6,30 

10,16 

10,  56 

11,38 

12,6 

12,29 

6,4 

6,20 

6.  34 


RAMAL  DE  SETÚBAL 


LISBOA  A  SETÚBAL 


PREÇOS 


150 

2.320 

5'320 

8  400 

161600 

23  770 

28  900 


150 
290 
290 
350 
5lj(» 
630 
720 


100 
210 
210 


ESTAÇÕES 


Lisboa.  .  .  . 

Barreiro.  .  . 

Lavradio. .  . 

Alhos  Vedros 

24()!llnita 

350  Pinhil  Novo. 
43o|p,ilmelia. .. 
ÕC»0  Setúbal.  . .  . 


Partida 
manhã     tarde 


6,30 
7,  35 
7,43 
7,51 
7,59 
8,25 
8,40 
8,53 


4,20 

5,15 

5,23 

5,31 

5,40 

6,4 

6,20 

6,34 


SETÚBAL  A  LISBOA 


PREÇOS 


1." 

160 
330 
530 
580 
660 
7.50 
900 


J20 
250 
400 
440 
500 
570 
720 


80 
170 
270 
290 
330 
400 
50O 


ESTAÇÕES 


Setúbal 

Palmella  . .  , 
Pinhal  Noto  . 

Moita 

Alhos  Vedros. 
Lavradio  .  .  . 
Barreiro  .  .  . 
Lisboa 


Partida 
manhã     tarde 


6,35 
6,51 
7,13 
7,28 
7,36 
7,45 
8,15 
8,  50 


5,45 
5,1 
5,21 
5,38 

5,  45 
5,52 
6, 15 

6.  05 


CAMINHO  DE  FERRO  DO  MINHO 
Serviço  a  começar  de  10  de  abril  de  1876 


ASCENDENTES 


PREÇOS 


1.» 

Classe 


2.a 

Classe 


3.* 

Classe 


ESTAÇÕES 


Horas  da  partida 
dos  comboios 


N.?l 
Mixto 


N."  3 
Correio 


N.oõ 
Miito 


120 

90 

70 

180 

140 

100 

310 

240 

170 

440 

340 

250 

610 

480 

340 

740 

580 

410 

910 

710 

510 

910 

710 

510 

1/030 

800 

570 

Porto  (Partida) . . . 

Rio  Tinto 

Ermezinde 

S.  Romão 

Trofa 

Famalicão 

Nine 

Arentim  (paragem) 

Tadim 

Braga  (Chegada) . . 


Manhã 

Manhã 

h.  m. 

h.  m. 

6,42 

9,30 

6,54 

9,41 

7,7 

9,50 

7,19 

10,3 

7,40 

10,21 

8,1 

10,42 

8,17 

10,59 

8,26 



8,33 

11,16 

8,45 

11,27 

Tarde 
b.  m. 

5,44 

5,55 

6,8 

6,20 

6,39 

7,1 

7,21 

7,30 

7,37 

7,49 


DESCENDENTES 


PREÇOS 


Classe 


2.* 
Classe 


3.» 

Classe 


ESTAÇÕES 


Horas  da  partida 
dos  comboios 


N.''2 
Mixto 


Correio 


Mixto 


140 

110 

80 

290 

230 

160 

290 

230 

160 

420 

330 

240 

590 

460 

330 

740 

580 

410 

870 

680 

490 

930 

730 

520 

1^030 

800 

570 

Braga  (Partida) . . 

Tadim 

Arentim  (paragem) 

Nine 

Famalicão 

Trofa 

S.  Romão 

Ermezinde 

Rio  Tinto 

Porto  (Chegada). . . 


Manhã 

Tarde  j 

b.  m. 

b.  m. 

6,24 

1,37 

6,36 

1.51 

6,45 

— 

6,56 

2,8 

7,15 

2,26 

7,35 

2,45 

7,51 

3,1 

8,8 

3,13 

8,19 

3,23 

8,27 

3,30 

Tarde 
h.  m. 

6,7 

6,19 

6,28 

6,39 

6,58 

7,20 

7,36 

7,52 

8,2 

8,10 


CAMINHO  DE  FERRO  DO  DOURO 

Serviço  desde  20  de  dezembro  de  1875 


ASCENDENTES 


PREÇOS 


1.» 

Classe 


2.» 
Classe 


3.* 

Classa 


ESTAÇÕES 


Horas  da  partida 
dos  comboios 


N.»  21 
Mixto 


N.»  23 
Mixto 


120 

90 

70 

180 

140 

100 

310 

240 

170 

500 

390 

280 

590 

460 

330 

670 

520 

370 

740 

580 

410 

870 

680 

490 

Porto  (Pa  rtiãa) .  . . 

Rio  Tinto 

Ermezinde 

Vallongo 

Recarei 

Cette 

Paredes 

Penafiel 

Caliide  (Chegada) . 


Manhã 
h.  m. 

7,45 

7,57 

8,10 

8,30 

8,52 

9,5 

9,20 

9,33 

9,48 


Tarde 
h.  m. 

4,50 

5,2 

5,15 

5,38 

6,0 

6,13 

6,28 

6,41 

6,56 


DESCENDENTES 


PREÇOS 


1.» 

Classe 


2.» 
Classe 


3.» 
Classe 


ESTAÇÕES 


Horas  da  partida 
dos  comboios 


N.°  22 
Misto 


N.»  24 
Mixto 


160 

120 

90 

230 

180 

130 

310 

240 

170 

400 

310 

230 

590 

460 

330 

720 

560 

400 

800 

620 

450 

870 

680 

490 

Cabide  (Partida)  ■ 

Penafiel 

Paredes 

Cette 

Recarei 

Vallongo 

Ermezinde 

Rio  Tinto 

Porto  (Chegada). . 


Manhã    Manhã 
h.  m. 


6,20 

6,40 

6,53 

7,6 

7,19 

7,41 

8,8 

8,19 

8,27 


4,19 

4,39 

4,52 

5,5 

5,18 

5,43 

6,4 

6,15 

6,25 


CAMINHO  DE  FERRO  DO  PORTO  Á  POVOA  DE  VARZIM 
Horário  a  começar  em  20  de  abril  de  1876 


ASCENDENTES 


2 

g 

PREÇOS 

ESTAÇÕES 

Horas  da  partida  dos  comboios 

S 

1.» 
classe 

2.» 
classe 

N.o  2 

N.o  4 

N.»  6 

N.°  8 

4 

6 

80 
80 
160 
160 
240 
240 
320 
400 
400 
480 

50 
50 
100 
100 
150 
150 
200 
250 
250 
300 

Porto  (Partida) 

Senhora  da  Hora 

Cuatoias 

Manhã 

5,50 

6,2 

6,8 

6,17 

6,28 

6,36 

6,41 

6,52 

7,1 

7,7 

7,15 

Manhã 

9,40 
9,52 
9,58 
10,7 
10,18 
10,26 
10,31 
10,42 
10,51 
10,57 
11,5 

Tarde 

2 

2,14 

2,21 

2,31 

2,46 

2,56 

3,2 

3,16 

3,26 

3,34 

3,45 

Tarde 
5 

5,12 
5,18 

9 
11 
14 
16 

Crestins 

Pedras  Rubras 

Villar  do  Pinheiro 

Modives 

5,27 
5,38 
5,46 
5,51 

20 
23 

Mindello 

Azurara 

6,2 
6,11 

25 

28 

Villa  do  Conde 

Povoa  (Chegada) 

6,17 
6,25 

DESCENDENTES 


^ 

1.^ 

2.* 

fcí 

classe 

classe 

3 

80 

50 

5 

80 

50 

8 

160 

100 

12 

240 

150 

14 

240 

150 

17 

320 

200 

19 

320 

200 

22 

400 

250 

24 

400 

250 

28 

480 

300 

N."  1        N.»  3       N."  5 


N.»  7 


Povoa 

Villa  do  Conde.  .  . 

Azurara 

Mindello 

Modives 

Villar  do  Pinheiro. 
Pedras  Rubras  .  .  . 

Crestins 

Custeias 

Senhoi-a  da  Hora  . 
Porto  (Chegada) .  . 


Manhã 

Manhã 

Tarde 

5,30 
5,40 

9,20 
9,30 

1,40 
1,52 

5,47 

9,37 

2, 

5,57 

6,8 

6.16 

9,47 
9,58 
10,6 

2,11 

2,24 
2,32 

6,31 
6,37 

10,21 
10,27 

2,47 
2,54 

6,4Q 
6,53 
7,3 

10,36 
10,43 
10,53 

3,6 
3,14 

3,26 

5,40 

5,50 

5,57 

6,7 

6,18 

6,26 

6,41 

6,47 

6,56 

7,3 

7,13 


Aos  sabbados  ha  um  comboio  especial  para  toda  a  linha,  somente  para 
2."  classe,  com  bilhetes  de  ida  e  volta.  Sahe  do  Porto  ás  3,50  da  tarde,  che- 
ga á  Povoa  ás  5,35.  Volta  da  Povoa  iia  segunda-feira  ás  4,3  da  mauhà,  che- 
gando ao  Porto  ás  5,49. 


RECREIO  imiTI 


Li 


PERIÓDICO  ILLUSTRADO 


DEDICADO 


COM  A  COLLABORAÇÃO  DOS  MELHORES  ESCRIPTORES 


CADA   SERIE   COMPÓE-SE    DE   2   VOL.    DE    12   NÚMEROS  CADA   UM 
PUBLICA-SE   DUAS  VEZES   POR  MEZ  EM  FASCÍCULOS  DE   16  PAGINAS  EM  8.* 

IMPRESSOS  A  DUAS  CORES 

E  ADORNADOS  DE  EXCELLENTES  GRAVTJBAS 


PREGO  DA  ASSIGNATURA 


PORTUGAL 


Serie  de  24  números  pagos  adiantados 1;íí800  réis  4^^800  réis  fracos 

Cada  numero  avulso 100    »           300     »         » 

Volume  brochado  contendo  12  números....  1^200    »  3^600     »         » 

enciidern.        >.          12         »        ....  I|õ00    »  4^500     « 


Os  snrs.  assignantes  de  24  niameros,  qiae 
desejarem  comprar  capas  para  os  voliames, 
CTj.star-lh.e-h.ao  300  réis  cada  Tj-ma.  Pelo  cor- 
reio accresce  o  porte. 


ASSIGNA-SE 


No  Porto  — Livraria  Universal  de  Magalhães  &  Moniz,  12,  Largo  dos 
Loyos,  14. 

Em  Lisboa— Em  casa  do  editor  Júlio  H.  Verde,  rua  do  Duque  de  Bra- 
gança, 6. 


DICCIONARIO 


GEOGRAPHIA  UMIÍERSAL 


yMOll[0[M[NSB[SCI[ffl 

COMPOSTO  SEGUNDO  OS  TEABALHOS  GE0GKAPHIC03  DOS 

MHIiHORES  AUCTOaES  POKTDGOEZES,  BBAZILEIROS,  FRANCEZES,  ISGLEZES  E  ALLEUÂES, 

E  DE  ACCORDO  COM  AS  ULTIMAS 

PUBLICAÇÕES  CHOBOGRAPHICAS  E  ESTATÍSTICAS  DOS  DIFFEEENTES  PAIZES 

COMPREHEHDENDO  TODOS  OS  ESCLARECIMENTOS  E  INFORMAÇÕES  INDISPENSÁVEIS  COM  RELAÇÃO 
AO  COMMERCIO,  AS  ARTES  E  INDUSTRIAS  FABRIS; 

DESENVOLVIDO  CONSIDERAVELMENTE  NA  PARTE  QIE  DIZ  RESPEITO  A 

PORTUGAL,  províncias  ULTRAMARINAS  E  RRAZIL 


Portugal,  outr'ora  na  vanguarda  dos  progressos  geographicos, 
a  quem  o  mundo  deve  na  pessoa  do  infante  D.  Henrique  a  inicia- 
ção dos  mais  explendidos  descobrimentos  e  arrojadas  navegações, 
a  pátria  de  Vasco  da  Gama,  de  Pedro  Alvares  Cabral,  de  Fernão  de 
Magalhães,  de  Bartholomeu  Dias,  de  Heredia,  de  Pedro  Nunes,  e  de 
tantos  outros  que  assignalaram  o  nome  nos  fastos  geographicos, 
não  só  não  possuia  um  Diccionario  de  geographia  completo  como 
em  muitas  obras  estrangeiras  era  tractado  de  uma  maneira  inexa- 
cta ou  incompleta  sob  o  ponto  de  vista  histórico,  commercial,  po- 
litico ou  económico. 

Hoje,  que  entre  nós  se  revela  um  bem  entendido  interesse 
pelos  assumptos  geographicos,  tanto  nas  diversas  classes  illustra- 
das  da  sociedade  como  nas  regiões  do  poder,  e  que  o  nosso  paiz 
vai  entrando  n'uma  epocha  de  progressivo  e  extraordinário  desen- 
volvimento scientifico  e  material,  mais  sensível  se  torna  a  falta  de 
um  bom  Diccionario  de  geographia  universal  que  não  só  occorra  ás 
vastíssimas  necessidades  d'esse  desenvolvimento,  como  também  re- 
vindique  a  gloria  que  nos  pertence  em  certos  factos  que  tanto  hon- 
ram e  abrilhantam  o  nosso  passado. 


Persuadidos  da  conveniência  de  preencher  uma  tal  lacuna,  va- 
mos encetar  a  publicação  d"um  diccionario  de  geographia  uni- 
versal, onde  o  homem  de  sciencia,  o  professor,  o  litterato,  o  es- 
tudante, o  simples  curioso,  o  industrial  ou  commefciante,  possam 
ir  buscar  as  indispensáveis  indicações  e  subsidies  que  até  agora 
só  lhe  podiam  ser  ministrados  pelas  obras  geographicas  estrangei- 
ras, as  quaes,  muitas  vezes,  eram  insuíTicientes  ou  pouco  exactas, 
especialmente  no  que  dizia  respeito  a 

PORTUGAL  E  BRAZIL 

Fructo  de  longas  e  laboriosas  investigações,  redigido  por  pes- 
soas de  superior  intelligencia  e  incontestável  probidade  litteraria, 
baseado  não  só  nas  publicações  mais  modernas  sobre  a  especiali- 
dade como  também  sobre  valiosos  trabalhos  de  estatística,  de  geo- 
desia,  e  sobre  documentos,  relatórios  e  informações  oíficiaes,  a 
nova  publicação  representa  um  progresso  comparada  com  os  mais 
diccionarios  até  hoje  publicados,  e  temos  a  convicção  de  que  virá 
a  ser  considerada  pelos  competentes  como 

O  PRIMEIRO  DICCIONARIO  GEOSRAPHICO  UNIVERSAL  DA 
ACTUALIDADE 


CONDIÇÕES  DA  ASSIGNATURA 


O  DICCIONARIO  DE  GEOGRAPHIA  UNIVERSAL  é  distribuído  semanal- 
mente em  fascículos  de  16  paginas,  formato  iu-folio  com  duas  columnas,  typo 
miúdo,  completamente  novo,  e  papel  da  melhor  qualidade. 

Cada  fascículo  com  a  competente  capa  custa  100  réis. 

LISBOA— Os  assignantes  deverão  pagar  ao  distribuidor  no  acto  da  en- 
trega. 

PEOVINCIAS  — As  pessoas  que  quizerem  subscrever  deverão  enviar 
adiantadamente  á  administração  da  empreza  a  importância  de  dois  ou  mais 
fascículos  em  estampilhas,  ou  vales  do  correio. 

ESTRANGEIRO— A  importância  do  fascículo  accresce  o  porte  do  cor- 
reio devendo  os  pagamentos  serem  feitos  adiantadamente  ás  series  de  25  fas- 
cículos pelo  menoè^  Para  os  Estados  da  União  Geral  dos  Correios,  115  réis 
cada  fascículo,  franco  de  porte. 

Às  remessas  para  as  províncias  e  estrangeiro  serão  feitas  regularmente 
de  dois  em  dois  fascículos. 

A  obra  constará  de  100  fasciculos  aproximadamente. 


Assigua-se  em  Lisboa,  no  escriptorio  da  empreza,  rua  da  Atalaya,  17,  l-"  — 
e  no  Porto,  na  Livraria  Universal  de  Magalhães  (&  Moniz,  largo  doa  Loyos,  12. 


EMPREZA  HORAS  ROMÂNTICAS 

OBRAS  PUBLICADAS: 

OS  CAVALL.EIROS  DA  NOITE,  porPonson  du  Terrail— 3  vol.  (edição  esgotada)  1^500 

OS  HERDEIROS  EAL.SOS,  idem  —  1  vol.  (edição  esgotada) ^400 

AlffORES  DE  IiTTIZ  XV,  idem  —  2  vol.  com  gravuras ^800 

OS  MASCARAS  VERMELHAS,  idem  —  3  vol.  com  gravuras  (edição  esgotada)  .  1^500 
O  REI  MAliDITO,  por  Fernandez  y  Gonzalez  — 5  vol.  ornados  com  44  gravuras    .     .  3j$400 

OS  SETE  MORCEGOS,  idem  —  1  vol.  cartonado  com  4  gravuras ^600 

A  PRINCEZA  DOS  URSINOS,  idem  —  4  vol.  com  24  gravuras 2^700 

ÓDIO  DE  BOITRBONS,  por  D.  Torquato  Tarrago  y  Mateos  —  3  vol.  com  34  grav.  .  2^200 

CIÚMES  DE  TJMA  RAINHA,  idem— 4  vol.  com  26  gravuras 2^400 

O  DEDO  DE  DEUS,  idem  —  3  vol.  com  14  gravuras 1^800 

AS  GUERRILHAS  DE  JUAREZ,  por  Gustave  Aimard  —  1  vol.  (formato  grande)    ^1400 

O  DIABO  NA  CORTE,  por  Ortega  y  Frias  —  3  vol.  com  27  gravuras 2^100 

VIDA  INFERNAL,  por  Emile  Gaboriau  —  3  vol.  com  12  gravuras 1^500 

DA  PARTE  D'EL-REI,  por  Cunha  e  Sá  —  1  vol ;     POO 

DA  PARTE  DA  RAINHA,  idem  -  1  vol ^(400 

A  GRAVURA  DE  MADEIRA  EM  PORTUGAL,  por  João  Pedrozo  —  álbum  de 

26  gravuras 2^500 

LISBOA  NA  RUA,  por  J.  C.  Machado  —  1  vol.  ornado  com  23  grav.  (ed.  esgotada)  ,     ^600 
A  GALERA  CHANCELLOR,  por  Júlio  Verne  —  1  vol.  com  o  retrato  do  auctor    .     ^íGOO 

NO  PRELO 
AS  TRAGEDIAS  DE  PARIZ,  ppr  Xavier  de  Montépin. 

BIBLIOTHECA  ILLUSTRADA  DE  INSTRUCGÂO  E  RECREIO 

VIAGENS  MARAVILHOSAS  AOS  MUNDOS  CONHECID"OS  E  DESCONHECIDOS 

POR  JÚLIO  VERNE 

DA  TERRA  ALUA— (2.*  edição),  1  vol.  com  43  gravuras,  brochado..     ,     .'     .     .     ^900 
Á  RODA  DA  LUA  (continuação  da  TERRA  Á  LUA)  —  (2.*  edição)  1  volume  com  44 

gravuras,  brochado )fií900 

Á  VOLTA  DO  MUNDO  EM  80  DIAS  —  1  vol.  com  58  gravuras  brochado.     .     .  1^000 
AVENTURAS  DO  CAPITÃO  HATTERAS: 

1."  parte:  OS  INGLEZES  NO  POLO  NORTE  —  1  vol.  com  135  grav.  brochado  IjJlOO 

2.*  parte:  O  DESERTO  DE  GELO,  1  volume  com  135  grav.  brochado  .  .  . 
CINCO  SEMANAS  EM  BALÃO  —  1  volume  com  76  gravuras,  brochado.  .  . 
AVENTURAS  DE  3  RUSSOS  E  3  INGLEZES  —  1  vol.  com  54  grav.  br.  . 
VIAGEM  AO  CENTRO  DA  TERRA  —  1  vol.  com  55  grav.  brochado  .  .  . 
OS  FILHOS  DO  CAPITÃO  GRANT : 

1.^  parte:  AMERICA  DO  SUL  —1  vol.  com  72  gravuras,  brochado  .... 

2.'!  parte  :  AUSTRÁLIA  MERIDIONAL  —  1  vol.  com  54  grav.  brochado. 

3.*  parte  :  OCEANO  PACIFICO  —  1  volume  com  48  gravuras,  brochado  .  . 
VINTE  MIL  LEGOAS  SUBMARINAS : 

1.^  parto:  O  HOMEM  DAS  AGUAS  —  1  volume  com  51  gravuras,  brochado 

2.*  parte :  O  FUNDO  DO  MAR  —  1  volume  com  60  gravuras,  brochado    .     . 

Encadernado  em  percalina  e  dourado  na  capa  e  por  folhas 

NO  PRELO 
A  ILHA  MYSTERIOSA,  1.^  parte. 


1^100 

Ij^lOO 

^900 

IjJOOO 

1^100 

1^100 
1^100 

1^1000 
1(?100 
1,^400 


à  venda,  em  Lisboa,  no  escriptorio  da  empreza,  rua  da  Atalaya,  17—1."  andar 
No  Porto,  na  livraria  Universal  de  Magalhães  &.  Moniz— Largo  dos  Loyos,  12. 


EDIÇÃO  DE  LUXO 


ODOIROILLOSTRÂDO 


ÁLBUM  DO  RIO  DOURO  E  PAIZ  VINHATEIRO 

contendo: 

isteodccçio  histórica  e  descriptiva  do  paiz  vinhateiro 

descripção  das  principaes  qlixtas  e  dos  trabalhos  vimcolas  usados  no  douro 

notj.  sobre  o  commercio  dos  vinhos  do  porto,  serviço  e  trabalho  dos 

armazéns  e  estatísticas  commerciaes 


REDIGIDO 

PELO 


VISCONDE  DE  YILLÂ  MAIOR 

REITOR  DA  UNIVERSIDADE  DE  COIMBRA 


ACOMPANHADO  DE  UMA  SERIE  DE  2^  VISTAS  DOS 
SEGUINTES  PONTOS: 


Barca  d' Alva 

Quinta  do  Silho 

Foz  de  Sabor  e  Valle  de  Villariça 

Quinta  do  Vesúvio 

Cachão  da  Valleira 

Foz-Tua 

Sitio  de  Roriz  (casa  de  Dias  Paes) 

Quinta  da  Eoeda 

9.  Pinhão  e  Casal  de  Loivos 

10.  Noval  (vista  da  casa) 

11.  Adega  do  Noval 

12.  Vista  geral  da  quinta  do  Noval 


13.  Bateiras  e  quinta  do  Seixo 

14.  Val-Mór 

15.  Folgosa 

16.  Quinta  da  Romaneira 
17-  Regoa 

18.  Caldas  do  Moledo 

19.  Seromenha 

20.  Raiva  e  Barqueiros 

21.  Cadâo 

22.  Caldas  de  Aregos 

23.  Alfandega  do  Porto 

24.  Foz  do  Douro 


TIRADAS  PELO  PHOTOGRAPHO  J.  LOUREIRO 


DESENHADAS  EM   MADEIRA  POR  EMÍLIO  PIMENTEL 


GRAV.\DAS  POR  M.  BADOIREAC  E  J.  PEDROSO 


DOUS  MAPPAS 

Impressos  pelo  systema  da  photoUthographia,  tendo  o  maior  1"',10  de  comprido  e  ©""jSO  de  largo,  re- 
presentando este  o  curso  do  rio  Douro  e  suas  margens,  desde  a  fronteira  até  à  Foz,  com  indicai^õet 
dos  pontos  rápidos  e  diffíceis  à  navegar^ão,  e  o  outro  a  antiga,  circumscripc^ão  do  AUo-Douro. 

DESENHADOS  POR  JOSÉ  CARDOSO  DE  ARAÚJO  FEYO 


Com  a  Iraducção  franceza  de  Léon  lucotle  e  a  tradacjão  ingleza  de  Jorge  C.  Berkelej  Coller 


O  DOURO  ILLUSTRADO,  dividido  em  25  cadernetas,  compôr-se-á  de  200  paginas  de  tex- 
to, aproximadampnte  —  24  gravuras  —  e  2  mappas. 

Cada  cadprneta  constará  de  8  paginas  de  texto  e  uma  gravura,  nitidamente  impressa»,  le- 
vando a  caderneta  ultima  os  dous  mappas. 


A  obra  completa  custará,  por  assignatura,  õ^OOO  réis. 


A  ENCADEKNAÇÃO  SERÁ  PAGA  SEPARADAMENTE 


MAGALHÃES  à  MONIZ  —  EDITORES 


LIVRARIA  DE  MAGALHÃES  &  MONIZ— PORTO 

JOÃO  DE  DEUS 
FLORES  DO  CAMPO 

2.^   EDIÇÃO 

1  volume 

FOLHAS  SOLTAS 
1  volume 600 

PEDRO  IVO 

CONTOS 

1  volume 500 

O  SELLO   DA   RODA 
1  volume 500 

THEOPHILO  GAUTIER 

MAGDALENA  DE  MAUPIN 

1  volume 600 

EDIÇÕES  ILUSTRADAS 

RAMALHO  ORTIGÃO 

BANHOS  DE  CALDAS  E  AGUAS  MÍNERAES  DE  PORTUGAL 

cos  iO  VISTAS  E  3  DESE^^OS  DE  FAMASIA 

1  volume líííOOO 

AS  PRAIAS  DE  PORTUGAL 

COM  10  VISTAS  E  DESENHOS 

1  volume í?5ÍOOO 


LIVRARIA  UNIVERSAL 


DE 


MAGALHÃES  .V  )IOMZ- EDITORES 

12  — LARSO  DOS  LOYOS— 14 
LIVROS  PARA  ENSINO 

Guia  dos  exames  de  admissão,  ou  noções  sobre  arithraeti- 
ca,  systema  metrico-decimal,  chorographia  portugueza, 
historia  de  Portugal,  doutrina  christã  e  grammatica  por- 
tugueza ;  seguidas  de  uma  collecção  de  figuras  para  o 
estudo  do  desenho,  por  Elias  Fernandes  Pereira,  4.* 
edição.   1  vol -400 

Elementos  de  desenho  geométrico,  elaborados  conforme  o 
programma  official  para  os  candidatos  ao  magistério 
primário  e  para  servirem  nas  escolas  d^instrucção  pri- 
maria, por  J.  G.  Moreira,  i  vol 250 

Exposição  elementar  do  systema  legal  de  medidas  portu- 
guezas,  com  graMiras  elucidativas  do  texto,  por  Fran- 
cisco António  do  Amaral  Cirne  Júnior  e  Patrício  Theodo- 
ro  Alvares  Ferreira.  1  vol 250 

Methodo  para  aprender  a  ler,  fallar  e  escrever  a  lingua 
franceza  em  seis  mezes,  pelo  Dr.  H.  G.  OllendoríT;  ar- 
ranjado para  uso  dos  portuguezes,  por  F.  Adolpho  Coe- 
lho. 2.*  edição,  muito  melhorada.  2  vol lóúOu 

Tractado  de  pronuncia  franceza,  complemento  do  Methodo 

OllendoríT,  compilado  por  F.  Adolpho  Coelho.  1  vol...       400 

Manual  da  historia  da  litteratura  portugueza,   desde  as 

suas  origens  até  o  presente,  por  Theopliilo  Braga.  1  vol.       600 

Doutrina  do  real.  Catecismo  para  uso  dos  que  não  se  con- 
tentam cora  palavras,  por  Prospero  Pichard.  precedido 
de  um  prefacio  por  Mr.  E.  Littré.  Traducção  auctorisa- 
da  pelo  auctor,  i  vol 400 

Antologia  Portugueza.  Trechos  selectos  coordenados  sob 
classificação  dos  géneros  litterarios  precedidos  de  uma 
Poética  histórica  portugueza,  por  Theophilo  Braga,  1 
vol 600 


LIVRARIA  UNIVERSAL 


MAGALHÃES^yá  MONIZ 

12  — LARGO  DOSiíOYOS— 14 


PORT 


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naes  polilicos,  lilterarios,  scienlificos,  illuslrados,  de  modas,  ele. 

Encarregam-se  de  mandar  vir,  quer  do  paiz,  quer  do  estrangeiro,  qual- 
quer encommenda  com  a  máxima  brevidade,  d'onde  recebem  Iodas  as  publica- 
ções mais  recentes,  á  medida  que  vão  sabindo. 


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